Me digam, argentinos, o que vocês sentem. Andei fazendo essa pergunta por Doha aos hermanos. Eu realmente tenho muita vontade de tentar decifrar o sentimento dessa torcida tão apaixonada que invade os países sedes dos mundiais. Sou encantada pelas músicas ritmadas entoadas em coro por todos os torcedores que vão aos jogos, transformando os estádios em Bomboneras ou Monumentais de Nuñes pelo planeta.
A pergunta: “decime que se siente?” surgiu em uma canção na Copa do Brasil, em 2014. Era um questionamento do país vizinho para o nosso: me digam o que sentem tendo em casa o seu papai? Uma ironia, tratando o Brasil como “filho” da Argentina no futebol. A letra segue com provocações entre as seleções rivais e termina dizendo que Maradona foi maior do que Pelé. Bom, não preciso nem entrar no mérito da rivalidade. Até porque as nossas cinco Copas superam de longe as duas que eles conquistaram. E quero tratar aqui de admiração e respeito.
Foi com esse sentimento que perguntei aos argentinos o que eles sentiam pelo time do seu país.
— Sentimos alegria, sentimos admiração, sentimos respeito extremo por cada jogador — explica um torcedor no Souq Waqif, o mercado de Doha, enquanto almoça antes do último jogo da fase de grupos. O local escolhido se chama La Boca, um restaurante argentino em terras árabes, onde a parrilla e las milanesas dividem o cardápio com os narguilés, o fumo típico desta região.
— Sentimos paixão, e paixão não se explica — completa outro torcedor, já pedindo a conta para sair correndo pelos trens da cidade fazendo barulho e ensinando ao mundo como se torce.
Entramos no trem e encontramos um grupo tranquilo. Com cinco horas de antecedência, se dirigiam ao estádio 974 para acompanhar Argentina e Polônia. Conversamos e me contaram, em um portunhol perfeito, que o filho deles tinha vivido 10 anos no Rio de Janeiro. Do nosso Rio, o Grande do Sul, conheciam o Grêmio e o Inter e ficamos falando sobre a inspiração dos cânticos argentinos nas nossas torcidas da Dupla Gre-Nal. Ali começou a ficar mais claro para mim por que os pelinhos do meu braço arrepiam quando vejo os argentinos cantando nas arquibancadas. É sobre identidade. Sobre valorizar a nossa origem. A nossa raiz. O que é da gente. Quando a seleção da Argentina entra em campo, la inchada, a torcida, entra junto e estão ali defendendo o que tem de mais precioso: a própria existência. Ao fim, lo que se siente, o que sente o torcedor hermano é que torcer faz parte do ser.
Torcida em silêncio
Uma tenda, que faz parecer que estamos em um acampamento de dos povos nômades do deserto, está erguida em meio aos arranha-céus de Lusail. Tapetes pelo chão de areia, almofadas coloridas, especiarias variadas sendo oferecidas em bancas. O espaço funciona como um shopping a céu aberto e foi erguido em um dos muitos terrenos ainda livres na cidade de Doha para ser mais um local de apresentação da cultura local durante a Copa do Mundo. O objetivo era atrair turistas, obviamente, mas muitos locais acabaram gostando também. Especialmente no dia da nossa visita, o público era majoritariamente catari, porque era o último jogo da seleção anfitriã por aqui.
Na última rodada da primeira fase, eles já entraram em campo eliminados. E ainda perderam perderam para a Holanda, mas o narrador contava a partida com emoção nos alto-falantes. Mesmo sem entender nada da língua era possível sentir a energia. Quando a plateia ensaiava uma reação mais animada, silêncio. Problemas com a transmissão do som? Pensei. A melodia que se seguiu explicou tudo. Era a hora da reza. A oração em alto volume nos tirou do ambiente da Copa, ou melhor, nos lembrou de que estamos na primeira Copa em um país árabe, onde cinco vezes por dia há paradas para rezar.
Foi estranhíssimo ver todos em silêncio olhando para o telão do jogo sem som. Não necessariamente havia concentração de quem está rezando, ninguém se ajoelhou ou mudou de posição, mas houve um momento de calma geral. O barulho voltou ao ao fim da partida, quando mesmo o Catar sendo o primeiro eliminado, perdendo todos os três jogos que disputou, os cataris aplaudiram sua seleção.
— Schukran, Catar — falei brincando com um homem que usava vestimentas árabes. Ele, que já tinha percebido que éramos brasileiros, sorriu e respondeu:
— Obrigado — no nosso português.