Entenda a reportagem em cinco pontos
- O presidente Jair Bolsonaro assinou decreto que cria o Cadastro Base do Cidadão, uma base integrada de dados pessoais dos cidadãos brasileiros.
- A criação do banco de dados divide opiniões: enquanto alguns especialistas avaliam que a ferramenta vai desburocratizar o serviço público, outros temem que ocorra supervigilância estatal, que possa expor informações sigilosas.
- A base terá, inicialmente, dados biográficos relacionados ao CPF, como nome, data de nascimento, sexo e filiação. Depois, será acrescida de outras bases temáticas, cujas informações serão vinculadas ao CPF de cada cidadão.
- Diferentes órgãos públicos poderão acessar os dados. O compartilhamento dos dados será categorizado por três níveis: amplo, restrito e específico.
- Um comitê de governança, formado por sete representantes do governo, irá gerenciar o fluxo desses dados.
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Decreto instituído pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana vem causando dúvida e polêmica entre especialistas dos meios jurídico e de internet e também entre a população. O Cadastro Base do Cidadão será uma base integrada de dados pessoais de todos os brasileiros. No grupo a favor da medida, estão os que defendem a desburocratização dos serviços. No outro, contra, há o temor de que se crie um sistema de supervigilância estatal e que pode expor informações sigilosas.
A base terá, inicialmente, dados biográficos relacionados ao CPF, como nome, data de nascimento, sexo e filiação. Depois, será acrescida de outras bases temáticas, cujas informações serão vinculadas ao CPF de cada cidadão. No decreto, o governo define como "base integradora" uma "base de dados que integra os atributos biográficos ou biométricos das bases temáticas". Os atributos biométricos, segundo o texto, são características biológicas e comportamentais, "tais como a palma da mão, as digitais dos dedos, a retina ou a íris dos olhos, o formato da face, a voz e a maneira de andar".
A centralização de diferentes bases de dados costuma ser criticada por especialistas em segurança da informação por aumentar exponencialmente o risco em casos de vazamentos. Em setembro, dados de praticamente toda a população do Equador ficaram disponíveis na internet.
— A informação que posso compartilhar com vocês neste momento é que se trata de um tema muito delicado, e que é uma preocupação importante para todo o governo e para o Estado — afirmou María Paula Romo, ministra do Interior.
Esse cadastro base será interoperável, ou seja, diferentes órgãos da República poderão acessar os dados. Segundo o decreto, o objetivo é orientar a formulação, a implementação e o monitoramento de políticas públicas, aumentar a eficiência das operações internas da administração pública, entre outros. O compartilhamento dos dados será categorizado por três níveis. Na prática, dados biométricos ou comportamentais não estarão automaticamente livres para o acesso de qualquer ministério ou órgão do governo. Haverá o compartilhamento amplo (de dados públicos que não estão sujeitos a restrição de acesso), o restrito (dados protegidos por sigilo) e o específico (dados protegidos por sigilo com concessão de acesso a órgãos e entidades específicos).
Caberá a um comitê de governança, formado por sete representantes do governo, gerenciar o fluxo desses dados. O comitê é composto por servidores do Ministério da Economia, um da Casa Civil, um da Controladoria-Geral da União, um da Secretaria Especial de Modernização, um da Advocacia-Geral da União e um do Instituto Nacional do Seguro Social. O acesso aos dados ocorrerá no prazo de 30 dias, contado da data da solicitação, diz o documento.
O decreto diz que "a informação do Estado será compartilhada da forma mais ampla possível, observadas as restrições legais, os requisitos de segurança da informação e comunicações e o disposto na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais". Aprovada no governo Temer, a legislação entra em vigor somente em agosto de 2020.
O decreto também diz que a coleta, o tratamento e o compartilhamento de dados por cada órgão serão realizados nos termos do disposto no artigo 23 da lei de proteção. Esse artigo afirma que o tratamento de dados deve atender sua "finalidade pública, na persecução do interesse público". Ficam excluídos dados protegidos por sigilo fiscal, sob gestão da Receita Federal.
Opinião de especialistas
A implementação do Cadastro Base do Cidadão, mar profundo de informações de todo tipo sobre cada um de nós, é um tema que vem dividindo especialistas. Procuradora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul e professora da pós-graduação em Direito da Unisinos, Têmis Limberger vê a iniciativa com cautela devido ao fato de não haver, no Brasil, uma cultura de proteção de dados. Como contraponto, a docente cita que, na Europa, essa prática já vem sendo desenvolvida desde os anos 1970. Entrou em vigor, no ano passado, o novo regulamento geral de proteção de dados europeu, fruto de uma evolução de praticamente meio século na legislação.
— Tem que haver uma disciplina muito forte para esse imenso compartilhamento de dados. Reconheço que é uma tendência, mas tudo depende de como vai ser feito — adverte Têmis.
No Brasil, recorda a procuradora, já aconteceu vazamento de dados da Receita Federal, com venda de informações bancárias sigilosas. Recentemente, ela acrescenta, houve problemas também com os dados de aposentados junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
— Em países que têm tudo digital e interligado, como a Estônia, referência em termos de compartilhamento de dados e onde se pode fazer tudo online, o cidadão é avisado se a sua base de dados está sendo acessada — complementa Têmis.
Pedro Augustin Adamy, advogado e professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), assume o mesmo posicionamento precavido. A decisão presidencial pode ter como finalidade tornar a União mais eficiente na prestação de serviços, mas há de se garantir os preceitos constitucionais da intimidade e da privacidade. Adamy destaca que ainda serão estabelecidas três categorias para essas informações (amplas, restritas e específicas), o que dará mais clareza a essa medida.
— O mais importante agora será a fiscalização da sociedade e dos órgãos competentes para essa classificação das informações. A ideia me parece ser muito boa para o fim de desburocratizar e tornar mais eficiente a atuação dos órgãos governamentais, mas o receio é quanto a saber quais informações serão compartilhadas, como serão compartilhadas e quem terá acesso a elas.
Professor e diretor do Instituto Login — Qualificação e Inserção Digital, Nilton Wainer ressalta que a proposta, ainda incipiente, permitindo unificação e completude de dados por parte do governo, é ótima no conceito. Ao mesmo tempo, faz as ressalvas de Têmis e Adamy.
— Teoricamente, é muito bom que haja essa integração para a pessoa que chega ao banco, ao INSS, ao posto médico, e já estão lá todos os dados. Mas deve haver a segurança de que esses dados serão usados apenas para fins legais — diz Wainer.
Sobre o surgimento de um possível mecanismo de supervigilância estatal, o professor é enfático:
— A sociedade da privacidade morreu. O tempo em que tínhamos apenas o nome na lista telefônica, que nem existe mais, morreu. Isso, a meu ver, tem mais vantagens do que desvantagens, facilita o acesso aos serviços públicos. Mas vai depender da forma como vai se usar. É como uma arma. Mal usada, pode matar.