Em março de 1974, o Rio Grande do Sul enfrentava enchentes históricas, o que fez José Lutzenberger (1926-2002), um dos maiores ambientalistas do país, escrever um texto sobre suas causas e consequências. Sua filha Lara Lutzenberger e sua biógrafa Lilian Dreyer recuperaram o artigo para a republicação a seguir em GZH. A leitura revela a impressionante atualidade das reflexões, indicando que os problemas recentes do clima não surgiram assim tão de repente.
Por José Lutzenberger*
Ambientalista
Durante as catastróficas inundações de março de 1974, quem observasse o mar desde a barra do Rio Mampituba ou do alto dos morros de Torres podia ver água vermelha como tijolo novo, mais vermelha do que a do Guaíba no inverno. Observada de perto, a transparência da água era zero, como a do café com leite. A praia, até onde se podia avistar, ao Norte e ao Sul, estava coberta de detritos: aguapés, ramos, troncos e cadáveres de reses, porcos e galinhas. Em toda parte, populares com suas carroças juntavam lenha, cortando e rachando troncos com o machado. Alguns, com a maior naturalidade, carneavam animais mortos, levando a came e deixando as entranhas.
Se as atitudes dessa pobre gente atestam a miséria de sua existência, a repetição das calamidades provocadas pelas enchentes confirma o que há tempo já se podia prever. Se hoje os estragos são imensos e os mortos se contam às centenas, não tardará o dia em que os flagelados e os mortos totalizarão milhões. Somos incapazes de aprender com nossos erros. As advertências dramáticas da natureza de nada valem. Insistimos no consumo de nosso futuro.
Antes das interferências irracionais do homem, cada local tinha a cobertura vegetal que convinha às condições do lugar, pois essa cobertura era resultado de seleção natural implacável através das longas eras da história da evolução. A flora e a fauna, o solo com sua microfauna e microflora estavam de tal maneira estruturados que tinham condições de enfrentar, sem estragos importantes, todas as vicissitudes da região. Se assim não fosse, não teriam sobrevivido até a chegada do homem “’civilizado”. Nessas condições, a erosão física era praticamente inexistente. Os rios eram quase sempre cristalinos. Predominava a erosão química, a lenta dissolução dos minerais pelo processo chamado meteorização. Mas esse processo age em escala de tempo geológico, uma escala em que a unidade de tempo é o milhão de anos, a mesma da formação das montanhas. Não havia destruição, apenas evolução da paisagem.
Um bosque intacto é um perfeito regulador do movimento das águas. A folhagem das árvores e do sub-bosque, das ervas e samambaias, o próprio musgo e os detritos que cobrem o chão freiam a violência do impacto das gotas da chuva. No bosque são não há solo nu. A capa de restos vegetais em decomposição é um cosmos de vida variada e complexa, com vermes, moluscos, escaravelhos e outros insetos, centopeias e miriápodes, aranhas e ácaros, pequenos batráquios e répteis e até mamíferos. A complementar o contínuo trabalho de desmonte, há os fungos e as bactérias, que mineralizam o material, devolvendo ao solo os elementos nutritivos que as plantas dele retiraram.
Fecha-se assim um dos importantes ciclos vitais do sistema de suporte da vida do planeta.
Não há limite definido entre a capa de detritos e a superfície do solo. Os dois complexos se entremeiam, formando uma esponja, com poros e galerias. Essa esponja tem enorme capacidade de absorção e armazenamento de água. Mesmo nas mais violentas enxurradas e nas encostas mais íngremes, a água não escorre pela superfície. Ela é absorvida e segue subterraneamente até a vertente mais próxima, ou vai juntar-se ao lençol freático, para reaparecer quilômetros adiante. Quando desce pelo córrego, sua velocidade é freada no leito irregular de pedras, troncos e raízes, com degraus e quedas, curvas e poros.
Só uma inversão no processo de demolição das paisagens pode inverter a corrida para calamidades sempre maiores.
Um rio em região de floresta intacta, além de levar águas transparentes, apresenta flutuações suaves em sua vazão, raras vezes transborda e nunca seca. O bosque absorve rapidamente a água da chuva, mas a entrega lenta e parceladamente. No outro extremo, no deserto, o leito do rio poderia servir de estrada para o automóvel durante a maior parte do tempo, mas, quando chove, transforma-se rapidamente em caudal de águas barrentas e arrasadoras. As piores inundações são as do deserto.
À medida que progride a desnudação das montanhas, das cabeceiras e margens dos rios, à medida que desaparecem os últimos banhados, outros grandes moderadores do ciclo hídrico, a paisagem mais e mais se aproxima da situação do deserto, os rios se tornam mais barrentos e mais irregulares. Onde havia um fluxo regular, alternam-se então estiagens e inundações catastróficas. Só uma inversão no processo de demolição das paisagens pode inverter a corrida para calamidades sempre maiores.
Já são poucos os bosques que sobram, e os que sobrevivem estão muitas vezes degradados. Na encosta da Serra, nas enxurradas que causaram as inundações de 1974, apareceram gigantescos deslizes até em áreas cobertas de floresta primária. Acontece que, em época de seca, as queimadas se alastram mesmo por dentro dos bosques pluviais de aparência viçosa. Sem destruir as árvores adultas, o fogo destrói o sub-bosque e desnuda o solo, consumindo as folhas secas. O solo perde sua estrutura, e a erosão começa a trabalhar. As imensas manchas de encosta agora destruídas levarão milhares de anos para recuperar-se.
A função do bosque como regulador não se limita ao trabalho de freio mecânico e amenizador do grande ciclo da água, engrenagem mestra do sistema de suporte de vida. O bosque e todos os demais ecossistemas, savanas, pampas, cerrados, cerradões, banhados ou caatinga, desertos, lagos ou oceanos têm cada um sua função específica e orquestrada nos grandes equilíbrios climáticos. É fácil compreender que o bosque tem outra refletividade para os raios solares, outra taxa de evaporação da água, oferece outra forma de resistência ao vento, diferentemente do deserto, do lago, da savana. O equilíbrio global entre os efeitos parciais desses sistemas está em interação recíproca e interagindo com a atmosfera e a hidrosfera. Mas o homem está hoje alterando ou degradando cada um dos sistemas. É claro que alterará o equilíbrio global. Não sabemos onde está o limiar de tolerância para esses abusos, mas sabemos que há um limiar. As interferências humanas se aproximam das ordens de magnitude dos grandes equilíbrios planetários.
No dia em que uma parte significativa da hileia Amazônica deixar de existir, teremos uma mudança fundamental no clima da Terra. As irregularidades climáticas que há vários anos atingem quase todo o mundo podem representar irregularidades esporádicas, como as que sempre têm havido e que se repetem a cada três ou quatro décadas, mas é possível que já estejamos presenciando o começo da inevitável inversão climática global. O homem moderno estraga, uma a uma, as peças da engrenagem – e ainda joga areia no mecanismo, preparando o colapso.
Esse é o significado da poluição. A sociedade industrial, com sua sede insaciável de energia, queima combustíveis fósseis em quantidade crescente tal que, hoje, o consumo anual corresponde à produção natural de mais de 1 milhão de anos. Com isso não só estamos esbanjando um capital irrecuperável, mas estamos também afetando seriamente a própria natureza da atmosfera. O gás carbônico do ar é um dos fatores mais importantes do equilíbrio térmico. Seu “efeito de estufa” consiste em permitir a penetração dos raios solares, ao mesmo tempo em que dificulta a saída dos raios infravermelhos, que são os raios de calor. Sem os 0,03% de CO2, o clima da Terra seria mais frio e mais violento. Desde o começo da Revolução Industrial, já aumentamos em quase 30% a concentração do gás carbônico na atmosfera, e até o ano 2000 teremos acrescentado pelo menos outros 30%, não só pela combustão dos combustíveis fósseis – petróleo, carvão, lignina, turfa e gás natural – mas pelos próprios incêndios florestais. O que acontecerá? Se a consequência for um aumento de poucos graus na temperatura média planetária, desaparecerão as calotas polares e o nível dos oceanos poderá aumentar em dezenas de metros. Porto Alegre, Buenos Aires, Nova York, Hamburgo, Hong Kong e muitas outras grandes cidades desaparecerão. Desaparecerão regiões inteiras. A Holanda desaparecerá, e na Amazônia surgirá um grande golfo.
O homem moderno estraga, uma a uma, as peças da engrenagem – e ainda joga areia no mecanismo, preparando o colapso.
Está claro que a espécie humana não poderá continuar por muito tempo com sua cegueira ambiental e com sua falta de escrúpulos na exploração da natureza. Tudo tem seu preço. Quanto maior o abuso, maior será o preço. Devemos compreender que a ecosfera é uma unidade funcional, onde todas as peças são complementares. Não podemos causar danos apenas locais. Tudo está ligado com tudo.
Vejamos a verdadeira extensão dos estragos causados pela devastação florestal. O primeiro estrago está na perda da própria floresta nativa, um ecossistema insubstituível, complexo e equilibrado. A floresta natural é uma comunidade animal e vegetal que levou milhares de anos para estabelecer-se e que é o resultado de milhões de anos de evolução orquestrada dessas espécies. Segue-se a perda do solo. No terreno desnudado ou na floresta degradada pelo fogo, as enxurradas destroem em minutos ou horas o que a natureza levou milhares de anos para fazer. Uma polegada de solo fértil pode levar até 500 anos para formar-se. Em muitos lugares, as enxurradas levam solo e subsolo, deixando aflorar a rocha nua.
Até que ali esteja reconstituída nova capa de solo como a que se perdeu, nossa civilização já pertencerá a um passado remoto, tão remoto quanto são para nós os assírios e babilônios. Todo solo perdido – e a cada ano se perde no planeta uma superfície que corresponde a uma quinta parte do RS – significa uma diminuição na capacidade de a Terra produzir alimentos. À medida que explode a população, implode a capacidade de manutenção dessa população.
Todo solo perdido significa uma diminuição na capacidade de a Terra produzir alimentos. À medida que explode a população, implode a capacidade de manutenção dessa população.
Quem vê a violência das águas de um rio relativamente curto, como o Mampituba, durante as cheias, sabe que não há peixe que não seja arrastado. Alguns poucos talvez consigam refugiar-se nos restos de banhados ribeirinhos, quase sempre destruídos. O rio levará anos para recuperar-se – e isto se não houver outra cheia. E o estrago vai além. Na cheia do Mampituba, o que terá acontecido com os milhões de toneladas de argila que coloriram o mar de vermelho? Quem, mais tarde, observar novamente o mar, com sua cor azul e transparência normal, não deveria deixar de preocupar-se com o destino do lodo. No mar, esse lodo é um corpo estranho. Ele não pode sedimentar-se na água pouco profunda da praia, porque ali a turbulência é grande. Assim, sedimenta-se nas partes profundas, causando então desastres em grande escala. Os organismos que vivem no fundo do mar estão adaptados à sedimentação normal, à chuva constante de detritos microscópicos dos quais em boa parte até se alimentam, mas não estão adaptados ao sepultamento por espessas capas de lodo. Os sedimentos de inundações como aquela talvez tenham destruído milhares de quilômetros quadrados de fauna bêntica. E essa fauna fixa do fundo faz parte de extensas cadeias alimentares, que podem estender-se por dezenas de milhares de quilômetros. Muita criatura não diretamente afetada pelo lodo morrerá semanas, meses ou anos depois.
Ninguém poderá calcular a extensão dos estragos causados pelas inundações, tanto momentâneos como defasados no tempo. Mas já não podemos nos espantar quando oceanólogos afirmam estar convictos de que o oceano talvez já não tenha mais salvação. É preciso ter em mente que não é só pela poluição e pela pesca predatória que matamos os mares. E, se destruirmos os oceanos, teremos destruído a nós mesmos.
* A versão do texto aqui publicada tem dois pequenos trechos suprimidos. O original, escrito em 1974, pode ser lido no livro “Manual de Ecologia – Do Jardim ao Poder” (L&PM Editores) e no site da Fundação Gaia: fgaia.org.br