Uma engrenagem que precisa de todas as peças trabalhando juntas para ter o desempenho adequado. É dessa forma que moradores, empreendedores e representantes municipais enxergam o processo de desenvolvimento dos dois territórios gaúchos reconhecidos como geoparques mundiais pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em maio deste ano. Com as novas certificações, destinadas à Caçapava do Sul e à Quarta Colônia, o Rio Grande do Sul passou a ser o Estado brasileiro com maior número de locais com essa titulação.
Em ambas as regiões do centro gaúcho, o projeto do geoparque, juntamente com a pandemia de covid-19, impulsionou a tendência do ecoturismo, mudando a rotina até mesmo de quem não pensava em apostar nesse setor. Independentemente das áreas em que atuam, todos se mostram engajados em um mesmo propósito: fomentar a economia e a dar visibilidade para cultura, história e riquezas naturais locais.
Nesse processo, alguns deixaram suas atividades anteriores ou mudaram de cidade para investir no turismo. Houve também quem começou com muito pouco e já sente a necessidade de ampliar o negócio para atender a demanda crescente. Mas, apesar da movimentação por parte das comunidades envolvidas, o entendimento sobre o conceito de geoparque ainda não é uma unanimidade.
Ao ouvir falar sobre essa titulação, muitos pensam em um local fechado, como um parque comum, que tem horário de funcionamento e é administrado por alguma entidade — o que passa bem longe da definição oficial de geoparque. De acordo com a Unesco, os geoparques mundiais são “áreas geográficas unificadas, onde sítios e paisagens de relevância geológica internacional são administrados com base em um conceito holístico de proteção, educação e desenvolvimento sustentável”.
O Brasil possui atualmente cinco geoparques, incluindo Caçapava e Quarta Colônia. Outros três territórios já haviam sido reconhecidos pela Unesco: Caminhos dos Cânions do Sul, que envolve três cidades do Rio Grande do Sul (Cambará do Sul, Mampituba e Torres) e quatro de Santa Catarina (Jacinto Machado, Morro Grande, Praia Grande e Timbé do Sul); Seridó, no Rio Grande do Norte; e Araripe, no Ceará. Os dois primeiros receberam a certificação em abril de 2022, enquanto o terceiro ganhou o reconhecimento em 2006.
Álvaro Machado, biólogo coordenador do programa de segmentação da Secretaria de Turismo (Setur) e coordenador técnico do Comitê de Geoparques, comenta que o Estado tem outros três projetos em andamento, sendo que o chamado Raízes de Pedra está em uma fase mais adiantada e deve ser o próximo a entrar em avaliação. Há ainda o Geoparque do Vale do Rio Pardo e o Geoparque Paisagem das Águas, que são mais recentes (confira mais detalhes no final da reportagem).
— Para o turismo, esse movimento tem um valor muito significativo, porque atrai visitantes. Esses projetos valorizam a questão ambiental, ao mesmo tempo em que geram um envolvimento comunitário muito forte, por meio da cultura e dos produtos que são produzidos ali — aponta Machado.
Os projetos estão vinculados a universidades gaúchas, mesmo que isso não seja um requisito, e apresentam características únicas que fazem com que as regiões se destaquem em determinado aspecto. O Geoparque Quarta Colônia, por exemplo, é uma proposta da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em parceria com o Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável da Quarta Colônia (Condesus). Seu território abrange nove municípios — Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande, Restinga Seca, São João do Polêsine e Silveira Martins —, que são ricos em fósseis de animais pré-históricos e possuem belas paisagens e boa preservação da cultura de seus imigrantes.
Já o Geoparque Caçapava é fruto de uma cooperação entre a UFSM, a Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e a prefeitura de Caçapava do Sul, com o apoio de instituições e empresas locais. Localizada na Região Sudeste, a cidade é considerada a capital gaúcha da geodiversidade, com mais de 30 geossítios catalogados, tendo como principal característica a presença de rochas sedimentares marinhas e continentais muito antigas e de espécies vegetais raras e endêmicas do bioma pampa em seu território.
— Não é um projeto barato, tem ações e atividades que devem ser feitas para manter o reconhecimento. Todos exigem investimento, capacitação e envolvimento da comunidade, por isso o vínculo com a universidade e entre os municípios é tão importante — ressalta o coordenador, que acompanhou as visitas dos avaliadores da Unesco aos três geoparques.
Brasil poderia ter mais geoparques, afirma representante da Unesco
O programa de Geoparques Mundiais foi criado pela Unesco em 2004. Desde então, 195 territórios de 48 países foram nomeados dessa forma — sendo que cinco deles estão no Brasil. Entretanto, o coordenador de Ciências Humanas e Sociais e Ciências Naturais da Unesco no Brasil, Fabio Eon, afirma que é possível expandir esse número em breve:.
— Achamos até que é uma “injustiça” um país assim tão grande e continental como o Brasil ter um número relativamente pequeno de geoparques. Se comparamos com a China, por exemplo, que é um país grande como o Brasil e tem cerca de 30 geoparques, é um número baixo. O Brasil tem uma riqueza geológica única e muito característica, então acho que há uma tendência de crescimento dessa família de geoparques.
O representante da Unesco aponta, contudo, que os países só podem encaminhar duas candidaturas ao órgão por ano, em um processo que envolve o governo federal. Por isso, esse crescimento deve ser lento. Eon também explica que há uma longa lista de critérios geológicos que devem ser atendidos para que um território seja considerado geoparque mundial.
Conforme o representante, um geoparque é basicamente uma área que tem promovido ações de desenvolvimento sustentável e uma melhor integração com a natureza local e que reúne atributos geológicos únicos ou uma beleza estética única daquela região. Esses atributos podem ser fósseis bem preservados, florestas fossilizadas, minerais que só existem ali.
O objetivo da Unesco é criar as condições para que aquela área consiga se desenvolver do ponto de vista ambiental, social e econômico. Quando o título é concedido, se entende que aquele patrimônio único é da humanidade e merece ser preservado para que as futuras gerações o conheçam:
— Mas isso vem com uma responsabilidade por parte da sociedade, do poder público e das universidades, que precisam atuar para garantir as condições e preservação daquele local. Esse título pode ser perdido, por isso, é muito importante esses enlaces com universidades e prefeituras, para que elas garantam que a localidade seja visita e conhecida, mas por meio de um turismo sustentável, não predatório.
A lista de geoparques que desejam se tornar internacionais, os chamados geoparques aspirantes Unesco, é grande, diz Eon. Somente no Brasil, em torno de 20 territórios estão construindo suas candidaturas e alguns têm fortes condições de receber o reconhecimento.
Outros projetos de geoparques gaúchos
O projeto Geoparque Raízes de Pedra foi criado em 2021, por meio de uma parceria entre o Instituto Federal Farroupilha (IFFar), a Unipampa, a UFSM e prefeituras dos municípios que inicialmente integravam o território a ser reconhecido pela Unesco: Jaguari, Mata, Nova Esperança do Sul, São Francisco de Assis, São Pedro do Sul e São Vicente do Sul. Em junho deste ano, Santiago e Toropi aderiram ao projeto.
De acordo com o IFFar, o envio da carta de intenção à Unesco, solicitando a avaliação do projeto, está planejada para ocorrer em 2024. A proposta para conquista do reconhecimento da região é baseada em pilares como educação, sustentabilidade, turismo e geoconservação, com destaque para o turismo sustentável.
Já o Geoparque Paisagem das Águas é um projeto de extensão multidisciplinar da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que envolve seis municípios da região sul do Estado: Pelotas, Rio Grande, Arroio do Padre, Turuçu, São Lourenço do Sul e São José do Norte. Conforme o professor de Geografia da instituição e coordenador do projeto, Adriano Simon, a iniciativa busca valorizar o patrimônio natural e suas relações com o patrimônio cultural do estuário da Lagoa dos Patos, que representa uma área única no que se refere à singularidade dos processos naturais em escala nacional e mundial.
Atualmente, o projeto está na fase de inventariação do geopatrimônio do território, que é a identificação de geossitios, geomorfossítios e demais sítios da geodiversidade. Também estão sendo desenvolvidas ações junto à comunidade local para a popularização do projeto.
O projeto do Geoparque do Vale do Rio Pardo, por sua vez, foi lançado em 8 de julho pela Associação de Turismo da Região do Vale do Rio Pardo (Aturvarp). O território que buscará o reconhecimento da Unesco é composto pelos municípios de Venâncio Aires, Santa Cruz do Sul, Vera Cruz, Vale do Sol, Passo do Sobrado, Vale Verde, Rio Pardo e Candelária. A ideia é que a região se torne um destino de turismo, estudo e pesquisa científica na área da paleontologia.
Segundo o presidente da Aturvarp, Djalmar Marquardt, a partir de agora os municípios que estão na faixa geológica do geoparque precisam aderir ao projeto para dar seguimento à elaboração e cumprimento dos requisitos das próximas fases. Para a elaboração inicial da proposta, a entidade contou com o apoio da Unipampa.
— Será uma nova janela, com benefícios para todos os municípios envolvidos. Esta estrutura vai reforçar o que já existe, como o Museu Paleontológico de Candelária e pontos turísticos conhecidos, como a paleotoca existente no Parque da Gruta, em Santa Cruz do Sul — disse em entrevista à reportagem de GZH, no início deste mês.