Em setembro, um caso brutal chocou o município de São Jorge, com 2,9 mil habitantes, na serra gaúcha. Uma mulher de 36 anos e os pais dela, já idosos, foram assassinados a tiros pelo ex-marido da vítima. Logo após o crime, o homem cometeu suicídio. A filha do casal, de quatro anos, estava na moradia. A menina faz parte de um grupo de 82 crianças e adolescentes que ficaram órfãos no ano passado, em razão de casos de feminicídio no Rio Grande do Sul. Os dados integram o Mapa dos Feminicídios, produzido pela Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) da Polícia Civil.
O levantamento mostra que das 87 vítimas de feminicídio no ano passado no Estado, 64, ou seja, 73% eram mães. Dessas, 32 tinham filhos com os próprios autores dos assassinatos. Essa série de crimes deixou 137 pessoas órfãs de mãe no Rio Grande do Sul. Em 2022, quando 106 mulheres foram vítimas de feminicídio, esse número era ainda maior. Foram 219 filhos que perderam as mães, sendo que deste total 95 eram crianças e adolescentes.
— Esse é um dos piores dados que há no Mapa. Não existem políticas públicas eficazes relacionadas ao tratamento dessas crianças, para que não se tornem vítimas ou perpetradores da violência. É um dado muito preocupante. Há casos de feminicídios na frente das crianças. Não tem como isso não causar um impacto absolutamente negativo na vida dessas crianças e adolescentes. Atendimento psicológico e psiquiátrico é o básico que uma criança que passa por isso precisa ter. Essas crianças precisariam receber atendimento mais célere. Além de haver uma busca ativa da rede por essas crianças, caso as famílias não busquem o atendimento — analisa a diretora da Dipam, delegada Cristiane Ramos.
No total, sete feminicídios registrados ano passado foram cometidos na frente de crianças e adolescentes. A maior preocupação é com o futuro desses menores, que passam pelo trauma e deixam de contar com a proteção da mãe. Neste crime na Serra, o casal estava separado havia cerca de um ano, após episódios de violência doméstica. No entanto, o homem teria continuado perseguindo a mulher. Durante a madrugada, o autor ligou para o padrinho da filha e pediu que ele fosse até a casa dos ex-sogros buscar a criança, única sobrevivente dentro da casa. O homem foi até o local resgatar a afilhada.
— Eu cheguei e ele falou comigo pela janela do porão. Depois, abriu a porta da garagem, a bebê veio caminhando até mim e ele fechou a porta. Eu perguntei se estava tudo bem e ela disse: "O papai disse que o vô e a vó estão morando no céu e a mamãe está chorando". Fiquei em choque — descreveu na época o padrinho, que foi o responsável por acionar a Brigada Militar, que localizou os corpos das vítimas no andar superior da casa e do autor no porão.
Segundo a promotora de Justiça, Ivana Battaglin, do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, uma das medidas adotadas é a alteração da guarda, que costuma ser repassada a algum familiar que possa acolher a criança. No entanto, quando isso não é possível, em alguns casos, os filhos precisam ser enviados para abrigos.
— O sistema de Justiça vai tomar providência em relação a essas crianças. Mas muitas vezes elas ficam desamparadas emocionalmente. Na nossa sociedade, cabe às mulheres o papel de cuidado. Não só com as crianças, mas com idosos e outras pessoas da família, sobretudo os filhos menores. Quando as mulheres morrem, elas (as crianças) ficam desamparadas. Isso desestrutura completamente a família inteira. Se o pai é o assassino, essa criança fica sem pai e sem mãe. Pois, muitas vezes ele acaba preso ou tirando a própria vida — afirma a promotora.
Perdem pai e mãe
Entre os filhos, oito, além de perderem a mãe, ficaram órfãos de pai, já que os autores, assim como no caso de São Jorge, tiraram a vida após o crime. Um dos fatores de alerta para casos de violência doméstica é saber se o agressor já ameaçou se suicidar. Isso pode ser constatado por meio do formulário de risco preenchido pela vítima no momento de registrar a ocorrência.
— Um homem que está com ideias suicidas não tem nada a perder. Antes de se matar, ele mata ela. Esses homens são socializados de uma forma que eles não podem em nenhuma hipótese perder seu objeto de estimação, que eles matam. Não suportam a ideia de que a mulher não quer mais. Ela não tem o direito de não querer — alerta Ivana.
Outro aspecto que costuma ser de alto risco é o momento em que o homem percebe que perdeu o controle sobre a mulher. Isso ocorre em muitos casos quando ela decide se separar ou ingressa num novo relacionamento.
Esse é um dos piores dados que há no Mapa. Não existem políticas públicas eficazes relacionadas ao tratamento dessas crianças, para que não se tornem vítimas ou perpetradores da violência.
CRISTIANE RAMOS
Delegada de Polícia
— É um sentimento de posse e controle absoluto. Ele se sente proprietário dessa mulher, e então ele percebe que perdeu o controle que tinha sobre ela — explica a delegada.
Um dos casos que despertou atenção em janeiro foi o assassinato da personal trainer Débora Michels Rodrigues da Silva, 30 anos. A mulher teve o corpo abandonado na calçada na frente da casa dos pais dela, em Montenegro, no Vale do Caí. O companheiro, de quem Debby estava se separando, confessou o crime e foi preso. A mulher foi morta um dia antes de se mudar do lugar onde vivia com o homem para um apartamento que havia alugado.
Uma série de outros comportamentos do agressor são analisados pela polícia no momento em que a mulher procura ajuda. O descumprimento da medida protetiva é um outro sinal de alerta, e que permite, inclusive, solicitar a prisão preventiva.
— O fundo de tudo é a perda do controle que ele mantém sobre essa mulher. Se ela inicia um novo relacionamento, se ela decide ir embora, e está prestes a se mudar. Se um homem descumpre a medida protetiva, se não está cumprindo uma determinação judicial, ele tem que ser preso — completa a delegada.
Fatores de risco
Cada caso de violência doméstica possui suas peculiaridades, mas alguns comportamentos e características são apontados como de risco alto para feminicídio. Confira alguns deles:
- Quando o homem persegue a mulher reiteradamente, seja pela internet, ou presencialmente, indo atrás dela no trabalho, por exemplo.
- Quando o agressor faz uso de drogas e álcool.
- Se a vítima é estrangulada ou enforcada.
- Se o autor possui acesso a arma de fogo.
- Quando o agressor ameaça tirar a própria vida.
- Quando o autor descumpre as medidas protetivas.
- Se a mulher está sofrendo violência e está grávida.
Pensão para órfãos
Em novembro do ano passado, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a lei que prevê que órfãos de vítimas de feminicídio tenham direito a receber pensão especial. O projeto de lei é de autoria da deputada Maria do Rosário. O texto prevê que filhos e dependentes menores de 18 anos e componentes de famílias com renda per capita mensal igual ou inferior a um quarto do salário mínimo podem solicitar o recurso. Na última semana, o benefício foi concedido pela primeira vez pela Justiça Federal a uma menina de sete anos do Pernambuco, que perdeu a mãe.
Maioria morre sem pedir ajuda
O Mapa dos Feminicídios mostrou que houve redução de 21% nesse crime no ano passado, mas que a maior parte das mulheres foi assassinada sem ter conseguido pedir ajuda. Das 87 vítimas, 57,5% não tinham ocorrência contra o autor do crime e 82% não tinha medida protetiva vigente. A maior parte dos crimes aconteceu no Interior do Estado. O consenso é de que quanto menos articulada a rede de proteção estiver, menos condições a mulher têm de acessá-la.
— A gente precisa melhorar a articulação da rede. A busca dessas mulheres, daquelas que não conseguem denunciar. Como sociedade, precisamos que isso aconteça, enquanto elas ainda estão vivas. A grande maioria morre sem nenhum tipo de atendimento da rede. E essas mulheres não morrem no primeiro ato de violência, e sim no final de uma cadeia de violências, que precisa cessar enquanto elas estão vivas. Precisamos de atuação junto às escolas para que as crianças e adolescentes saibam que relacionamento abusivo não tem que ser tolerado, temos que ter qualificação da rede de atendimento, para que as mulheres se sintam confiantes para denunciar — afirma a delegada Cristiane Ramos.
Em Porto Alegre, no ano passado houve redução nos casos de feminicídios, de 12 em 2022 para três em 2023. Medidas como melhoria no atendimento às vítimas e implantação do programa de monitoramento de agressores com uso de tornozeleira são apontadas como importantes para essa queda na Capital.
Prevenção ao feminicídio
- Se estiver sofrendo violência psicológica, moral ou mesmo física, busque ajuda imediatamente. Não espere a violência evoluir. Converse com familiares, procure unidades de saúde, centros de referência da mulher ou a polícia. É possível acessar a Delegacia Online da Mulher
- Caso saiba que alguma mulher está sofrendo violência doméstica, avise a polícia. No caso da lesão corporal, independe da vontade da vítima registrar contra o agressor, dado a gravidade desse tipo de crime
- Se estiver em risco, procure um local seguro. Em Porto Alegre, por exemplo, há três casas aptas a receberem mulheres vítimas de violência doméstica
- Siga todas as orientações repassadas pela polícia ou pelo órgão onde buscar ajuda (Ministério Público, Defensoria Pública, Judiciário)
- No caso da lesão corporal, o exame pericial para comprovar as agressões é essencial para dar seguimento ao processo criminal contra o agressor. Procure realizar o procedimento o mais rápido possível
- Caso passe por atendimento em alguma unidade de saúde, é possível solicitar um atestado médico que descreva as lesões provocadas
- Reúna todas as provas que tiver contra o agressor, como prints de conversas no telefone. No caso das mensagens, é importante que apareça a data do recebimento
- Se tiver medida protetiva, mantenha consigo os contatos principais para pedir ajuda. A Brigada Militar mantém em pelo menos 114 municípios unidades da Patrulha Maria da Penha que fiscalizam o cumprimento da medida
- Se tiver medida protetiva e o agressor descumprir, comunique a polícia. É possível acionar a Brigada Militar, pelo 190, ou mesmo registrar o descumprimento por meio da Delegacia Online. Descumprimento de medida pode levar o agressor à prisão
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone — 190
- Horário — 24 horas
- Serviço — atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
- Endereço — Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone — (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário — 24 horas
- Serviço — registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode solicitar a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública, entre outros serviços)
Procure ajuda
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes.
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.