Encravada num trecho de mata fechada do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, uma casa de paredes duplas de concreto erguida sobre um leito de rochas guarda o legado de uma vida. Ao longo de quase três décadas, a edificação foi um dos sonhos visionários de Flavio Horowitz, falecido em novembro de 2020, aos 67 anos. Nas próprias palavras, Horowitz dizia ser “mais do que apenas um professor universitário em Física, um cidadão cientista com paredes porosas”.
Foi ideia do docente vinculado ao Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) construir a CasaE, identificada como um ambiente experimental e demonstrativo em evolução, totalmente baseado nos conceitos da física para projetar e testar inovações e desenvolver e demonstrar tecnologias viáveis e não agressivas ao meio ambiente usando energia e recursos renováveis (veja detalhes do ambiente abaixo). No início dos anos de 1980, Horowitz adquiriu um hectare e meio na Lomba do Pinheiro para, um dia, erguer a edificação.
– Ele queria criar uma casa autossustentável para que principalmente as pessoas de baixa renda pudessem construir sem ter gasto excessivo em energia elétrica, principalmente com aquecimento e ar-condicionado. Prezava pelo conforto térmico – explica a médica cardiologista Estela Suzana Horowitz, viúva do cientista, com quem foi casada durante 42 anos.
Nascido no Rio de Janeiro, primeiro filho de três irmãos, ele se mudou para a capital gaúcha ao lado da mãe, já viúva, e dos irmãos quando estava prestes a fazer o vestibular, no início da década de 1970. Conhecido desde a infância pela facilidade com os números, era observador, curioso, questionador e muito inteligente. Na mesma época em que optou por cursar Física na UFRGS, conheceu Estela por meio de amigos em comum. A amizade virou casamento em 1978 e, antes de partirem para quatro anos nos EUA, onde ele faria o doutorado no Arizona, o casal comprou o terreno á pensando em mudar-se para o local no retorno ao Brasil – quando o físico passaria a dar aulas em definitivo no campus da UFRGS no bairro Agronomia.
Não foi o que ocorreu. Na volta, por considerarem a área distante do centro urbano, mantiveram-na como sítio. Flavio, então, ergueu uma casa pré-moldada, passou a plantar árvores, criar patos e galinhas e abriu dois açudes no terreno. A ideia da casa sustentável, porém, seguia sendo desenvolvida.
Somente nos anos 1990 a CasaE começou a ser erguida – com recursos próprios. No final da década, o arquiteto Giovani de Azambuja, que havia estudado Arquitetura na UFRGS, conheceu Horowitz e se interessou pelo projeto. Curioso, Azambuja recorda ter descoberto a proposta a partir das definições que o cientista indicou amparado por pesquisas nas áreas de física, matemática, engenharia e biologia:
– Quando cheguei ao local, havia a base de uma casa e a parede original de pedra, com uma viga de concreto degradada pelo tempo. Dava para ver que era um projeto começado há muito tempo, um sonho que vinha sendo construído e focado nos princípios que a física oferecia, como a climatização natural.
Azambuja define o projeto como “uma casa construída dentro de outra casa, onde o ar circula em todo o seu contorno, passando por baixo do chão, entre as paredes, e podendo sair na cobertura ou só recirculando, como uma circulação infinita pela casa. No momento em que o proprietário quiser ter o controle, dependendo da estação do ano, pode abrir ou fechar os dispositivos existentes, que liberam a saída de ar quente ou frio”.
Quem também acompanhou a construção do imóvel foi o engenheiro mecânico Roberto Spinato Ribeiro, amigo de Horowitz há mais de duas décadas. Ele o conheceu no laboratório do Grupo Laser & Óptica do Instituto de Física da UFRGS, onde ambos se tornaram parceiros de pesquisa. Certo dia, o cientista comentou sobre a CasaE e o engenheiro mecânico, também curioso, se interessou. Juntos, os dois buscaram soluções sustentáveis e de baixo custo para o empreendimento.
Além de tirar dinheiro do próprio bolso, Horowitz obteve financiamentos com empresas parceiras – que doavam peças projetadas especificamente para a casa – e editais de pesquisa (todos os parceiros são citados no site do projeto: ufrgs.br/casae).
Depois de inaugurada, em dezembro de 2009, a CasaE recebeu dois importantes reconhecimentos. Em 2015, o prêmio Renewable Energy da Energy, Science & Technology (Est) – International Conference and Exhibition, em Karlsruhe (Alemanha), em 2015, e, em 2016, o prêmio Boas Ideias de Sustentabilidade, da Fundação Gaia, na Virada Sustentável de Porto Alegre.
Horowitz atraiu a atenção de biólogos, engenheiros e arquitetos, e a CasaE, ao longo dos anos, recebeu visitas de estudantes do Ensino Fundamental à pós-graduação. Várias pesquisas de mestrado e doutorado foram baseados no tema, destaca Ribeiro. Determinado a passar adiante os conhecimentos obtidos até então, Horowitz escreveu Antes que a Casa caia: o Desenvolvimento Sustentável (Brazil Publishing) seu primeiro livro.
– A casa não passou três meses sem inventarmos algo novo para ela. As ideias surgiam dia a dia. Depois de pronta, foi entregue para a UFRGS (em comodato). Nunca parou no tempo. Só parou, infelizmente, porque o Flavio faleceu – diz o engenheiro.
Em 2008, Horowitz sentiu as primeiras manifestações de um mieloma múltiplo (câncer de um tipo de célula da medula óssea responsável pela produção dos anticorpos que combatem vírus e bactérias). O diagnóstico, no entanto, só foi confirmado quatro anos depois. Em meio às pesquisas e ao trabalho na universidade, entre 2014 e 2018, ele enfrentou três transplantes autólogos de medula óssea e importou medicamentos inexistentes no Brasil para combater a enfermidade.
No ano passado, o mieloma voltou a se manifestar com mais força e Flavio enfrentou seis meses de quimioterapia. Neste período, escreveu o segundo livro, A Sustentabilidade nos Tempos de Pandemia (Brazil Publishing). A obra é uma análise crítica das ameaças globais à espécie humana associadas à crise sanitária atual. Ele abre as notas do autor com uma frase do seringueiro e ambientalista amazônico Chico Mendes, assassinado em 1988: “Não quero flores no meu enterro, pois sei que vão arrancá-las da floresta”. Entre as 124 páginas, há um capítulo relembrando o projeto da CasaE.
Em novembro, Flavio foi internado para se preparar para o quarto transplante. Acabou falecendo um dia antes do lançamento do segundo livro.
– Ele tinha uma resiliência extrema, tentando se adaptar ao mundo e às adversidades que a vida nos traz. Mesmo doente, fez questão de finalizar o livro – recorda a viúva.
Fechada há mais de um ano, a CasaE voltará a ser visitada por Estela – que não costumava ir ao local com frequência. Ela pretende transformar a área do entorno em projeto de horta escolar, ensino o plantio às crianças. Para isso, pensa em buscar parcerias com as escolas da região. Ribeiro deve auxiliá-la na manutenção – por dois motivos: ajudar a manter vivo o sonho do amigo e também a pesquisa em desenvolvimento.
Ex-aluno de Flavio e hoje coordenador do Grupo Laser & Óptica, do Instituto de Física, Marcelo Barbalho Pereira ressalta que ainda não foi decidido o destino do projeto junto à UFRGS.
– É necessária a supervisão por um professor capacitado a abraçar a ideia e ampliar o seu alcance, seja um profissional da área da física, de engenharia ou de alguma área correlata a energias renováveis, por exemplo – explica Pereira.
Mesmo depois de aposentado, Horowitz mantinha vínculo com a UFRGS como orientador da graduação e da pós-graduação e participava das pesquisas no Grupo Laser & Ótica. Entre essas, coordenava um projeto de desenvolvimento de aplicações óticas e multifuncionais de materiais nanoestruturados, nas áreas de energias renováveis e de sensoriamento de doenças. O cientista também colaborava no projeto coordenado por Pereira, que trata do desenvolvimento de testes rápidos de detecção de covid-19.
A casa idealizada por Flavio busca as culturas e a antropologia do lugar, se encontra com o passado de culturas mais inteligentes, menos parasitárias, menos reféns e mais livres. No século 21, precisamos de técnicas integradoras, da física, da ecologia, da construção e com toda uma compreensão do que se trata um modelo real de cidade inteligente. Um modelo já pensado pelo Flavio lá atrás. Este é o legado dele
RUALDO MENEGAT
Geólogo, professor da UFRGS
Para o geólogo e professor da UFRGS Rualdo Menegat, também colíder para a América Latina do International Geoscience Programme (IGCP) Unesco-IUGS Geologia e Sociedade, Horowitz foi um visionário, e a CasaE, um dos experimentos mais importantes da UFRGS nos últimos 50 anos.
– Ela traz in loco um experimento que é o uso da energia sutil para a climatização e a vida com qualidade numa residência para a nossa região. Ela não gasta energias vindas de fora. Não adianta importar modelos que não consideram o lugar onde a casa está inserida. Cada lugar da Terra é uma potência, se soubermos lê-lo. A maior inteligência que podemos ter enquanto cultura que vive no planeta é não importarmos de outros lugares coisas que já existem no próprio local e só não se sabe usar – ensina.
Menegat é o autor do prefácio do livro mais recente de Horowitz.
– A CasaE é um sistema muito interessante e educativo porque prova que a física de baixas energias funciona, se souber ser aplicada. Em sala de aula se aprende a linguagem, mas não o experimento. E esta foi a ideia do Flávio: colocar um experimento em ação para fazer a demonstração. É muito importante para as novas gerações pensarem que podemos ter soluções tecnologicamente avançadas, que, por serem brandas, se encontram com as culturas ancestrais e aproveitam os serviços do ecossistema local – aponta o geólogo.
Para ele, a visão de Horowitz era um contraponto às cidades contemporâneas, que não sabem ler o lugar onde estão inseridas, tornando-se parasitas que importam tudo de outros lugares.
– A casa idealizada por Flavio busca as culturas e a antropologia do lugar, se encontra com o passado de culturas mais inteligentes, menos parasitárias, menos reféns e mais livres. No século 21, precisamos de técnicas integradoras, da física, da ecologia, da construção e com toda uma compreensão do que se trata um modelo real de cidade inteligente. Um modelo já pensado pelo Flavio lá atrás. Este é o legado dele– resume o geólogo.
Algumas soluções da CasaE
Claraboia e janelas de teto – A claraboia atende simultaneamente a: 1) entrada de iluminação natural no interior da casa; 2) ventilação com saída de ar quente em dias de verão, propiciando a entrada de ar resfriado da área sombreada e das subcorredores de rochas, e, em dias típicos de inverno, manutenção do ar quente em circulação no interior da casa com entrada de iluminação natural, por meio das “janelas reguláveis de teto”. Detalhe: a regulagem inverno/verão permite o controle de fluxo de ar sem prejuízo à iluminação natural. Veja:
Subcorredores de rochas, dutos e aeradores – Para ventilar e resfriar a casa em dias quentes, foram criados corredores de rochas dentro de dutos de concreto voltados para a área de fundos da casa, onde há mata nativa e sombra o tempo inteiro. O fluxo de ar por convecção forçada (quando o movimento dos fluidos é influenciado por meios externos) é produzido por exaustores embutidos nos dutos de concreto dentro dos subcorredores de rochas, com a saída direcionável pelos aeradores projetados para cada duto:
Aquecimento de água – São usados coletores termossolares poliméricos sobre o telhado. Eles são voltados para a direção próxima à do zênite solar (quando o sol está exatamente na vertical), ligados ao sistema de reservatórios por termo-sifão (convecção natural) e gravidade, sem bombas e independente do uso de energia elétrica. Na ausência prolongada do sol, foi integrado ao sistema um forno a lenha reciclado, com serpentina conectada ao mesmo reservatório de água quente do sistema termo-sifão solar:
Telhado sazonal – Há uso estratégico da chamada “vegetação caduca” (temporária), que faz sombra no verão e permite a entrada do sol no inverno. Essa vegetação fica disposta sobre as telhas transparentes, onde é disposta uma malha de arame condutora do crescimento distribuído das trepadeiras. Para chegar ao telhado, elas são conduzidas desde o local onde estão suas raízes:
Miniestação meteorológica – Há medição própria controlada das condições externas de vento, da irradiação e da temperatura. Esses índices servem de referência climática para o estabelecimento das condições internas da casa:
Janela de piso – Para o funcionamento contínuo do sistema de climatização, o fluxo de ar por convecção natural, entre os subcorredores de rochas e o espaço de vivência, é ajustado pelas chamadas “janelas de piso” presentes nos vários ambientes:
Solarium – A CasaE apresenta janelas frontais e também o telhado transparentes, este último com forro retrátil, como variante de captação solar direta e indireta. Dessa forma, o ingresso da radiação do sol pode ser controlado de forma simples:
Tratamento de resíduos – As águas produzidas pelas lavagens na pia da cozinha, no lavatório e nos chuveiros passam pela câmara de decantação e seguem ao filtro anaeróbico. Já as águas produzidas pelos vasos sanitários (alimentados pelo reservatório de captação de chuva), passam por decantação e digestão em duas câmaras, seguindo ao mesmo filtro. Elas se juntam e, depois de tratamento pela cultura de bactérias que o colonizaram, podem ser reaproveitadas no jardim ou no pomar.
Dicas para uso de energia, água e recursos naturais em casa
- Vegetação no entorno: coloque treliça ou malha junto às aberturas voltadas para Leste ou Oeste e instale trepadeiras de folhas caducifólias – que fazem sombra no verão e dão passagem ao sol no inverno, ao cair. As que se agarram às paredes podem se tornar uma “segunda pele de verão” do ambiente.
- No verão, faça aberturas de saída no lado oposto das entradas de ar. A velocidade do fluxo de ar será aumentada se a área de saída for maior do que a de entrada (efeito Venturi, como numa chaminé).
- No inverno, isole as áreas superiores e inferiores do ambiente principal de vivência. Se necessário, empregue estufa ou lareira de maior rendimento, maior eficiência e menor produção de emissões poluentes.
- Para reduzir o consumo de energia elétrica dos condicionadores de ar, utilize sombreamento (externo, se possível) e janelas com vidros duplos.
- Use captação termo-solar ou gás (natural, se possível) em sistema de passagem para diminuir o consumo de eletricidade no aquecimento de água.
- Além da separação seletiva do lixo, que permite a reciclagem do material inorgânico, faça compostagem aeróbica com os restos de cozinha, usando recipientes bem ventilados. A fermentação, que aquece sem produzir cheiro indesejável, resulta em fertilizante para plantas (em estágio posterior, podem ser introduzidas minhocas para a produção de pré-humus).
- Se o prédio tem sistemas de água separados, um para descargas de vasos sanitários e outro para demais saídas de consumo, alimente o das descargas com a captação de chuva por calhas no telhado.
- A água da chuva pode também ser estocada e usada diretamente em jardins ou floreiras.
- Use lâmpadas e arranjos de LEDs. Elas diminuem o consumo elétrico e contribuem com o meio ambiente por não poluí-lo com mercúrio.
Fontes: “A Sustentabilidade nos Tempos de Pandemia” e “Antes que a Casa Caia”, livros de Flavio Horowitz pela editora Brazil Publishing