No intervalo de alguns meses, Elis Regina, morta em 1982, retornou à ativa em um dueto impossível com a filha, Maria Rita. John Lennon, abatido a tiros em 1980, voltou a cantar com os Beatles. Jornais de várias partes do mundo divulgaram imagens do Papa Francisco, conhecido pela austeridade e simplicidade, vestindo um casaco de luxo atribuído à marca Balenciaga. Nas redes sociais, circularam registros de Donald Trump sendo preso de forma violenta pela polícia em plena rua. A única realidade por trás de cada um desses falsos acontecimentos foi o gigantesco avanço da inteligência artificial (IA) em 2023 – o que permitiu a elaboração dessas criações ficcionais em tons naturalistas e levantou debates éticos, sobre direitos autorais e de imagem que deverão seguir provocando controvérsia ao longo do próximo ano e também dos seguintes, conforme estimativa dos estudiosos da área.
– Vimos em 2023 uma explosão de inteligência artificial generativa, que são sistemas capazes de criar conteúdo. Não é algo que surgiu agora, mas adquiriu um nível de resultado muito superior ao que tínhamos até pouco tempo atrás. Alcançou um patamar que não se conhecia até então e gerou interesse em muitas áreas. E ainda vai avançar muito mais em qualidade e diversidade de integração de dados – afirma o doutor em Ciência da Computação e decano da Escola Politécnica da Unisinos Sandro Rigo.
Em Porto Alegre, a Câmara de Vereadores aprovou pela primeira vez uma lei elaborada integralmente (e em segredo, revelado pelo vereador tucano Ramiro Rosário somente após a votação favorável) pelo ChatGPT, ferramenta que produz textos com inteligência artificial.
Além da disseminação do ChatGPT, proliferou-se o uso de aplicativos capazes de criar imagens e vídeos realistas a partir de solicitações feitas pelo usuário. O alto nível de verossimilhança deixou milhões de usuários e espectadores fascinados, mas também resultou em controvérsias éticas e legais. É adequado usar o rosto de uma artista já morta, como Elis Regina, para alavancar a venda de veículos? A organização do prêmio literário Jabuti, o mais tradicional do país, eliminou o livro Frankenstein da disputa pelo título de melhor ilustração após vir à tona que as imagens tinham sido produzidas com auxílio não creditado de IA.
O advogado Thomaz de Azevedo Cinel, especialista em direito autoral da banca DBCL Advogados, afirma que a “interseção entre inteligência artificial e os direitos de propriedade intelectual e direitos autorais tem trazido principalmente discussões sobre a autoria, originalidade, proteção legal e responsabilização pela violação de direitos das obras geradas por algoritmos”. Cinel lembra que a lei brasileira protege obras fruto de criação humana. Isso poderia levar à conclusão de que todos os resultados gerados por IA estão automaticamente em domínio público, mas o advogado pondera que essa não é a única interpretação possível, já que não se conhece obra criada sem qualquer intervenção humana de fato.
Outro ponto controverso diz respeito à originalidade, uma vez que os algoritmos recorrem a bancos de dados que congregam milhares de obras pré-existentes feitas por artistas de carne, osso e ideias próprias para dar origem a suas criações de segunda mão, por vezes com ganhos financeiros. Um terceiro ponto crítico é quem responsabilizar em caso de um produto de IA ser considerado plágio.
– No Brasil, ainda não existe uma regulamentação específica que aborde de maneira abrangente essas questões, levando a debates sobre a extensão dos direitos autorais às obras produzidas por inteligência artificial – analisa Cinel.
Está em tramitação, no Senado Federal, um projeto de lei chamado de Marco legal da Inteligência Artificial, que busca regulamentar o uso desse recurso no Brasil. O advogado afirma que a regulação em nível global ainda está em desenvolvimento em órgãos como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI). A discussão sobre os limites legais e morais da nova tecnologia, porém, deverá se estender ao longo dos próximos anos.
Depois de consolidado o avanço da inteligência artificial como ferramenta de apoio e criação, essa área da tecnologia deverá evoluir em novas direções ao longo de 2024 e dos anos seguintes. Uma das linhas de desenvolvimento deverá ser a inteligência generativa multimodal, que usa diferentes fontes de dados para elaborar suas criações. Em vez de recorrer apenas a bancos de textos ou de imagens, por exemplo, novos serviços deverão usar essas duas modalidades de forma combinada para aprimorar a aprendizagem do sistema e gerar resultados mais precisos e rebuscados.
Na avaliação do doutor em Ciência da Computação Sandro Rigo, o mecanismo pelo qual ferramentas como o ChatGPT produzem suas respostas também deverá se sofisticar. Atualmente, esse tipo de sistema interage com os seres humanos formando frases por meio de cálculos de probabilidade (que indicam quais as palavras mais indicadas em cada caso para compor as sentenças). Porém, muitas vezes esse mecanismo gera informações irreais ou incorretas, o que se chama de “alucinação”.
– Já estão em andamento iniciativas voltadas para o futuro que promovem a integração de diferentes técnicas, não apenas de probabilidade, mas outras como uma chamada de representação de conhecimento. Ela não usa probabilidades, como o ChatGPT; busca criar a representação de conceitos e relações entre esses conceitos, com lógicas formais, para chegar a conclusões e validar essas conclusões – afirma Rigo.
Na prática, são novas estratégias capazes de melhorar a precisão e a consistência das respostas oferecidas pelas máquinas – com possibilidades de usos em setores diversos, como saúde ou educação.
– O linguista americano Noam Chomsky publicou um artigo recente dizendo que o ChatGPT usa probabilidades para gerar texto, mas não representa um conhecimento linguístico daquele texto. Outros métodos, que usam a representação do conhecimento, podem cobrir essa lacuna, deixando a inteligência artificial mais potente e menos propensa a erros. Já existem vários projetos de pesquisa em andamento nesse sentido – complementa Rigo.
Sob o ponto de vista ético e legal, a atenção em relação ao uso correto da IA, em 2024, também deverá recair sobre as eleições municipais, já que um dos principais temores de especialistas em tecnologia, ciências políticas e sociais é a captura das ferramentas para produzir montagens fotográficas ou em vídeos para imputar crimes ou comportamentos imorais a adversários políticos, além de outros tipos de fake news.
Tecnologia e as palavras do ano
- "Inteligência artificial" foi classificado como “o termo do ano” de 2023 pelo o dicionário Collins.
- Já o Merriam-Webster escolheu como palavra de 2023 “autêntico” – o que também tem a ver com os avanços da tecnologia, à medida que, em um mundo tomado pelos ambientes virtuais e pelas falsificações e criações digitais, a busca por autenticidade ganha valor.
- O dicionário Oxford, por sua vez, elegeu “rizz” (“charme” ou algo do tipo) como termo de 2023, superando “swiftie” (identificação dos fãs de Taylor Swift), entre outras palavras consideradas – todas gírias em inglês.