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Natal dos pesquisadores da UFRGS na Antártica teve ceia e presente incomum

Relato é do vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jefferson Cardia Simões, que com outros pesquisadores está em solo antártico desde o início de dezembro

Aline Custódio

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Anxo Lamela / Anxo Lamela
Três equipes de pesquisadores brasileiros estão em pontos diferentes da Antártica

Os pesquisadores da missão Criosfera 2022, na Antártica, que estão na Geleira Pine Island, concluíram os trabalhos no local nesta terça-feira (27) e devem começar o deslocamento para outra base de pesquisa, assim que o tempo permitir. Em relatos enviados por e-mail à reportagem de GZH (confira mais abaixo), o líder do grupo, o vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jefferson Cardia Simões, contou como foi o Natal dos seis pesquisadores.

Simões descreveu a atual situação da equipe: estão no meio de um whiteout (branco total), ou seja, as nuvens estão tão baixas e até na superfície, que a luz se dispersa em todas as direções, perdendo o contraste até mesmo de pequenos detalhes. A equipe entrou na terceira semana de estudos na geleira e já aguarda a transferência para o acampamento Criosfera 2, a 430km da Geleira Pine Island.

A função do grupo de Simões — no total, três equipes de pesquisadores estão em pontos diferentes do continente antártico — foi coletar amostras de neve e gelo que acumularam desde o início da revolução industrial. Com a ajuda do clima nos dias mais recentes - céu aberto 24 horas, manhãs com temperaturas entre -18°C e -24°C, consideradas amenas para a região, e com pouco vento -, os cientistas perfuraram 98 metros numa camada de gelo, representando mais de 400 anos de dados ambientais e um levantamento da estrutura da geleira. 

Sinal de derretimento na geleira

Mas a escolha da Pine Island como área de estudo não foi por acaso. Ela é uma das duas maiores massas de gelo da Antártica Ocidental, com centenas de quilômetros de extensão, e está entre as mais sensíveis às mudanças ambientais, principalmente, ao aumento da temperatura das águas superficiais do oceano Austral

— Este aumento de temperatura já está ocorrendo. As geleiras da ilha Pine e a Twaithes, que são duas bacias lado a lado, podem desestabilizar em décadas, estudos apontam que poderiam aumentar o nível dos mares em até seis metros, ao longo de três a quatro séculos. O problema é que já existem sinais que a frente dessas duas geleiras começam a recuar (retroceder). Por isso que vários projetos internacionais prestam atenção a elas. Nosso projeto simplesmente aciona mais dados ao monitoramento de uma dessas geleiras — explica o pesquisador. 

Presente incomum

Antes da finalização, o grupo de Simões celebrou o Natal com uma farta ceia na véspera. No menu, lombo de porco à cerveja chilena, arroz integral com nozes, salada de legumes com pedaços de maçã e morangos congelados com ganache (preparado de creme de leite + chocolate). De bebida, o grupo consumiu vodka com quatro laranjas congeladas e água, sempre feita de neve derretida. Na noite especial, o grupo ainda ganhou um presente incomum: a temperatura da barraca atingiu 5°C.

O objetivo geral da missão, que deve ficar na região até a terceira semana de janeiro de 2023, é investigar as consequências das mudanças do clima para a Antártica e para a América do Sul. Esta já é considerada a maior expedição brasileira feita no interior do continente. O trabalho utilizará tratores polares e aviões com esquis para locomoção em uma área equivalente à região sul do Brasil. 

Além dos professores da UFRGS, o estudo conta com pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e faz parte do Proantar, coordenado pela Secretaria Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm). 

Sem acesso constante à internet, Simões envia mensagens pelo sistema Iridium de telefonia digital, que serve para chamadas de telefone e mensagens de até 100 kB. Os dados saem do Ipad do pesquisador, vão para o conversor, depois ao satélite e, de lá, seguem para um servidor que reencaminha para a web.

Confira o relatório enviado por Simões, nesta terça-feira (27):

"Na verdade, começamos a cansar. A rotina é dura: acordar, trabalhar ao relento levando o cortante vento no rosto, sempre cuidando para os dedos não congelarem. E, é claro, comentando dados. Na barraca de perfuração são longas horas sentados manuseado metais que estão a -30°C (a temperatura do gelo da geleira que estamos). Temos que cuidar para não tocar com a pele nua nesta temperatura, pois congela a epiderme. E deixar parte da pele no metal não é nada agradável.

Ontem e hoje serão dias de empacotar toda a carga (equipamentos, amostras coletadas, itens pessoais e material de comunicação). Aí, aguardar o avião com esqui (um DC 3 modernizado) para levar os seis e cerca de 1,2 toneladas de carga (incluindo, cerca de 360 quilos de amostras de gelo).

Estamos prontos para ser recolhidos, mas agora começa o jogo de paciência (waiting games). Amanhecemos no meio de um whiteout (branco total). Ou seja, as nuvens estão tão baixas (ou mesmo na superfície) que a luz que chega à superfície se dispersa em todas as direções. Se perde o contraste na superfície, até mesmo de pequenos detalhes como uma ondulação por onde caminhamos. Excelente condição para levar tombos. E pior, se perde o horizonte. Ou seja, nessas condições não se tem voos. Agora, é esperar, creio, que 48 horas...um jogo de paciência! Pelo menos não serão 10 dias, como já ficamos uma vez devido a uma sequência de tempestades e whiteouts (mas isso foi mais ao norte, a cerca de 150 km da Estação Antártica brasileira).

Vento quase Zero, uma das condições para a nuvem não sair de nosso acampamento, temperatura ao redor de -13°C. Não temos muito a fazer, a não ser escrever relatórios, ler algum livro e preparar a carga.

Um explorador polar tem que desenvolver paciência e aceitação das condições impostas pela natureza. O tempo meteorológico determinará a velocidade de seus afazeres, quer para deslocamento ou trabalho ao relento. Quanto mais baixa a temperatura e maior a velocidade do vento, mas lentamente trabalhamos. Exige mais cuidados com os pés, mãos e face para evitar congelamento e, principalmente, para não cair em hipotermia. Se o branco total for muito intenso e a visibilidade cair abaixo de 50 metros, ainda temos o risco de se perder, se nos afastarmos. Pior mesmo só uma nevasca e branco total. Se a sensação térmica cair abaixo de -40°C, ficaremos restritos às barracas.

Pelo menos as condições não estão tão ruins e continuamos a empacotar material e e caminhar ao redor do acampamento. Quando o tempo melhorar, o DC 3 Modernizado (conhecido com Bassler) deve vir no buscar.

E interessante observar o ser humano urbano quando colocado aqui na Antártica. Muitos turistas, e pesquisadores de laboratório, vivem muitas vezes na fantasia que estamos libertos dos limites dado pelo tempo meteorológico e tem dificuldade de aceitar essa situação de espera...ah, nossos limites...."


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