Por Marcelo Dutra da Silva
Ecólogo, professor da Furg
Diante da crise climática e de perspectivas muito ruins para o cenário brasileiro, de risco iminente de apagões e restrições na oferta de energia (os reservatórios esvaziaram), salta aos olhos o nosso potencial de geração limpa e o vasto campo de oportunidades nessa área. Há mais de 750 parques eólicos em operação no território do país, com mais de 10 mil torres em funcionamento. De acordo com o Global Wind Energy Council, o Brasil ocupa a sétima posição no ranking mundial de geração eólica, com destaque para o Nordeste, que sozinho responde por cerca de 90% da nossa capacidade instalada. E o crescimento do setor impressiona pela velocidade. Mais de 12 gigawatts (GW) acabam de ser outorgados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), distribuídos em 353 novos empreendimentos de geração. Desses, 170 já estão em construção. E a expectativa é de que se alcance a marca dos 25 GW nos próximos dois anos.
No litoral gaúcho, por exemplo, o vento é constante. Está entre os melhores do mundo para produzir energia, com potência de 500 W/metro quadrado (fluxo médio de 7,5 m/s, a 50m de altura). Apenas 13% da superfície terrestre apresenta vento na velocidade média igual ou superior a essa marca, segundo a Organização Mundial de Meteorologia (WMO). Medições indicam a possibilidade de 103 GW em terra firme e mais 114 GW sobre lagoas e oceano, a 100m de altura. Se considerada apenas a superfície da Lagoa dos Patos, a reserva energética pode ultrapassar os 24,5 GW. Um poder de geração 80 vezes maior do que o dos parques de Osório, que têm capacidade instalada de 300 MW.
Portanto, um recurso farto e renovável, que não pode ser utilizado sem critério, sem cuidado, como mais um negócio lucrativo, capaz de atrair novos investimentos. E é por isso que a ideia de um parque eólico sobre a Lagoa levanta tantas preocupações.
O governo do Estado abriu consulta pública, manifestamos nossas dúvidas, mas foi tanta confusão e ausência de esclarecimentos na apresentação da proposta que ficou evidente que há grande lacuna de informações. Uma proposta que parece lançada no ar, sem nenhum estudo, com poucas soluções técnicas e muita vontade política. A começar pelos termos da minuta do edital publicado, que define ser de responsabilidade do concessionário a prospecção dos locais “eficientes e ambientalmente adequados” para a instalação e operação de aerogeradores na Lagoa. Ou seja, o Estado transfere para as empresas a responsabilidade de definir onde pôr os aerogeradores sem uma avaliação prévia, referência ou estudo, quanto ao potencial de impacto deste novo elemento na paisagem e sua capacidade de interferir na dinâmica do sistema e dos usos compartilhados nesse espaço. E este é o ponto!
A Lagoa comporta diversos usos, alguns mais sensíveis e dependentes da integridade do sistema. A atividade da pesca, por exemplo, que já sente a redução do estoque, pode sofrer fortes mudanças e isso levar mais prejuízo e mais miséria para centenas de famílias. O que não significa dizer que a geração de energia não seja uma possibilidade. É claro que é viável e precisamos tirar o melhor proveito disso.
Só não é possível querer fazer isso sem um plano, sem um instrumento que nos permita reconhecer cada uso, demanda e conflito, no seu devido lugar. E, neste momento, não há sequer um termo de referência que liste as diretrizes metodológicas para a elaboração dos estudos de impacto ambiental (EIA/Rima) necessários para o licenciamento de parques eólicos em lagoas gaúchas, nem resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) que regule esse tipo de empreendimento em águas estaduais. Uma loucura! E chamar isso de sustentável, uma loucura ainda maior.
O discurso fácil da sustentabilidade não se sustenta. Não é tão simples assim e envolve um processo de construção política e social que é bem diferente de tudo o que está aí. Um projeto de economia, com características de sustentabilidade, deve buscar, para além do sucesso financeiro da captação de investimentos, lucro, arrecadação, emprego e geração de renda, também a qualidade de vida e a preservação do meio ambiente. Que é a parte mais difícil. Afinal, não se constrói desenvolvimento destruindo. A base de qualquer economia saudável é o respeito às pessoas e o uso racional dos recursos e dos serviços prestados pela natureza. Não se faz economia sustentável degradando, flexibilizando leis e/ou alinhando-se a políticas negacionistas. Aliás, o desenvolvimento sustentável jamais será alcançado a menos que façamos uma verdadeira revolução social, baseada na associação inseparável entre ecologia e economia. Então, não basta sair por aí colocando torres de geração eólica e dizer “somos verdes e sustentáveis”.
Sem um plano, não vai dar certo.