Os pesquisadores da missão Criosfera 2022, na Antártica, que estão na Geleira Pine Island, concluíram os trabalhos no local nesta terça-feira (27) e devem começar o deslocamento para outra base de pesquisa, assim que o tempo permitir. Em relatos enviados por e-mail à reportagem de GZH (confira mais abaixo), o líder do grupo, o vice-pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jefferson Cardia Simões, contou como foi o Natal dos seis pesquisadores.
Simões descreveu a atual situação da equipe: estão no meio de um whiteout (branco total), ou seja, as nuvens estão tão baixas e até na superfície, que a luz se dispersa em todas as direções, perdendo o contraste até mesmo de pequenos detalhes. A equipe entrou na terceira semana de estudos na geleira e já aguarda a transferência para o acampamento Criosfera 2, a 430km da Geleira Pine Island.
A função do grupo de Simões — no total, três equipes de pesquisadores estão em pontos diferentes do continente antártico — foi coletar amostras de neve e gelo que acumularam desde o início da revolução industrial. Com a ajuda do clima nos dias mais recentes - céu aberto 24 horas, manhãs com temperaturas entre -18°C e -24°C, consideradas amenas para a região, e com pouco vento -, os cientistas perfuraram 98 metros numa camada de gelo, representando mais de 400 anos de dados ambientais e um levantamento da estrutura da geleira.
Sinal de derretimento na geleira
Mas a escolha da Pine Island como área de estudo não foi por acaso. Ela é uma das duas maiores massas de gelo da Antártica Ocidental, com centenas de quilômetros de extensão, e está entre as mais sensíveis às mudanças ambientais, principalmente, ao aumento da temperatura das águas superficiais do oceano Austral.
— Este aumento de temperatura já está ocorrendo. As geleiras da ilha Pine e a Twaithes, que são duas bacias lado a lado, podem desestabilizar em décadas, estudos apontam que poderiam aumentar o nível dos mares em até seis metros, ao longo de três a quatro séculos. O problema é que já existem sinais que a frente dessas duas geleiras começam a recuar (retroceder). Por isso que vários projetos internacionais prestam atenção a elas. Nosso projeto simplesmente aciona mais dados ao monitoramento de uma dessas geleiras — explica o pesquisador.
Presente incomum
Antes da finalização, o grupo de Simões celebrou o Natal com uma farta ceia na véspera. No menu, lombo de porco à cerveja chilena, arroz integral com nozes, salada de legumes com pedaços de maçã e morangos congelados com ganache (preparado de creme de leite + chocolate). De bebida, o grupo consumiu vodka com quatro laranjas congeladas e água, sempre feita de neve derretida. Na noite especial, o grupo ainda ganhou um presente incomum: a temperatura da barraca atingiu 5°C.
O objetivo geral da missão, que deve ficar na região até a terceira semana de janeiro de 2023, é investigar as consequências das mudanças do clima para a Antártica e para a América do Sul. Esta já é considerada a maior expedição brasileira feita no interior do continente. O trabalho utilizará tratores polares e aviões com esquis para locomoção em uma área equivalente à região sul do Brasil.
Além dos professores da UFRGS, o estudo conta com pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e faz parte do Proantar, coordenado pela Secretaria Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm).
Sem acesso constante à internet, Simões envia mensagens pelo sistema Iridium de telefonia digital, que serve para chamadas de telefone e mensagens de até 100 kB. Os dados saem do Ipad do pesquisador, vão para o conversor, depois ao satélite e, de lá, seguem para um servidor que reencaminha para a web.
Confira o relatório enviado por Simões, nesta terça-feira (27):
"Na verdade, começamos a cansar. A rotina é dura: acordar, trabalhar ao relento levando o cortante vento no rosto, sempre cuidando para os dedos não congelarem. E, é claro, comentando dados. Na barraca de perfuração são longas horas sentados manuseado metais que estão a -30°C (a temperatura do gelo da geleira que estamos). Temos que cuidar para não tocar com a pele nua nesta temperatura, pois congela a epiderme. E deixar parte da pele no metal não é nada agradável.
Ontem e hoje serão dias de empacotar toda a carga (equipamentos, amostras coletadas, itens pessoais e material de comunicação). Aí, aguardar o avião com esqui (um DC 3 modernizado) para levar os seis e cerca de 1,2 toneladas de carga (incluindo, cerca de 360 quilos de amostras de gelo).
Estamos prontos para ser recolhidos, mas agora começa o jogo de paciência (waiting games). Amanhecemos no meio de um whiteout (branco total). Ou seja, as nuvens estão tão baixas (ou mesmo na superfície) que a luz que chega à superfície se dispersa em todas as direções. Se perde o contraste na superfície, até mesmo de pequenos detalhes como uma ondulação por onde caminhamos. Excelente condição para levar tombos. E pior, se perde o horizonte. Ou seja, nessas condições não se tem voos. Agora, é esperar, creio, que 48 horas...um jogo de paciência! Pelo menos não serão 10 dias, como já ficamos uma vez devido a uma sequência de tempestades e whiteouts (mas isso foi mais ao norte, a cerca de 150 km da Estação Antártica brasileira).
Vento quase Zero, uma das condições para a nuvem não sair de nosso acampamento, temperatura ao redor de -13°C. Não temos muito a fazer, a não ser escrever relatórios, ler algum livro e preparar a carga.
Um explorador polar tem que desenvolver paciência e aceitação das condições impostas pela natureza. O tempo meteorológico determinará a velocidade de seus afazeres, quer para deslocamento ou trabalho ao relento. Quanto mais baixa a temperatura e maior a velocidade do vento, mas lentamente trabalhamos. Exige mais cuidados com os pés, mãos e face para evitar congelamento e, principalmente, para não cair em hipotermia. Se o branco total for muito intenso e a visibilidade cair abaixo de 50 metros, ainda temos o risco de se perder, se nos afastarmos. Pior mesmo só uma nevasca e branco total. Se a sensação térmica cair abaixo de -40°C, ficaremos restritos às barracas.
Pelo menos as condições não estão tão ruins e continuamos a empacotar material e e caminhar ao redor do acampamento. Quando o tempo melhorar, o DC 3 Modernizado (conhecido com Bassler) deve vir no buscar.
E interessante observar o ser humano urbano quando colocado aqui na Antártica. Muitos turistas, e pesquisadores de laboratório, vivem muitas vezes na fantasia que estamos libertos dos limites dado pelo tempo meteorológico e tem dificuldade de aceitar essa situação de espera...ah, nossos limites...."