Na segunda-feira (27), a baiana Cintia dos Santos Caldas Sampaio, 34 anos, mostrava o que restou dos 10 anos de trabalho no frigorífico Tramonto, administrado pela JBS desde 2013. Além da camisa que vestia com a mensagem "seu sorriso é nosso prêmio, sua segurança é uma de nossas metas", exibia duas canecas e um copo com a logomarca da empresa. Há um mês, ela perdeu o emprego e o salário de R$ 1,3 mil. O mesmo aconteceu com o marido, Ronei, 40, o irmão Sidney, 38, e o padrinho de um dos dois filhos do casal, Roberto de Jesus, 36. Sem contar dois primos e três amigos que também vieram da Bahia.
Histórias como a da família de Feira de Santana (BA) se tornaram comum em Morro Grande, no sul de Santa Catarina, após a multinacional brasileira encerrar o abate de frango e demitir cerca de um quinto da população do município, aproximadamente 600 pessoas. Quem não está desempregado, tem familiares ou amigos nesta situação.
— A gente espera que venha outra empresa. Tivemos nossos filhos e fizemos muitos amigos aqui. Se for para sair da cidade, prefiro voltar para a minha terra natal — diz Cintia.
Hoje, o casal vive com uma renda de R$ 2 mil por mês do seguro-desemprego — calculado a partir da média dos últimos três salários — para sustentar o bebê de nove meses e a criança de oito anos. Como os financiamentos da residência de três quartos e do automóvel da família consomem metade do dinheiro, pensam em usar o fundo de garantia (FGTS) para quitar parte das dívidas. Depois de março, quando acaba o benefício, o futuro é incerto.
Até julho, os 2,9 mil habitantes do município não tinham motivos para se preocupar. Segundo ranking do IBGE com dados de 2015, 61,3% da população estava ocupada naquele ano, o quarto melhor resultado de Santa Catarina e o 35o entre as 5,5 mil cidades do país. O PIB per capita era de R$ 52.471 em 2014, o 13o maior do Estado. Hoje, todas as ruas da região central são pavimentadas e a sede da prefeitura, recém-inaugurada, causa inveja em prédios de cidades maiores. Provas de um período de bonança nas contas públicas.
Mas os ânimos começaram a mudar em agosto, com o anúncio do encerramento das atividades do frigorífico. Não se falava em outra coisa. Até 26 de outubro, havia morrograndense que ainda tinha esperança de uma reviravolta no caso.
Funciona como uma engrenagem. Hoje, o comércio, por exemplo, sobrevive por conta das pessoas que trabalham no frigorífico. Um emprego direto significa seis indiretos
VALDIONIR ROCHA
Prefeito de Morro Grande
— Temos que pensar positivo. Espero que a JBS entenda o momento da cidade, a nossa realidade. Acredito que, daqui a 30 dias, a gente possa ter informações positivas, uma alternativa — disse o prefeito Valdionir Rocha (PSD) em 5 de outubro.
De lá para cá, o cenário não mudou. Valdo, como é conhecido, continua sem uma solução fácil. Já entrou na Justiça para que a empresa devolvesse a planta ao município ou desistisse da ideia de demitir os funcionários, se reuniu com políticos na capital catarinense e empresas do ramo. Sem sucesso.
Também presidente da Associação dos Municípios do Extremo Sul Catarinense (Amesc), ele estima que o fechamento da indústria vai gerar um efeito dominó, resultando em uma queda na arrecadação de R$ 650 milhões nas cidades da região. Entram nesta conta, por exemplo, a redução do faturamento e a falência de empresas de cidades vizinhas que prestam serviço para a planta, principalmente as transportadoras, e os comércios.
Somente o ICMS, responsável por grande parte do caixa de Morro Grande, cairá pela metade, segundo estimativas da prefeitura. O valor arrecadado com o imposto sobre circulação de mercadorias e serviço era usado para pagar metade da folha (R$ 250 mil) dos servidores.
— Funciona como uma engrenagem. Hoje, o comércio, por exemplo, sobrevive por conta das pessoas que trabalham no frigorífico. Um emprego direto significa seis indiretos. Tirando um, a gente acaba perdendo sete trabalhadores. Vivemos em torno da JBS, 80% dos nossos impostos vêm da planta. Somente na cidade são em torno de 2 mil pessoas, pouco mais de 60%, atingidas diretamente — diz.
Como o município só receberá o ICMS arrecadado neste ano em 2019, o impacto mais forte nas contas será em 2020, último ano do mandato de Valdo. Até lá, ele vai perder outras noites de sono.
Prefeito fala em "falência" do município
Desde outubro, o prefeito de 57 anos se reúne com o secretariado para planejar os cortes no orçamento. As áreas de educação e saúde vão ser priorizadas, mas outras sofreram bastante. Se o efeito da arrecadação fosse imediato, por exemplo, metade dos servidores teriam que ser pagos com uma outra fonte ou exonerados.
— Não quero nem pensar no que vai acontecer. Praticamente vai ser decretada a falência da cidade. Eu venho batendo em todas as portas, mas está difícil. Dizem que ninguém quer se meter com a JBS neste momento — afirma.
Em acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o sindicato da categoria, a empresa pagou indenização de R$ 1,25 mil para cada funcionário com mais de um ano de casa. Para quem tinha menos tempo, o valor foi dividido conforme os meses trabalhados. O promotor do Trabalho, Sandro Sardá, explica que o órgão atuou para que os direitos dos trabalhadores fossem respeitados, mas que o fechamento não compete à promotoria.
Questionada sobre o encerramento das atividades, em nota a JBS se limitou a dizer que a unidade de Morro Grande continua produzindo rações e outros itens agropecuários — são pouco mais de 50 funcionários.
"A decisão de encerrar o abate foi tomada em função da otimização e racionalização da malha produtiva da companhia. A produção da cidade foi absorvida, prioritariamente, pelas plantas vizinhas e por outras fábricas que a empresa mantém no Estado. A JBS está aberta a negociações para venda da unidade, o que está nos planos desde que decidiu pelo encerramento das atividades de abate", diz o texto.
Produtores sofrem com aviários vazios
— Sofri por sete anos com financiamentos. O que mais dói é saber que investi e agora sou cortado sem motivos.
A frase de Valtoni Dandolini, 48, mostra o problema de grande parte dos avicultores da região: as dívidas com os bancos. Ele foi um dos dispensados pela empresa em outubro. Hoje, os três aviários que alojavam cerca de 80 mil frangos, média de 120 mil quilos por mês, estão vazios.
Apelei ao técnico para que (a JBS) voltasse atrás, mas não é fácil. Agora quem vai querer comprar isso? Dá um desânimo passar em frente aos galpões e ver tudo abandonado.
VALTONI DANDOLINI
Avicultordispensado após fechamento de frigorífico da JBS
O investimento de pelo menos R$ 1,5 milhão rendia em média R$ 5 mil por mês para a família do produtor e mantinha dois postos de trabalho. Por enquanto, ele não dispensou os empregados. Ajuda como pode. Dá moradia e indica para bicos nas propriedades vizinhas. A esposa e os dois filhos foram trabalhar na cidade para incrementar a renda.
— Apelei ao técnico para que (a JBS) voltasse atrás, mas não é fácil. Agora quem vai querer comprar isso? Dá um desânimo passar em frente aos galpões e ver tudo abandonado — diz.
Hoje, a região sul de Santa Catarina conta com 780 avicultores que abastecem os frigoríficos da JBS de Nova Veneza e Forquilhinha, responsáveis por 300 mil abates diariamente. A planta de Morro Grande chegou a abater 100 mil aves, mas nos últimos meses não passava de 55 mil.
O presidente da Associação dos Avicultores do Sul Catarinense, Emir Tezza, explica que dificilmente alguém compra um galpão de aviário, principalmente quando um frigorífico encerra as atividades na região. O que dá para vender são parte dos equipamentos, como fornalha e bebedouros. O restante fica na propriedade do produtor esperando que alguma companhia volte a alojar as aves no local. No caso de Valtoni, como a JBS é a única no Sul, não há mais para quem vender. Tezza acredita que pelo menos 100 trabalhadores já foram desligados:
— O funcionário dentro da fábrica tem vários direitos, como multa contratual, FGTS e décimo terceiro salário. O produtor, quando é descartado, só recebe o dinheiro de um lote a mais. E as dívidas contraídas no banco? Mais de 90% dos avicultores estão devendo. Como eles vão pagar?
O problema de Morro Grande não é exclusividade de Santa Catarina. Pode até ser o caso mais emblemático do país pela quantidade de pessoas demitidas em uma única cidade, mas é comum em outras regiões, segundo o economista Istvan Kasznar, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV). A primeira saída para evitar o colapso, aponta, é encontrar uma companhia para fechar o espaço vazio na economia.
O funcionário dentro da fábrica tem vários direitos, como multa contratual, FGTS e décimo terceiro salário. O produtor, quando é descartado, só recebe o dinheiro de um lote a mais.
EMIR TEZZA
Presidente da Associação dos Avicultores do Sul Catarinense
— Tem de ser cuidadoso, buscar apoio e encontrar uma substituição que permita a reprogramação do projeto da cidade. Se não chegar a um acordo para continuar a vocação, ela vai morrer. (A saída) é tão violenta que é política de terra arrasada — afirma.
Ele acrescenta que de médio a longo prazo é preciso investir no cooperativismo para ter preços mais competitivos e reduzir os custos. A cooperativa Aurora foi uma das procuradas pela prefeitura para se instalar na região. Por meio da assessoria de imprensa, a companhia do Oeste do Estado afirma que, neste momento, "não tem nenhum plano de aquisição".
Prefeitura tenta na Justiça barrar saída de frigorífico
Antes da Tramonto, que abriu as portas em 2007, Morro Grande vivia principalmente da fumicultura e de madeireiras. Com o endurecimento da lei antitabagismo e a redução da extração de madeiras, restaram poucas empresas do ramo. Na época, agricultores deixaram o campo para trabalhar no frigorífico. A unidade já chegou a ter 1,3 mil funcionários, mas vinha reduzindo o quadro nos últimos anos. Em 2013, a JBS alugou a planta para aumentar a capacidade de abate e fabricar ração. Dois anos depois, a planta entrou em recuperação judicial e foi alienada para a gigante de carnes por R$ 63,3 milhões, divididos em 30 parcelas. De acordo com decisão que referendou a transação, em 28 de julho do ano passado, a planta era avaliada em R$ 33,6 milhões.
Alegando investimento maciço de dinheiro público na instalação da empresa, em outubro a prefeitura de Morro Grande entrou com uma ação civil pública para impedir a saída da unidade da JBS ou que a companhia devolvesse o valor investido, mas o pedido de liminar foi negado pela juíza Thania Mara Luz, de Meleiros, cidade vizinha e também afetada pela saída do frigorífico.
"Não há nenhuma lei que permita a intervenção do Poder Judiciário em decisões empresariais, como é o caso do fechamento de uma atividade produtiva (abate de frangos). Dessa forma, a decisão de efetuar o fechamento é ato empresarial, que não pode ser modificado por meio da intervenção do poder público", escreveu a magistrada em despacho de 26 de outubro.
O objetivo do município era conseguir uma decisão parecida com a da Justiça de São Miguel do Araguaia, no noroeste de Goiás. Em setembro, o juiz Ronny Andre Wachtel determinou o prazo de 45 dias para a JBS da cidade reabrir uma planta com pena de multa de R$ 5 milhões pelo descumprimento, além de R$ 50 mil por dia.
Na cidade de 22,7 mil habitantes, a empresa adquiriu um frigorífico de bovinos com capacidade para abater 1 mil cabeças por dia, mas fechou a unidade sete anos depois. No processo, o município alegou que doou o imóvel à empresa, que também recebeu outros recursos públicos do Estado. A companhia também foi acusada de fazer monopólio.
"A ré comprou o imóvel sem qualquer intenção de colocá-lo em funcionamento. Sequer indica na sua contestação que teria interesse em abri-lo em data futura eventual", escreveu o magistrado.
Em Santa Catarina, a situação é semelhante. Segundo o prefeito Valdo, foram investidos R$ 17 milhões na instalação da Tramonto. Além da doação do terreno de 120 mil metros quadrados, o galpão de abate foi construído com dinheiro público, além de toda a infraestrutura em torno da planta. A última obra, um anel viário para absorver o trânsito pesado, está vazia desde o fim das operações do frigorífico.
O fim do vai e vem de caminhões e ônibus afetou também o restaurante Favarin. Até 26 de outubro, o restaurante estava em um ponto estratégico de Morro Grande. Na frente do frigorífico da JBS, tinha uma clientela fiel, principalmente nos horários de saída e entrada de trabalhadores. No restante do dia, caminhoneiros que transportavam frango para a unidade seguravam o lucro. Um mês depois, o movimento sumiu como no anel viário.
— Vamos remando até ver se dá para sobreviver. É uma dor investir um capital assim e ter que fechar — diz a gerente do local, Duciléia Dondossola Izé, 36, que tem cunhada, dois vizinhos e uma irmã desempregados.
Hoje, o restaurante serve no máximo 25 refeições ao dia — nos tempos áureos, cerca de 200 pessoas almoçavam no local. Da janela do estabelecimento, dava para ver o tráfego intenso na rodovia que passa em frente, principalmente nos horários de entrada de funcionários, que se aglomeravam no estacionamento do frigorífico. Hoje, nos mesmos horários, as mesas ficam vazias.
Busca por empresas precisa ser atrelada a estratégias, diz especialista
O presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Santa Catarina (Faesc), José Zeferino Pedrozo, acompanha o caso, mas reconhece que é muito difícil reverter a decisão. Ele também acredita que a melhor saída seria buscar uma outra empresa.
— Se tivessem socorrido os antigos proprietários da Tramonto, que eram locais, talvez esse cenário não teria ocorrido — diz.
Apesar de reconhecer que é preciso buscar uma solução rápida a curto prazo, o especialista em desenvolvimento local Mikael Linder, doutorando na Livre Universidade de Bolzano, na Itália, discorda sobre a busca por uma empresa sem que ela seja acompanhada com um modelo de atração de investimento. De acordo com ele, é preciso analisar os aspectos da vinda da unidade para a região, como qualidade do mercado de trabalho, capacidade de inovação social e de desenvolvimento tecnológico. Atrair uma grande fábrica que produz artigos de baixo valor agregado sem outras estratégias, afirma, é "enxugar gelo".
A saída seria fazer uma política de desenvolvimento mais consistente e que parta de uma visão compartilhada entre cidadãos, empresas, organização públicas e privadas e centros de ensino
MIKAEL LINDER
Especialista em desenvolvimento local
Linder acrescenta ainda que o modelo precisa ser atrelado a outras estratégicas. Caso contrário, serão criados empregos com baixos salários, a arrecadação será relativamente pequena e a economia local ficará estagnada.
— A saída seria fazer uma política de desenvolvimento mais consistente e que parta de uma visão compartilhada entre cidadãos, empresas, organização públicas e privadas e centros de ensino — acrescenta.
Ele usa como exemplo Santa Rosa de Lima, município de 2 mil habitantes na serra catarinense. Por conta dessa visão compartilhada, foram desenvolvidos dois projetos que são modelos: a acolhida na colônia e a Associação de Agricultores Ecológicos, que produz alimentos orgânicos. Os dois negócios cresceram e mudaram a economia da cidade.
Pensando em um negócio sustentável, Eva Martinha Mateus Genuíno, 55 anos, aproveitou a demissão da JBS como um recomeço. Pelo menos essa foi a ideia depois de saber que o fim da empresa era inevitável. Depois de ficar separando corações e fígados de frangos no abatedor por sete anos, quer voltar a fabricar bolachas para vender.
A recém dona de casa ficou desempregada com duas filhas, dois netos e um genro. A família mora em casas separadas de um pequeno terreno na região central de Meleiros, vizinha de Morro Grande.
— Eu já sabia que não haveria espaço para mim por causa da idade e do meu problema de saúde. Minha coluna está bem debilitada. Agora vou vender bolacha e ver no que vai dar. A gente se estressava, mas era bom, tinha muitas pessoas que a gente gostava muito. É difícil manter contato agora — afirma.
Com parte do dinheiro do FGTS e da multa rescisória, comprou duas máquinas para começar a produção, além de ampliar a pequena cozinha da casa. O plano começou ainda em outubro. Por enquanto, o seguro desemprego, cerca de R$ 900, vai dar o suporte para o gasto de R$ 350 em remédios para as dores na coluna e no braço. O que sobrar, vai bancar as contas da casa com o marido, a filha e o genro.
— Enquanto andar, tem que trabalhar — brinca.
Recomeçar também é a ideia do baiano Sidney dos Santos Caldas, 39 anos, irmã de Cintia. Com duas pensões para pagar, ele quer começar enquanto antes um novo emprego. Por enquanto, faz bicos e joga conversa fora com os amigos de infância Roberto de Jesus, 36, Josenilson de Jesus da Silva, 38, e o caçula do grupo, Adailton da Lima Estrela dos Reis, 21. Todos foram demitidos.
Segundo o trabalhador de Feira de Santana, apesar da dificuldade de encontrar emprego formal na Bahia, a vontade de ficar mais perto da família é grande. Mas os amigos fazem a parte deles: não faltam conversas e brincadeiras. Para ajudar nas contas, eles dividem o aluguel das casas onde moram.
Na segunda-feira, depois de nove anos na JBS, os últimos deles trabalhando pendurando aves, ele tinha acabado de dar entrada no seguro desemprego, benefício que vai receber até abril. Para animar, o grupo montou um churrasco à tarde, horário em que ficava na fábrica. Desta vez, não tem frango na grelha.