Uma pesquisa que pretende explicar a influência da descarga de água doce subterrânea na proliferação de microalgas no litoral gaúcho está prestes a confirmar a ligação entre a manutenção ao longo do ano destes organismos e o famoso "mar chocolatão". Ainda que não esteja concluído, o estudo desenvolvido por pesquisadores do Centro de Estudos Costeiros, Liminológicos e Marinhos (Ceclimar), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande (Furg), já aponta esta relação.
Segundo a doutora em oceanografia física, química e geológica Cacinele Mariana da Rocha, que é uma das pesquisadoras e também diretora substituta do Ceclimar, a questão envolvendo a água subterrânea no continente que se desenvolve em toda a costa do Rio Grande do Sul vem sendo observada há, pelo menos, uma década como um dos possíveis motivos de floração ao longo de todo o ano de microalgas na costa. Os pesquisadores sabiam que as florações ocorriam durante o inverno, por conta da corrente marinha das Malvinas - que costuma trazer muitos nutrientes. Havia também a descarga de nutrientes vinda dos rios Tramandaí e Mampituba. Porém, no restante do ano, permanecia a dúvida de como as microalgas seguiam se proliferando. O grupo, então, passou a monitorar de Dunas Altas, em Palmares do Sul, até Torres, no Litoral Norte.
— O que se apresentou foi um processo intenso de descarga de água doce subterrânea no mar, que varia conforme alguns fatores. Principalmente, a chuva no continente. Mas está sendo possível confirmar que esta descarga está garantindo a chegada de nutrientes na praia — relata Cacinele.
A água subterrânea se forma a partir da infiltração de chuvas, escoamento e de lagoas e rios. Este acúmulo forma os aquíferos, que são enormes depósitos subterrâneos capazes de fornecer água suficiente para suprir os mais variados usos. A água subterrânea pode chegar a aquíferos profundos, de onde leva milhares de anos para retornar ao meio ambiente, ou mesmo ficar em um depósito de maior profundidade por períodos muito longos. No ambiente costeiro gaúcho, pode ser encontrada desde o campo de dunas, passando pelo início da praia, a zona de surfe, chegando até o fundo do mar.
— Este projeto (estudo em desenvolvimento) é novo porque faz o primeiro link dos organismos com o ambiente, possibilitando perceber se há ou não, de fato, uma relação entre a descarga subterrânea de água doce, cheia de nutrientes, com o desenvolvimento destes organismos na faixa costeira do litoral do Rio Grande do Sul. Pelos primeiros resultados, se mostra comprovada esta relação — atesta Cacinele.
O estudo inicial da atual pesquisa ocorreu entre setembro de 2019 e março de 2020, quando a então estudante de biologia marinha Thamara Moreira captou semanalmente água subterrânea em seis pontos específicos da praia de Morada do Sol, em Imbé, para investigar o papel das descargas de água subterrânea (DAS) na variação temporal do zooplâncton marinho na zona de arrebentação no litoral gaúcho e se esta variação estava relacionada à DAS. O levantamento inicial confirmou a conexão proposta pela estudante, que foi orientada por Cacinele e pelo também professor do Ceclimar, Ng Haig They.
— Tivemos como resultado que a água subterrânea do litoral gaúcho libera entre outros nutrientes nitrogênio, fosfato e silicato. De alguma forma, eles beneficiam o crescimento de microalgas que deixam o aspecto da água como chocolatão. Percebemos também que um nutriente específico, o silicato, faz parte da carapaça da Asterionellopsis guyunusae, uma microalga comum no nosso litoral. Justamente, aquela que altera o aspecto do mar e o deixa na cor marrom — explica Thamara.
O estudo também já apontou que existe uma distância de tempo entre a chegada da água doce no mar e o crescimento das microalgas se proliferarem, primeiramente, e só depois o zooplâncton. Se a DAS ocorre hoje, há um desdobramento de uma a duas semanas, em média, para o nutriente ser assimilado pela microalga se alimentar e ter uma alta reprodução, e mais duas a três semanas para beneficiar o zooplâncton que se desenvolve na sequência. Estes períodos são variáveis e dependem muito de cada uma das espécies.
A pesquisa ganhou aporte financeiro para continuar até junho de 2023. Por isso, Thamara e Cacinele, em parceria com cientistas da FURG, seguem semanalmente recolhendo amostras do mesmo ponto onde a estudante iniciou o projeto que culminaria na sua monografia final. Uma vez por semana, as duas vão à praia da Morada do Sol, em Imbé, para realizarem as coletas semanais de água.
A equipe de GZH acompanhou uma destas ações, a da semana 71 - no total, serão 104 semanas de amostras. No primeiro ponto, próximo às dunas costeiras, é feito um buraco de um metro de profundidade. Com o auxílio de uma bomba peristática (cuja função é puxar o líquido depositado no subterrâneo) são retirados oito litros de água. O segundo está localizado no ponto em que o mar alcança na areia, a zona de varrido. Os outros quatro são dentro do mar, com distância de 10 metros entre cada um deles. Ainda na praia ocorrem as primeiras análises, como medição de temperatura e de densidade da água. Depois, todo o material é levado para o laboratório do Ceclimar, onde os estudos são aprofundados.
Cacinele explica que as lagoas do litoral gaúcho, identificadas como compartimentos hídricos, estão todas conectadas. Há um aporte de água vindo do aquífero para as lagoas e, vice-versa, e também há comunicação com o mar por baixo desta zona costeira. Dependendo das condições climáticas, a água marinha pode entrar com mais força para o continente, no caso de maré mais alta, e em períodos chuvosos no continente, a descarga desta água doce será maior em direção ao mar. Este processo ocorre o tempo todo.
Além de ter influência das microalgas, o chocolatão do mar gaúcho também pode ser favorecido em variado grau pelo vento, pelas ondas e pela corrente marinha.
— A cor e o aspecto do mar estão relacionados às microalgas, mas também à ressuspensão de material. Por exemplo, se o mar está com muita energia, como durante uma frente, ele revolverá mais sedimento, causando o surgimento de mais nutrientes na água e favorecendo o desenvolvimento das microalgas. É um processo em cadeia — justifica Cacinele.
De acordo com as pesquisadoras, as amostras serão recolhidas até junho de 2023, quando passarão a ser produzidos relatórios finais e artigos sobre o tema. Confirmando a relação que já tem base inicial, a equipe pretende prospectar novos projetos para seguir o estudo. Numa próxima etapa, a meta será constatar a influência destas microalgas em atrair uma fauna maior no litoral, como a atração de micro-organismos, cardumes de peixes ou de visitas de outros animais. Estas dúvidas, alerta Cacinele, ainda estão em vias de serem respondidas.