A relação de altos e baixos entre o homem e a baleia, claro, não é exclusividade dos catarinenses. A caça ao animal na maneira como existe até hoje vem desde o século 13, quando baleeiros bascos começaram a capturar e matar as baleias-francas da costa europeia. Historicamente, as grandes potências baleeiras do século 18 até o início do século 20 foram a França, os Estados Unidos e a Inglaterra – sempre com fins comerciais.
Até o fim do século 19, o principal produto era o óleo: a Revolução Industrial na Inglaterra começou com óleo de baleia lubrificando as primeiras máquinas. Depois, o material também foi muito usado como ligante para argamassa de construções e iluminação pública. Havia ainda a utilização muito comum nos séculos 18 e 19 das barbatanas da boca das baleias-francas, com as cerdas confeccionando espartilhos para as grandes damas da sociedade europeia.
No século 20 a carne passou a também ser um elemento importante e o Japão e a Noruega tiveram protagonismo nisso, com as invenções do navio a vapor e do canhão de arpão instalado nestes navios, que permitiram a caça de espécies maiores, de hábito mais oceânico e que se deslocavam com maior velocidade. Assim a caça ficou facilitada em regiões da Antártica e o mercado alimentício se popularizou.
Com a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, a indústria baleeira ficou paralisada por conta do conflito no mar. No pós-guerra, com a população japonesa passando fome e sem recursos, o governo do país reativou essa indústria, e a carne passou a ser um elemento fundamental na recuperação nipônica. Ainda com abundância de baleias em muitas regiões, o acesso era facilitado e se conseguia um volume grande de carne em relativo curto espaço de tempo.
Com o passar das décadas, França e Inglaterra pararam de caçar principalmente porque a atividade se tornou antieconômica. As populações de baleia minguavam e mandar frotas para o outro lado do mundo não compensava mais pela demanda. Já nos EUA, a prática cessou nos anos 1970 pela própria pressão popular.
Hoje, restam fundamentalmente Japão, Noruega e Islândia como caçadores – os nipônicos alegando motivos científicos, os nórdicos abertamente por causas comerciais, todos amparados por brechas na moratória internacional da caça às baleias que vigora desde 1986.
Subsídios e interesses políticos em nome do crescimento econômico
Oficialmente, as três nações afirmam haver necessidade da caça para a economia dos países. Na prática, o lobby e influências políticas são elementos centrais. Isso porque em todos os casos, há grandes subsídios dos governos à indústria baleeira, atendendo interesses de grupos políticos.
Na Islândia, uma família poderosa comanda a principal indústria baleeira, enquanto na Noruega as províncias mais a noroeste, onde a força da caça é maior, têm representações firmes em favor na prática na política nacional. No Japão, o parlamento conhecidamente tem uma fortíssima bancada da pesca. Essa bancada domina a agência de pesca nipônica e subsidia o instituo que foi criado para manter a caça científica andando no país. Só no Japão, estima-se um subsídio de US$ 20 milhões por ano à indústria baleeira. Em 2011 houve inclusive denúncias da ONG Sea Shepherd, uma das principais ativistas na prevenção das baleias, de que o governo japonês direcionou dinheiro recebido de doações para os atingidos pelo tsunami para baleeiros. À época, a justificativa foi de que alguns dos baleeiros que trabalham em navios da frota baleeira na Antártica eram de comunidades atingidas pelo terremoto e tsunami.
– Apesar de toda a discussão, a caça está fadada a desaparecer nas próximas décadas. Logo não vai haver mercado algum. O que fazemos hoje é um controle de danos esperando que esses países contra a moratória percebam que não há viabilidade – destaca o ambientalista José Truda Palazzo Júnior, fundador do Projeto Baleia-franca, integrante do Instituto Baleia Jubarte e uma das principais referências do país na proteção às baleias.
Hoje, basicamente ainda se usa determinados pedaços de carne e gordura para alimentação, embora com demanda cada vez menor. O óleo, principal produto nos tempos áureos da caçada, não tem mais aplicação industrial depois que se começou a usar o óleo sintético feito a partir de derivados do petróleo.
Com o comércio proibido por convenções que regulamentam a venda de fauna e flora ameaçados de extinção e mecanismos que permitem o rastreamento e identificação da origem dos produtos, é praticamente impossível que algum material orgânico de baleia esteja nos pratos ou em objetos ao redor do mundo. A não ser no Japão, Noruega e Islândia, que descumprem esses tratados para fazer negócio entre eles.
Países formam comissão para dividir cotas e áreas de caça
O embrião da Comissão Internacional da Baleia (CIB), que se reuniu em Florianópolis entre 4 e 14 de setembro, nasceu de um esforço diplomático argentino antes da Segunda Guerra Mundial ao ser perceber que a caça das baleias estava levando à extinção várias populações regionais e ameaçando a sobrevivência das espécies como um todo. Foi proposto então à Liga das Nações, antecessora à Organização das Nações Unidas (ONU), um tratado firmado em 1937, mas que acabou não vigorando justamente por conta da guerra que eclodiria dois anos depois.
Passado o conflito, em 1946 os países baleeiros, que estavam reorganizando a atividade de caça do animal pelo mundo, resolveram criar o tratado de Washington, dando origem à CIB. Em resumo, formou-se um clube de baleeiros com a intenção de evitar conflitos e distribuir cotas e áreas de caça.
À medida que a humanidade foi se conscientizando mais acerca do meio ambiente e desenvolvimento sustentável, nos anos 1970 já ficou claro que a caça comercial das baleias não era sustentável. Inclusive com as populações de vários países protestando e cobrando pelo fim da prática.
Aos poucos, os países foram deixando de caçar e também mudaram de posição política dentro da comissão, passando a defender a preservação dos animais. Isso levou à discussão sobre a moratória da caça comercial, em 1982, com aplicação prática a partir de 1986. Apesar da proibição ter 32 anos, porém, o texto base que convenciona toda a comissão ainda é o mesmo de 1946, com uma redação totalmente voltada para a caça e com furos como a questão científica e a permissão à contestação formal das decisões da CIB.
– O tratado de 1946 não recepciona nada do direito ambiental moderno. De lá para cá,
tivemos três encontros mundiais importantes, a Conferência de Estocolmo em 1972, a Rio 92 e a Rio+20 (em 2012), além da criação de vários outros mecanismos e nada disso é refletido no trabalho e no texto da convenção. Por isso esses impasses (como o da liberação da caça comercial, encampada pelo Japão e que foi rejeitada pela CIB), são muito difíceis de resolver – argumenta José Truda.
Na reunião anterior a esta em Florianópolis, em 2016, uma resolução adicional foi apresentada na CIB adotando medidas mais duras na supervisão da caça às baleias, justamente porque alguns países voltaram a declarar que o Japão estava caçando comercialmente de forma camuflada de fins científicos, em mais uma mostra da divisão histórica de posicionamentos dentro da comissão na caça para fins científicos.
Pressão e jogo de interesses para tentar derrubar moratória da caça
Desde a década de 1990, o Japão tenta aprovar alguma medida que permita ao menos
a reabertura limitada da caça comercial das baleias. Em alguns anos, como foi agora na Capital catarinense, a iniciativa é mais pesada, pedindo a liberação total. O principal
argumento, levantado sem apresentação de dados consistentes, é que já há recuperação suficiente de populações de determinadas espécies, o que é contestado por outros países – inclusive com estudos do comitê científico da própria CIB.
Hoje, por exemplo, estima-se a existência de 20 mil jubartes no Atlântico Sul, sendo que a população original da espécie seria entre 100 mil e 150 mil. Da espécie cachalote, mais de 2 milhões de animais foram mortos entre os séculos 19 e 20.
Ao tratar da liberação da caça comercial às baleias, fala-se em 10 a 12 espécies de grandes animais ameaçadas. A Franca foi uma das que chegou mais perto da extinção, não passando de 300 exemplares na década de 1970 em todo o hemisfério Sul. A azul, acreditava-se nos anos 1960 que sequer voltaram a aparecer. Pelo menos duas foram extintas: a baleia cinzenta do Atlântico Norte e a baleia-franca da costa europeia.
Uma das principais críticas do Brasil e de vários países participantes da comissão – que falam apenas informalmente sobre a situação –, é a forma de ingresso e manutenção de presença na CIB. Formada com menos de 30 países, hoje o grupo abriga mais de 80. Não há critérios baleeiros específicos para a participação: basta entregar a documentação diplomática no Departamento de Estado em Washington, depositário da convenção, e pagar uma cota anual que dá direito a voto. Esse valor é calculado conforme uma escala criada pela CIB, que leva em conta questões de renda e desenvolvimento de cada país. Para o Brasil, o custo é de cerca de US$ 40 mil dólares por ano.
Pequenos países caribenhos e africanos são explicitamente recrutados pelo Japão, que fornece ajuda financeira para o pagamento das cotas. Na semana anterior à reunião em Florianópolis, São Tomé e Príncipe e Libéria depositaram o instrumento diplomático e fizeram o pagamento de adesão à CIB, garantindo inclusive o direto a voto, que tem o mesmo peso para todos não importa o tamanho e a população do país.
Em 2010, denúncias nesse sentido vieram à tona em reportagens em diversos jornais internacionais, como o Sunday Times. A publicação britânica apresentou inclusive vídeos com delegados desses países menores declarando que recebem benesses do Japão para votar com os nipônicos. A Transparência Internacional e órgãos vinculados a comitês da ONU já chegaram a ser acionados, mas nunca houve uma investigação aprofundada sobre essas suspeitas de corrupção.
Da mesma forma, nunca foram levadas à frente ou geraram punições na CIB as recorrentes denúncias de que populações teoricamente superisoladas como as da Groenlândia, administrada pela Dinamarca, usam os animais abatidos alegadamente para subsistência para na verdade abastecer restaurantes e supermercados de Copenhague.
– Estamos contentes com a não liberação da caça comercial, mas preferíamos sempre construir o consenso aqui. Não pudemos porque essa é uma organização muito dividida, mas avançamos em várias questões. Acredito que o Brasil está expressando a visão das
novas gerações, exprimindo a visão majoritária da comunidade internacional – destacou o comissário brasileiro na CIB, Hermano Ribeiro, ao final do encontro que garantiu, pelo menos até a próxima reunião daqui a dois anos, a permanência da moratória da caça comercial dos cetáceos.
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