Em 2023, 82 crianças e adolescentes perderam as mães em casos de feminicídio no Rio Grande do Sul. Com olhar para esses órfãos, foi apresentado na Assembleia Legislativa um projeto de lei que pretende autorizar a criação de benefício, como uma espécie de pensão, para menores de 18 anos que estejam nessa situação. A proposta ainda está em fase de análise, antes de passar por votação dos parlamentares. A iniciativa, chamada de Auxílio RS Ampara, foi protocolada pela deputada Nadine Anflor (PSDB).
O benefício, de até um salário mínimo mensal, caso seja aprovado pela Assembleia e colocado em prática pelo governo do Estado, poderia alcançar crianças e adolescentes que tenham perdido sua tutora ou responsável legal em casos de feminicídio. Para ter direito ao auxílio, caso ele venha a ser implementado, será necessário atender alguns requisitos. Entre eles, por exemplo, fazer parte de família com renda de até três salários mínimos.
O Mapa dos Feminicídios, produzido pela Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) da Polícia Civil e divulgado recentemente, aponta que das 87 vítimas no ano passado no Estado, 64 eram mães — ou seja, 73% delas. Dessas, 32 tinham filhos com os próprios autores dos assassinatos. A série de crimes deixou 137 pessoas órfãs de mãe no Rio Grande do Sul, sendo que 82 eram crianças ou adolescentes.
— Isso foi uma coisa que sempre me incomodou muito na Delegacia (da Mulher). Eu acabava prendendo o agressor, a mãe estava morta, e eu olhava para aquelas crianças e pensava: “E agora?”. Que tipo de amparo o Estado dá para essas crianças? Me parece que nenhum até agora, eu não vejo isso. O auxílio é um pontapé, é o início, mas não pode ser só isso — diz Nadine.
O levantamento mostra também que sete casos de feminicídios registrados ano passado foram cometidos na frente de crianças e adolescentes. Aponta também que, entre os filhos, oito, além de perderem a mãe, ficaram órfãos de pai, já que os autores tiraram a vida após o crime.
— A gente precisa começar a falar sobre os órfãos dos feminicídios. São vítimas secundárias do feminicídio. A sensação que eu tinha enquanto delegada era de que eu tinha conseguido cumprir a minha missão, prendendo o autor. E o resto? Muitas vezes a gente esquece dessas inúmeras crianças. É preciso dar luz a esse problema. É uma discussão muito mais ampla. A saúde mental, no início tem apoio, mas por quanto tempo? São anos de trauma — diz a deputada, que se tornou delegada em 2004 e foi chefe da Polícia Civil.
A tramitação
O projeto foi protocolado em 9 de outubro do ano passado e está na Comissão de Constituição e Justiça desde 26 de outubro. O próximo passo é a apresentação de parecer indicando se o projeto é constitucional ou não. Caso seja, a iniciativa segue para tramitação numa comissão de mérito. Depois disso, o projeto é encaminhado para análise dos demais deputados, em plenário.
A forma como o auxílio será implementado e regulamentado depende do governo. Mas o benefício, segundo o projeto de lei, deverá ser depositado em conta corrente aberta em nome da criança ou do adolescente.
— Por uma questão constitucional, eu não obrigo, eu simplesmente autorizo o Estado a criar. A criação vai depender do governador, se não o projeto seria inconstitucional — explica a deputada.
Os feminicídios
Em 2023, o Rio Grande do Sul teve redução de 21% nos feminicídios em comparação com o ano anterior. Em janeiro deste ano o Estado voltou a ter aumento nos casos. Em fevereiro os dados se mantiveram iguais ao ano passado.
A maior parte das vítimas ainda morre sem conseguir pedir ajuda. Das 87 mulheres assassinadas no ano passado, 57,5% não tinham ocorrência contra o autor do crime e 82% não tinha medida protetiva vigente. Alcançar as vítimas de violência doméstica para que consigam pedir ajuda antes que o desfecho culmine num feminicídio é um dos desafios nessa área.
— O que salva vidas é o registro de ocorrência policial. A gente precisa estimular muito, que a mulher registre, que se reconheça, se diga vítima de violência e saia dessa invisibilidade. Na minha visão, esse é o primeiro dos requisitos para virar a chave em relação a esse assunto. E o segundo é a autonomia financeira desta mulher. Muitas vezes observava o que fazia que essas mulheres ficassem, além do sentimento de “quero manter a família, quero que ele mude o comportamento”, é porque elas não tinham como se sustentar sozinhas e sustentar seus filhos. Muitas diziam: “Ele foi preso, e está pior sem ele, porque estamos passando fome”. Precisamos criar políticas para virar essa chave — afirma Nadine.
Outras iniciativas
Além do projeto criado no RS, há uma lei nacional que foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em novembro do ano passado. A lei prevê que órfãos de vítimas de feminicídio tenham direito a receber pensão especial.
O projeto de lei é de autoria da deputada Maria do Rosário (PT). O texto prevê que filhos e dependentes menores de 18 anos e componentes de famílias com renda per capita mensal igual ou inferior a um quarto do salário mínimo podem solicitar o recurso.
No fim de fevereiro, o benefício foi concedido pela primeira vez pela Justiça Federal a uma menina de sete anos do Pernambuco, que perdeu a mãe.
Requisitos previstos no projeto de lei do Auxílio RS Ampara*
Para receber
- Idade inferior a 18 anos**.
- Ter perdido tutora ou responsável em caso de feminicídio.
- Residir no Rio Grande do Sul.
- Matrícula em instituição de ensino do Estado.
- Guarda oficializada.
- Família com até três salários mínimos.
Para manter
- Cumprimento do calendário nacional de vacinação e acompanhamento do estado nutricional.
- Frequência escolar mínima de 75%.
- Acompanhamento da criança ou adolescente por Serviço de Assistência Social.
- Ausência de prática de ato infracional, crime ou contravenção penal.
* Apresentados no projeto de lei, mas durante debate pelos parlamentares pode sofrer alterações.
** O pagamento poderá ser estendido até que o beneficiário complete 24 anos, mediante parecer social favorável, desde que esteja em situação de vulnerabilidade social e regularmente matriculado em curso de graduação reconhecido pelo Ministério da Educação.
Prevenção ao feminicídio
- Se estiver sofrendo violência psicológica, moral ou mesmo física, busque ajuda imediatamente. Não espere a violência evoluir. Converse com familiares, procure unidades de saúde, centros de referência da mulher ou a polícia. É possível acessar a Delegacia Online da Mulher
- Caso saiba que alguma mulher está sofrendo violência doméstica, avise a polícia. No caso da lesão corporal, independe da vontade da vítima registrar contra o agressor, dado a gravidade desse tipo de crime
- Se estiver em risco, procure um local seguro. Em Porto Alegre, por exemplo, há três casas aptas a receberem mulheres vítimas de violência doméstica
- Siga todas as orientações repassadas pela polícia ou pelo órgão onde buscar ajuda (Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário)
- No caso da lesão corporal, o exame pericial para comprovar as agressões é essencial para dar seguimento ao processo criminal contra o agressor. Procure realizar o procedimento o mais rápido possível
- Caso passe por atendimento em alguma unidade de saúde, é possível solicitar um atestado médico que descreva as lesões provocadas
- Reúna todas as provas que tiver contra o agressor, como prints de conversas no telefone. No caso das mensagens, é importante que apareça a data do recebimento
- Se tiver medida protetiva, mantenha consigo os contatos principais para pedir ajuda. A Brigada Militar mantém em pelo menos 114 municípios unidades da Patrulha Maria da Penha que fiscalizam o cumprimento da medida
- Se tiver medida protetiva e o agressor descumprir, comunique a polícia. É possível acionar a Brigada Militar, pelo 190, ou mesmo registrar o descumprimento por meio da Delegacia Online. Descumprimento de medida pode levar o agressor à prisão
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone — 190
- Horário — 24 horas
- Serviço — atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
- Endereço — Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone — (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário — 24 horas
- Serviço — registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode solicitar a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública, entre outros serviços)