Cercados por controvérsias no mundo, os cigarros eletrônicos são a aposta das indústrias para um futuro sem fumaça ou pelo menos bem menos – diante de um número menor de fumantes a cada ano. Empresas do setor trabalham para que a substituição gradual aconteça. O argumento é de que são menos prejudiciais à saúde, por aquecer o tabaco em vez de queimá-lo. Proibidos no Brasil desde 2009, os chamados vaporizadores terão o debate público no país pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Na próxima quarta-feira, em Brasília, a agência sediará um seminário com a participação de pesquisadores, indústrias e entidades antitabagistas.
"O objetivo é ouvir de todos os atores interessados no tema, sejam da indústria, sejam do setor de saúde, posições e estudos sobre os dispositivos eletrônicos para fumar", informa a Anvisa.
Os vaporizadores e o tabaco aquecido vêm ganhando espaço nos últimos anos em mercados como o dos Estados Unidos, do Japão e do Reino Unido. No Brasil, esses produtos são contrabandeados e vendidos ilegalmente – na internet e em feiras de importados. Na tentativa de regularizar o comércio e promover a substituição gradual, indústrias vêm pressionando para que a Anvisa revise a resolução 46/2009 – que proibiu a comercialização, importação e propaganda desses produtos no Brasil.
– Ao postergar essa discussão, acaba-se indiretamente protegendo o cigarro convencional e impedindo que milhões de brasileiros que fumam possam ter informações e acesso a produtos melhores do que o cigarro – argumenta o presidente da Philip Morris Brasil, Wagner Erne.
Maior fabricante de cigarros do mundo, a Philip Morris International (PMI) anunciou no começo deste ano que deixará de vender cigarros tradicionais no Reino Unido para substituí-los por produtos sem combustão – hoje a indústria tem quatro variedades em seu portfólio. Os modelos de vaporizadores e de tabaco aquecido representam aproximadamente 13% da receita líquida global da companhia, contra 3% em 2006.
– Hoje, temos ciência e tecnologia que nos permitem oferecer alternativas melhores do que o cigarro para adultos fumantes – completa Erne.
O argumento de ameaça menor à saúde é propagado também pela British American Tobacco, holding da Souza Cruz, empresa líder no mercado de cigarros no Brasil e que está introduzindo novos produtos no mercado mundial.
– O conflito entre a satisfação e a preocupação com os riscos do produto é uma questão global. Quando o mercado brasileiro puder disponibilizar diferentes níveis de riscos, os consumidores poderão optar – afirma Liel Miranda, presidente da Souza Cruz.
Para a marca, os dispositivos eletrônicos de fumar representam apenas 2% do faturamento global. Em cinco anos, a perspectiva é de que saltem para 20% de participação, chegando a 50% em 2050.
– Nossa estratégia é transformar a indústria de tabaco – completa o executivo, ponderando que a regulamentação no Brasil deve ocorrer de forma responsável, com normas específicas sobre fabricação, tecnologia e qualidade.
Evidências científicas ainda são divergentes
As indústrias alegam, com base em estudos científicos independentes, que os vaporizadores são 95% menos danosos à saúde do que os cigarros convencionais – por não gerarem combustão e terem menos substâncias tóxicas. Em contrapartida, os produtos de tabaco aquecido, diferentemente dos vaporizadores, enfrentam resistência.
Recentemente, o comitê consultivo da Food and Drug Administration (FDA), agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, analisou um dos pedidos de comercialização de um produto de tabaco aquecido como um item de risco modificado (reduzido). Nessa primeira análise, o comitê entendeu que ainda não é possível afirmar que o produto representa menor risco de dano à saúde. Uma outra solicitação, para a comercialização do mesmo produto como de tabaco regular, também está sob análise pela FDA.
Para a Anvisa, é preciso ter cautela com afirmações do tipo "menos prejudicial do que um cigarro". "O potencial tóxico é tão elevado que tecnicamente não é difícil criar um produto 'mais seguro' que os cigarros. A questão é se este produto desenvolvido possui nível de risco aceitável para a saúde pública", alerta a agência reguladora, em resposta a ZH.
A médica Jaqueline Scholz, coordenadora da área de cardiologia do Programa de Tratamento ao Tabagismo do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Incor/USP), está desenvolvendo uma das primeiras pesquisas brasileiras com pacientes para avaliar o impacto do produto eletrônico na saúde. A avaliação dos primeiros voluntários revelou que os usuários destes novos cigarros continuam consumindo quantidades de nicotina semelhantes às que absorviam quando usavam o tradicional:
– Eles só substituem uma forma pela outra. É uma falsa ilusão, que manterá a dependência dos fumantes que, em grande maioria, desejam parar de fumar.
Segundo a médica, o fato de os cigarros eletrônicos terem combustão menos elevada e menos substâncias tóxicas não significa que estejam em padrões de segurança para consumo.
– A nicotina continua presente em alta concentração, causando dependência e problemas cardiovasculares. É uma estratégia ardilosa da indústria – diz a cardiologista, acrescentando o risco do apelo à tecnologia atrair novos fumantes entre os jovens.
Transformação da indústria de cigarros impactará na produção brasileira de tabaco
Mesmo que os cigarros eletrônicos não sejam aprovados no país a curto prazo, a transformação protagonizada pelas indústrias inevitavelmente chegará ao campo brasileiro, que produz mais de 30% do tabaco consumido no mundo. Embora os dispositivos eletrônicos usem a matéria-prima do cigarro, tanto na nicotina líquida quanto no tabaco aquecido, a quantidade é menor em relação ao tradicional.
– As informações que temos dão conta do uso de 30% a 35% do que é utilizado no convencional – afirma Benício Werner, presidente da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra).
A produção de fumo hoje envolve 163 mil famílias em todo o país, das quais quase 150 mil estão situadas na Região Sul. Apesar de confirmar a necessidade menor de tabaco na fabricação desses novos produtos, por questões estratégicas as indústrias não informam o percentual de diferença.
– O fato é que a produção terá de ser ajustada à demanda, e isso preocupa muito – informa Werner.
Presidente da Câmara Setorial do Tabaco, Romeu Schneider vê transformação gradual e lenta:
– Não é algo que acontecerá da noite para o dia. Estamos falando em décadas, período em que o cigarro convencional continuará sendo consumido.
Além do volume menor, a produção brasileira terá de se adequar à qualidade superior do tabaco exigida pelos novos dispositivos, semelhante à dos cigarros premium. Nesse processamento, é usada praticamente a folha – excluindo os talos das plantas, hoje processados na indústria.
Maior exportador mundial, com 90% da produção vendida para outros países, o Brasil está preparado para a mudança, na avaliação do presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), Iro Schünke:
– O sistema integrado de produção, que neste ano completou cem anos no Brasil, facilitará a adaptação. O clima e a sustentabilidade da produção também serão fatores positivos nessa transição.
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Mercado mundial
A fabricação e venda de dispositivos eletrônicos de fumar é permitida em mercados como China, Estados Unidos, Reino Unido e Japão. Os americanos são os maiores consumidores mundiais de cigarros eletrônicos (vaporizadores), enquanto os japoneses lideram o consumo de tabaco aquecido. Em nações como Dinamarca e França, a venda é legalizada, mas com uma série de medidas restritivas, como o controle de publicidade.
Proibição no Brasil
A venda, a importação e a propaganda de qualquer dispositivo eletrônico para fumar são proibidas pela Anvisa, segundo a Resolução RDC 46/2009.
Motivo da restrição
Segundo a Anvisa, os cigarros eletrônicos são proibidos no Brasil pelo fato de serem vendidos prometendo ser um tratamento para cessação do tabagismo, um produto sem riscos à saúde e que poderia ser utilizado em ambientes fechados. Nenhuma destas alegações foi devidamente comprovada, conforme a agência reguladora.
Riscos à saúde
As indústrias de tabaco alegam, com base em estudos independentes, que os vaporizadores são 95% menos danosos à saúde do que os cigarros convencionais – por não gerarem combustão e terem menos substâncias tóxicas. Já os produtos de tabaco aquecido ainda têm poucas pesquisas científicas, enfrentando resistência maior de órgãos reguladores de saúde no mundo.
Possibilidade de liberação
Consultas públicas e outros debates poderão levar a uma nova resolução da agência. Além da coleta de informações e avaliação de dados científicos, o exame das normas na Anvisa segue os trâmites estabelecidos nas boas práticas regulatórias. Conforme a agência, a revisão da diretriz depende do avanço do conhecimento sobre o produto. Não há previsão de eventual liberação.