A revista Nature, mais tradicional e prestigiosa publicação científica do planeta, apresentou nesta terça-feira (17) a edição 2019 de sua tradicional lista "Nature's 10", que elenca os dez indivíduos que, na opinião do periódico, tiveram grande impacto na ciência. E as palavras-chave que nortearam as escolhas foram "integridade científica". Seis deles foram selecionados em razão de sua defesa firme e inflexível da ética na ciência.
O primeiro nome da lista já é conhecido desde a semana passada: o físico brasileiro Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que foi atacado diretamente pelo presidente Jair Bolsonaro em julho e ainda assim não se intimidou, defendendo as análises do Inpe que demonstravam aumentos alarmantes de desmatamento na Amazônia. Por conta disso, foi exonerado do cargo.
Galvão foi contatado pela revista no mês passado, durante participação em um evento na Universidade Columbia, em Nova York.
— O repórter deixou claro que minha contundente resposta ao presidente, em veemente defesa da ciência e do controle do desmatamento da Amazônia, atraiu a atenção de toda a comunidade científica internacional — disse à reportagem o ex-diretor do Inpe, hoje de volta à Universidade de São Paulo (USP) como pesquisador.
Entre contemporizar com os ataques governamentais e defender a integridade da pesquisa científica, Galvão optou pela segunda opção.
— Quando se trata de questões científicas, não há autoridade acima da soberania da ciência — defendeu.
Na seara ambiental, outros dois nomes foram destacados pela Nature: a ecóloga argentina Sandra Díaz e a ativista sueca Greta Thunberg. A primeira, por ter coordenado a equipe de 145 pesquisadores que produziram o mais abrangente estudo da biodiversidade global e mostraram que cerca de 1 milhão de espécies estão na rota da extinção por conta de ações humanas.
É um alerta importante, como também o é o de Thunberg, 16, cuja estridência tem conseguido colocar em evidência a emergência das mudanças climáticas de um modo que os cientistas, martelando há décadas com seus estudos, jamais conseguiram.
— Alguns podem se perguntar por que uma adolescente deveria receber mais crédito e atenção por lamentar publicamente um dilema bem conhecido que a maioria dos climatologistas recebem por anos de esforço e trabalho duro — disse à Nature Sonia Seneviratne, climatologista do Instituto Federal de Tecnologia da Suíça.
Mas ela mesma explica o porquê: Thunberg tem uma sinceridade e uma fúria poderosas, que não costumam estar no arsenal dos pesquisadores.
— Como cientistas, normalmente não ousamos expressar a verdade com toda essa simplicidade emotiva — completou.
Ética no laboratório
E não foi só pela postura ética de enfrentar o duelo de versões da guerra cultural e se erguer em defesa da ciência que a Nature se sensibilizou neste ano. Ela também destacou dois pesquisadores que se acautelaram em meio a experimentos bastante controversos.
Num deles, Nenad Sestan e sua equipe, da Escola de Medicina Yale, descobriram que é possível ao menos parcialmente estimular cérebros de porcos a voltarem à vida, depois de terem sido extraídos de seus donos mortos.
A pesquisa é intrigante, mas o principal destaque da Nature foi para a cautela adotada pelo grupo de pesquisadores, convocando bioeticistas e investigando todas as ramificações de um experimento que pode borrar a distinção entre vida e morte antes de prosseguirem.
O mesmo tom elogioso foi dedicado ao pesquisador chinês Hongkui Deng, que usou a técnica de edição genética CRISPR para introduzir células imunológicas modificadas para serem resistentes ao HIV em um paciente adulto. O experimento não teve o resultado desejado, mas foi feito com extrema cautela e respeitando os limites éticos - num forte contraste com a atitude de He Jiankui, que no ano passado usou a mesma técnica para editar dois bebês para serem imunes ao HIV, sem supervisão ou consideração pelos riscos do procedimento.
A Nature também destacou o trabalho da eticista australiana Wendy Rogers, que vem investigando os sinistros casos de transplantes de órgãos na China que podem ter sido feitos sem a anuência dos doadores. Rogers reuniu evidências contundentes de procedimentos no mínimo inadequados em muitos transplantes chineses, e há suspeitas de que prisioneiros políticos ou religiosos estejam sendo mortos para servirem como fontes de órgãos. A China alega que não faz mais isso desde 2015, mas a pesquisa da australiana parece apontar em outra direção.
Avanços na ciência
Completando a lista, quatro pesquisadores que produziram avanços notáveis em diversos ramos da ciência em 2019.
No Canadá, a astrofísica Victoria Kaspi conduziu um esforço para adaptar o telescópio Chime (Experimento Canadense de Mapeamento da Intensidade do Hidrogênio, na sigla inglesa) a fim de torná-lo sensível aos misteriosos FRBs (disparos rápidos de rádio), eventos cósmicos descobertos há pouco mais de uma década, cuja origem segue desconhecida.
Com o esforço, o CHIME se tornou o mais poderoso detector desses eventos no mundo, o que certamente ajudará a elucidar o enigma.
Na República Democrática do Congo, o pesquisador Jean-Jacques Muyembe Tamfum, que em 1976 foi o primeiro a identificar o vírus ebola, continua trabalhando incansavelmente para conter epidemias da doença e demonstrou neste ano um protocolo de tratamento que apresentou taxa de sobrevivência de 90% para os que eram tratados pouco tempo após a infecção.
Já o paleontólogo Yohannes Haile-Selassie, do Museu de História Natural de Cleveland, nos Estados Unidos (EUA), reportou neste ano um achado extraordinário, feito na Etiópia: um crânio bem preservado da espécie Australopithecus anamensis, com 3,8 milhões de anos. O achado traz nova luz sobre esse até então pouco conhecido ancestral humano e rivaliza em importância com Lucy, o famoso fóssil de Australopithecus afarensis de 3,2 milhões de anos.
Por fim, nos EUA, o físico John Martinis liderou a equipe do Google, que demonstrou pela primeira vez que um computador quântico pode realizar cálculos que nenhum dispositivo convencional pode realizar.
O processador quântico Sycamore realizou em 200 segundos o que o melhor supercomputador em operação faria em 10 mil anos. A IBM chegou a questionar isso e disse que seria possível fazer o cálculo em dias, mas ainda assim bem mais que 200 segundos.