Auditoria da consultoria KPMG na Seguradora Líder, que administra o Dpvat, destaca uma extensa lista de inconsistências financeiras e administrativas. Nela estão despesas sem comprovação, concentração no pagamento de sinistros em pequeno número de médicos, gastos excessivos no pagamento de advogados e até compra de garrafas de vinho e de um veículo usado pela esposa de um ex-diretor da empresa.
O levantamento, encomendado em 2017 pela atual direção da Líder, avaliou documentos da seguradora de 2008 a 2017. Os problemas estão listados no relatório final, com mais de mil páginas, a que a reportagem da Folha de S. Paulo teve acesso.
Formado por 73 empresas, o consórcio que controla a Líder foi criado em 2007 para gerenciar o Dpvat. É responsável pela arrecadação dos prêmios pagos por proprietários de veículos e pelo pagamento das indenizações.
A má gestão dos recursos é uma crítica antiga contra a seguradora. Em 2015, o Dpvat foi alvo da Operação Tempo de Despertar, que emitiu 41 mandados de prisão e determinou o afastamento de 12 servidores públicos por fraudes no pagamento de indenizações. Na sequência, em 2016, houve uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) para apurar o seguro obrigatório. Em 2018, outra auditoria, desta vez do Tribunal de Contas da União (TCU), também apontou fraudes na gestão.
Integrantes do governo de Jair Bolsonaro, incluindo ele próprio, têm dito que o risco recorrente de irregularidades é uma justificativa importante para pôr fim ao Dpvat. A medida foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A Tempo de Despertar apontou que os prejuízos com transações indevidas eram estimados em R$ 28 milhões. No entanto, documentos vistos pela reportagem no relatório final da KPMG mostram que o valor pode ser quase 40 vezes maior.
Os problemas em pagamentos feitos pela seguradora podem superar a marca de R$ 1 bilhão (valores não corrigidos), segundo números disponibilizados na auditoria. Por exemplo: R$ 219,3 milhões não tinham evidências de prestações de serviços, R$ 156,1 milhões estavam sem comprovantes e R$ 47,1 milhões não dispunham de documentos fiscais.
A KPMG identificou irregularidades de diferentes portes nas prestações de contas. Encontrou, por exemplo, 216 irregularidades ou inconsistências na base de cobrança de honorários advocatícios. Apontou que a seguradora teve um gasto elevado custeando a defesa dos colegas investigados na operação policial. Identificou troca de e-mails em que o ex-presidente Ricardo Xavier e o ex-presidente do conselho de administração Luiz Tavares Pereira Filho aprovaram proposta do escritório Sad Sociedade de Advogados com honorários no valor de R$ 300 mil, podendo chegar a R$ 3,5 milhões em caso de êxito.
A auditoria fala até em possível impacto na remuneração por êxito aos advogados devido a aumento dos valores pleiteados de 2008 a 2016. Essa remuneração, inicialmente prevista para ser de R$ 74,8 mil, passou para R$ 74,9 milhões.
A KPMG diz que identificou registros na base de dados da Líder referentes a bônus/êxito no valor de R$ 358 milhões, sem ser possível saber quanto foi pago, mas que encontrou inconsistências.
A consultoria também apontou gastos injustificáveis com um grupo restrito de médicos que atua como prestador de serviços. A Líder pagou R$ 99,6 milhões em indenizações em 36 mil processos envolvendo apenas esses cinco médicos — mais de 7 mil processos para cada médico. Um deles, um fisioterapeuta, obteve R$ 44,9 milhões em indenizações em 15.294 processos.
A KPMG aponta ainda problemas de controle interno e vê indícios de atuação consciente de gestores da empresa para driblar os processos de auditoria. Há exemplos nas mensagens avaliadas.
Em 2012, o então diretor de Operações, Cláudio Ladeira, sugere que a auditoria externa receba informações superficiais. "Não passe para eles o bolo, a faca e a boca", diz. Em outro e-mail, de junho de 2015, o ex-superintendente de Combate a Fraudes Marcos Andrade pede à área técnica para "forçar" a liberação de um sinistro, mesmo diante de suspeitas de fraudes.
A auditoria identificou problemas até com a contabilidade de gastos pessoais diários ou semanais da diretoria. Um único restaurante recebeu, ao longo de oito anos, R$ 280.530 — média de quase R$ 3 mil por mês. Para que isso fosse possível, ao menos uma única pessoa teria de gastar praticamente R$ 100 todos os dias em refeições. As faturas incluem gastos de R$ 14.373 em bebidas alcoólicas. Em uma única nota foi registrada a despesa de R$ 1.164 em garrafas de vinho.
Em 2012, a Líder comprou, por R$ 67.656, um veículo que pertencia à esposa do então diretor jurídico, Marcelo Davoli, operação aprovada por Xavier e pelo ex-diretor de Infraestrutura Marcos Felipe. O carro foi vendido dois anos depois por R$ 26 mil.
A política de benefícios aos diretores na época permitia a disponibilização de um veículo de ate R$ 80 mil para os diretores da empresa. Segundo a KPMG, embora o carro tenha sido entregue a Davoli, "foram identificados também arquivos que demonstram a utilização do veículo pela sra. Fernanda Torres (sua esposa)".
Em outro trecho da auditoria, a KPMG fala em possíveis irregularidades em despesas de viagem e hospedagem, com pagamentos de passagens aéreas e diárias de hotéis para políticos, vereadores e servidores públicos como autoridades da polícia.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em novembro, a superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Solange Vieira, disse que os sistemas de controles de fraudes no Dpvat eram "frouxos" e que o órgão regulador não é eficiente para analisar todas as contas. Ela criticou o alto gasto com advogados, que chegou a R$ 242 milhões em 2018 — o equivalente a cerca de 25% de sua parcela na arrecadação dos prêmios durante o ano.
Entre novembro de 2011 e maio de 2015, a Líder recebeu R$ 7 milhões em cobranças do escritório de advocacia Waldeck e Menezes, cujo sócios tinham como pai João Waldeck Feliz de Sousa, desembargador e presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás eleito entre os anos de 2013 e 2014. Nesse caso, o escritório tinha um pagamento de honorários de êxito de 50%, dez vezes mais que o máximo estipulado aos demais escritórios.
Outro lado
A Seguradora Líder enviou nota dizendo que esclarece aquilo que é possível dentro dos limites de conhecimento de sua administração. A empresa diz que, no segundo semestre de 2016, e por sua exclusiva iniciativa, contratou uma consultoria internacional de renome para a realização, "de maneira absolutamente isenta e independente, de um amplo e minucioso trabalho de auditoria de suas operações".
"Em 2017, com a entrega do relatório sobre a análise documental, foram adotadas todas a medidas administrativas e de compliance cabíveis, alinhadas com os valores de retidão e transparência que norteiam a administração da Seguradora Líder", afirmou.
Ainda segundo a nota, a empresa diz que, como o documento continha alguns temas que, administrativamente, não cabiam à Seguradora Líder avaliar, o relatório foi encaminhado, "de forma espontânea e reservada", à Susep. "Por fim, destacamos que, nas demonstrações financeiras da Seguradora Líder de 2017, publicadas e disponibilizadas em nosso site, também foi reportado o trabalho realizado", disse.
A reportagem tenta desde a semana passada o contato dos antigos diretores da seguradora mencionados, mas a atual gestão da seguradora não quis passar o pedido nem os telefones dos respectivos ex-funcionários.
A reportagem enviou mensagens às redes sociais encontradas dos mencionados. O desembargador João Waldeck disse que não irá comentar o caso até ter acesso aos documentos.
Já a Susep confirmou que recebeu da Seguradora Líder a auditoria da KPMG e disse que o documento encontra-se em apuração pela área de fiscalização da autarquia. Acrescentou que há partes do relatório aos quais não teve acesso pois foram consideradas confidenciais pela Seguradora Líder, mas que está providenciando o requerimento delas, uma vez que sua entrega ficou condicionada à autorização judicial.
O escritório Sad Sociedade de Advogados não havia se pronunciado até a conclusão desta reportagem.