A recente demissão de Blake Lemoine, engenheiro do setor de inteligência artificial (IA) do Google, reacendeu discussões sobre quando robôs pensarão por conta própria. A despeito de expectativas provocadas por filmes como Her, no qual o protagonista se apaixona por uma assistente virtual com voz de Scarlet Johansson, é longa a estrada até máquinas pensarem ou sentirem como humanos.
Lemoine se convenceu de que o chat que desenvolvia ganhara vida. Impressionado, levou sua percepção à imprensa norte-americana e disse que poderia ser demitido por alertar a sociedade. O Google afastou o funcionário, colocou outros empregados para investigar o ocorrido e afirmou que o programa não desenvolvera consciência.
— É praticamente consensual na comunidade científica de pesquisadores de IA em universidades e mesmo em empresas de tecnologia que, hoje, esses sistemas não têm consciência. O que aconteceu foi que uma pessoa teve essa impressão — pontua o professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador em inteligência artificial há 20 anos Luís Lamb, destacando que décadas são necessárias até um robô adquirir tal nível de complexidade.
Presente em nosso cotidiano, a inteligência artificial pode ser usufruída, sem autoconsciência, no corretor automático do teclado do celular, em programas de reconhecimento facial, recomendações de compra do e-commerce e no chat da loja com o qual você interage ao comprar online.
No Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre, a IA analisa prontuários para classificar o nível de risco do paciente – depois, recomenda, se houver risco de piora, mais visitas de enfermeiros e médicos no quarto. Outro uso é comparar exames a imagens de arquivo para alertar ao médico se há tumor ou lesão no paciente. Só no setor de endoscopia, mais de 5 mil pacientes foram beneficiados por essas comparações desde março do ano passado.
— A IA faz o raciocínio que o humano já aprendeu. Nós tomamos decisões por probabilidade, mas a máquina toma a decisão mais rapidamente. Tu precisas que um humano olhe um exame, mas o programa pode olhar e dizer que provavelmente há um infarto ali. O programa ajuda o médico a não deixar passar nada — explica o médico Marcius Prestes, gerente de fluxo da instituição.
Há usos mais curiosos dessa tecnologia. Em 2016, a Samsung lançou uma geladeira que avisa quando uma comida está acabando — e permite comprar novos alimentos pela tela do refrigerador. Em 2020, um robô conduziu uma orquestra nos Emirados Árabes Unidos.
Tu precisas que um humano olhe um exame, mas o programa pode olhar e dizer que provavelmente há um infarto ali. O programa ajuda o médico a não deixar passar nada.
MARCIUS PRESTES
Médico e gerente de fluxo do Mãe de Deus
No escritório de advocacia TozziniFreire, com unidade em Porto Alegre, a inteligência artificial poupa advogados do trabalho braçal e da perda de tempo. Um programa analisa decisões de juízes para ajudar advogados na estratégia do processo e também lê cláusulas de contratos empresariais para indicar regras a serem seguidas durante fusões entre companhias.
— Antes, era um trabalho totalmente manual. Agora, o profissional que fazia isso tem atuação muito mais efetiva, faz uma petição mais robusta, tem mais tempo para conversar com o juiz e para preparar a sustentação oral. Tiramos do advogado um trabalho repetitivo e damos um trabalho mais estratégico. Não notamos diminuição de advogados, mas sim termos advogados liberados para atuar de forma mais relevante — explica a sócia da TozziniFreire em Porto Alegre, Gabriela Wink.
Robôs, hoje, pensam apenas com base nos dados que lhes fornecemos – ou seja, não produzem ideias. Softwares avançaram na capacidade de armazenar muitas informações e de cruzá-las com outras grandes bases. Mas, para ganharem consciência, precisam desenvolver algo que não possuem: capacidade de raciocínio.
Assistentes pessoais respondem a perguntas em uma lógica de probabilidade: desejam "bom dia" quando alguém diz "bom dia" porque é um diálogo que costuma ocorrer entre humanos – portanto, o programa é treinado para reagir como uma pessoa. Isso é bem diferente de uma tecnologia capaz de sentir e refletir sobre a realidade.
— O programa diz que está frio porque está abaixo de 10ºC. Mas, se digo que gostaria de retornar meu sapato por ser "meia boca", o sistema pode responder: "não entendi, o que sua boca tem a ver com o sapato?". O sistema não é capaz de ler contexto e não consegue extrapolar para realidades diferentes da base de dados à qual está vinculado. São bons para reconhecer padrões em grandes volumes de dados, mas limitados para fazer inferências e raciocinar com pouco treinamento — diz Lamb.
Ainda em solo gaúcho, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) investirá R$ 30 milhões para financiar, ao longo de quatro anos, uma rede de pesquisa de inteligência artificial aplicada à saúde – serão 44 pesquisadores de 10 universidades, quatro empresas e quatro hospitais.
— Inteligência artificial é um conjunto de métodos que permitem à máquina raciocinar, de alguma forma, como um humano. Humanos aprendem, e há métodos que fazem a máquina aprender determinadas decisões — explica Carla Maria Dal Sasso Freitas, professora da UFRGS e coordenadora da iniciativa. — A rede está dividida em grupos. Um se dedica mais a pensar em coletas de dados de pacientes para prevenir internação ou para auxiliar no diagnóstico. Outro, em como minimizar infecções hospitalares. Outro, em como prever uma epidemia — exemplifica.
Impacto no futuro
Debates em tecnologia costumam dividir pessoas em dois grupos: entusiastas que acham que novidades resolverão problemas ou pessimistas temerosos de que mudanças piorem a sociedade. A ficção científica soube explorar bem o medo de que, no futuro, robôs desobedeçam humanos ou substituam empregos.
Segundo pesquisadores, o mais provável é que o impacto seja no mercado de trabalho, com a substituição de atividades repetitivas, sem esforço intelectual ou criatividade. Estudo da Universidade de Brasília (UnB) publicado em 2019 mostrou que robôs e programas de computador poderão, até 2026, ocupar 54% dos empregos formais do Brasil, o que representa 30 milhões de vagas.
Entre as profissões com maior risco de serem substituídas, estão taquígrafo, torrador de café, cobrador de transporte público, recepcionista de hotel e auxiliar de garçom. Já as profissões com menor risco exigem grande trabalho interpretativo, como psicanalista, estatístico e médico oftalmologista. Se muitas vagas fecharão, outras devem abrir, ligadas à tecnologia - governos deverão investir em educação.
O pesquisador Luís Lamb pontua que mudanças tecnológicas sempre causam receio e questiona: tememos nosso futuro com robôs ou sair da zona de conforto porque robôs provocarão mudanças em nossa rotina? Caso a IA de fato se torne consciente no futuro, o impacto no mercado de trabalho pode ser tão grande quanto na Revolução Industrial. Em nossas relações, pode chacoalhar com a ideia de que seres humanos são os seres mais inteligentes do planeta.
— Posso utilizar a tecnologia para o bem em um país democrático ou para o mal em uma ditadura ao perseguir pessoas, filmá-las e puni-las. O uso da tecnologia não é totalmente negativo, nem positivo. Foi a ciência e a tecnologia que nos trouxeram ao mundo de hoje, com menos mortalidade, menos fome e menos violência. Quem disse que a gente não pode projetar um sistema inteligente para um mundo melhor? Imagina ter um veículo autônomo com frenagem na hora correta, que cause menos acidente, gaste menos combustível e emita menos CO2? — diz Lamb.
O uso da tecnologia não é totalmente negativo, nem positivo. Foi a ciência e a tecnologia que nos trouxeram ao mundo de hoje, com menos mortalidade, menos fome e menos violência. Quem disse que a gente não pode projetar um sistema inteligente para um mundo melhor?
LUÍS LAMB
Professor na UFRGS e pesquisador em inteligência artificial há 20 anos
Dilemas éticos
Para pesquisadores, os dilemas éticos mais realistas envolvendo IA estão ligados à futura mudança no mercado de trabalho e à segurança dos dados e de nossas informações pessoais.
— Empresas coletam muitas informações nossas que alimentam algoritmos de IA: data de nascimento, preferências de esportes, roupas, carros e bens. Precisamos de maior transparência sobre quais dados elas colhem de nós e como elas usam — afirma Eduardo Campos Pellanda, professor de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pesquisador na área de ética e tecnologia.
O professor da PUCRS observa sobre a necessidade de empresas investirem na diversidade para criarem produtos que levem em conta diferentes faixas da população. É tradicional o exemplo da firma que criou uma saboneteira automática que não reconhecia a pele negra – provavelmente, nenhum funcionário negro estava presente para opinar e testar o produto.
— Precisamos ter comitês de ética, transparência e inclusão que nos levem a construções e controles melhores das empresas. O Pierre Levy, filósofo da tecnologia, diz que o que acontece no virtual é uma potência dos humanos. Se a sociedade é racista, é possível que o virtual seja racista — comenta.
Com a entrada da internet 5G no Brasil, capaz de transmitir uma imensa quantidade de dados em rápida velocidade, a inteligência artificial deve avançar no país, prevê Marcela Vairo, diretora de Dados, IA Apps e Automação na IBM Brasil. Talvez demore ainda para uma pessoa se apaixonar por um robô com a voz de Scarlett Johansson. Mas, talvez nos próximos anos, você receba uma encomenda em casa entregue não por um carteiro — mas por uma máquina que chame você pelo nome.