Duas das quatro empresas que arremataram lotes da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a importação de arroz têm possíveis restrições no Registro e Rastreamento da Atuação dos Intervenientes Aduaneiros (Radar), sistema da Receita Federal em que são emitidas as habilitações de operação no comércio exterior.
A empresa ASR Locação de Veículos e Máquinas, de Brasília, se credenciou para vender à Conab 22,5 mil toneladas do grão, por valor aproximado de R$ 112,5 milhões, mas não possui habilitação vigente de operação no comércio exterior.
Já a Wisley A de Sousa, cujo nome fantasia é Queijo Minas, sediada em Macapá (AP), foi a principal arrematadora do leilão. Ela deveria entregar à Conab 147,3 mil toneladas do cereal, em operação de cerca de R$ 736,2 milhões. A empresa possui habilitação da Receita Federal para atuar no comércio exterior, mas está enquadrada em uma modalidade que limita as movimentações em US$ 50 mil a cada seis meses. Considerando a cotação do dólar de segunda-feira (10), a Wisley estaria restrita a transações de até R$ 268 mil por semestre. Os lotes arrematados pela empresa superam essa barreira delimitadora em mais de R$ 735 milhões. A atual habilitação da Wisley para realizar comércio exterior foi deferida recentemente, no dia 31 de maio de 2024, conforme o sistema Radar.
Especialistas ouvidos pela reportagem explicam que, sem a habilitação, as empresas importadoras não conseguem fazer a mercadoria ingressar efetivamente no país.
— Para qualquer operação que envolva ações de importação e exportação, é preciso usar um sistema da Receita Federal (Siscomex) em que são informados os dados da carga, do vendedor, do importador. Ali também são calculados os impostos de importação (nos casos em que incidir a tributação). Para entrar nesse sistema, precisa ter a habilitação. Sem isso, não se executa nenhuma operação aduaneira — diz Márcio Moreno, coordenador do curso de Comércio Exterior da PUCRS.
A empresa também usa o sistema da Receita Federal para emitir a declaração de importação, um documento fundamental para o desembaraço da mercadoria.
— A habilitação existe para saber se a empresa tem condições de importar, se ela tem saúde financeira. São controles da Receita Federal sobre a legalidade da operação e da tributação. Se uma empresa não é habilitada, ela não consegue emitir a declaração de importação. A mercadoria pode estar no porto, mas, sem a declaração de importação, ela fica retida até a empresa regularizar a situação. E isso gera custos — afirma René Francisco de Assis, consultor de importação da Aduaneiras, especializada em comércio exterior.
Apesar das possíveis restrições, os especialistas afirmam que as duas vencedoras do leilão ainda poderiam providenciar os ajustes na Receita Federal. Isso precisaria ser feito antes do momento de emitir a declaração de importação. Contudo, no início da tarde desta terça-feira (11), as fragilidades técnicas das empresas arrematadoras levaram o governo federal a anunciar a anulação do pregão.
No caso da ASR, para que ela conseguisse fazer a importação, seria necessário requerer a habilitação de operação no comércio exterior na categoria ilimitada. Já a Wisley teria de solicitar um reenquadramento. Hoje ela é limitada a US$ 50 mil. A legislação traz mais duas categorias: uma de até US$ 150 mil e outra de valor ilimitado.
A normativa do setor diz que o enquadramento é realizado a partir de estimativa de capacidade financeira que leva em conta os tributos pagos pela empresa, como Imposto de Renda, Contribuição Social, previdenciária e Cofins. As operadoras podem solicitar uma revisão da estimativa, caso queiram elevar sua cota de importação ou avançar para a categoria ilimitada. Para isso, é necessário que o interessado demonstre ter dinheiro disponível em contas bancárias ou aplicações. A norma também menciona o direito a usufruir de isenções tributárias de mercadorias como motivador de revisão.
Moreno comenta que, quando as importadoras conseguem comprovar capacidade financeira, as homologações de operação em comércio exterior na Receita Federal costumam ser rápidas.
— A empresa teria de pedir uma ampliação do limite de operação. Vai precisar comprovar que já vinha pagando impostos, mesmo que por operações no mercado doméstico, em volume que supere os US$ 150 mil da última categoria de limite de importação. Neste caso, ela poderia ir para a categoria ilimitada. Também é possível apresentar recurso financeiro em caixa, entre outras hipóteses. O processo usual seria esse, na ausência de eventuais impedimentos. Precisa estar adimplente com o fisco federal — diz Moreno.
Antes da anulação do leilão, a ASR se manifestou por escrito: “Com relação ao Radar, a empresa já está providenciando o seu credenciamento junto à Receita Federal.” No mesmo comunicado, a arrematadora afirmou ser de médio porte e ter experiência em leilões. Em dezembro de 2023, a ASR vendeu, via pregão, 211 mil sacas de milho para o governo do Estado da Bahia, em operação de R$ 19,7 milhões. A empresa possui um atestado de capacidade técnica emitido pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), do governo do Estado da Bahia, em que é informado que a ASR executou o contrato de venda de milho dentro dos prazos e condições previstas.
A Wisley A de Sousa não respondeu, até o fechamento desta reportagem, sobre a sua limitação no sistema de habilitação para atuação no comércio exterior. Em nota distribuída à imprensa, a empresa comunicou que possui “solidez e mais de 17 anos de experiência no comércio atacadista, na armazenagem e na distribuição em todo Brasil de produtos alimentícios, com um faturamento de mais de R$ 60 milhões apenas no ano passado.”
As outras duas concorrentes que arremataram lotes no leilão de arroz da Conab, a Zafira Trading e a Icefruit Indústria e Comércio de Alimentos, estão com a habilitação para atuar no comércio exterior em dia, enquadradas na categoria ilimitada de movimentação.
Conab notifica bolsas e, depois, anula leilão
A Conab notificou na segunda-feira (10), próximo das 18h, as bolsas de corretagem para que elas apresentassem a documentação de capacidade técnica e financeira das empresas que elas representaram no leilão. O prazo concedido para retorno foi de 24 horas.
A iniciativa da Conab foi comunicada no sábado (8), após o crescimento de dúvidas quanto à familiaridade das vencedoras do leilão com a importação de grãos. Antes do vencimento do prazo para apresentação da documentação, o governo federal decidiu anular o leilão diante das fragilidades detectadas. Uma fonte consultada por GZH afirmou que o cancelamento foi uma decisão de "centro de governo", após três reuniões entre segunda e esta terça-feira, envolvendo Conab e ministros.
A Conab informou que o objetivo é fazer outro leilão para a importação de arroz. Um novo edital deverá ser construído em colaboração com a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Controladoria-Geral da União (CGU).
O objetivo da companhia era comprar 300 mil toneladas de arroz no certame agora anulado, realizado na última quinta-feira (6). Nem todos os lotes foram arrematados. No final, o pregão somou valor de R$ 1,3 bilhão para a compra de 263,37 mil toneladas do cereal. A média de preço do quilo ficou em R$ 4,99.
As vencedoras foram a Zafira Trading, de Florianópolis, a ASR Locação de Veículos e Máquinas, de Brasília, a Icefruit Indústria e Comércio de Alimentos, de Tatuí (SP), e a Queijo Minas, de Macapá. Uma característica das vencedoras é ter diversas atividades econômicas previstas no CNPJ, incluindo o comércio atacadista de grãos ou de alimentos. A ASR atua no ramo da locação de veículos e a Icefruit produz conservas de frutas, alimentos e sorvetes. A Queijo Minas despertou as principais críticas pelo fato de o seu endereço indicar o funcionamento de um comércio de pequeno a médio porte em Macapá.
Pelo menos uma parte das credenciadas não tem tradição em leilões da Conab. O edital do pregão definia prazo até o dia 13 de junho para que as empresas apresentassem garantias equivalentes a 5% do valor dos lotes arrematados. Elas poderiam ser integralizadas por depósito caução ou apólice de seguro, entre outras modalidades aceitas. Caso isso não fosse feito, o regramento determinava multa de 10% do total e banimento por dois anos de leilões da Conab. Também eram passíveis de punição as bolsas que as representaram.
Era previsto que o arroz importado tinha de atender padrões de qualidade definidos em normativas federais, com possibilidade de rejeição do produto no ato da fiscalização. O pagamento pela venda seria feito somente após a entrega e aceitação da mercadoria, diz o edital. Por esses fatores, o diretor de Operações e Abastecimento da Conab, Thiago dos Santos, afirmava que "prejuízo financeiro para o governo não vai ter nenhum".
O governo federal justifica que a importação é necessária para evitar aumento de preços do arroz. Entre os motivos para a decisão, a Conab aponta os danos causados pela enchente no Rio Grande do Sul, com queda de produção no campo.
O mercado diverge e faz críticas à decisão, avaliada como prejudicial à economia local. A Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz) afirmou que não há risco de desabastecimento e que, no início da crise climática, 85% da safra já havia sido colhida. O setor assumiu posição contrária à importação e empresas tradicionais decidiram não participar da concorrência.
O edital do leilão anulado previa que o arroz deveria ser entregue embalado em sacos de cinco quilos, com documentação de importação, contendo a logomarca do governo federal. A Conab pretendia revender o produto a redes de supermercado para que fosse ofertado ao consumidor final pelo preço tabelado de R$ 20 por saco. O valor deveria ser impresso na embalagem.