Consolidada como importante ferramenta no combate à violência contra a mulher, as medidas protetivas de urgência (MPUs) concedidas aumentaram 84% nos últimos sete anos no Rio Grande do Sul. Somente nos seis primeiros meses de 2023, foram expedidas 83.206 decisões a favor de mulheres que sofrem violência, o que significa 459 registros ao dia no RS. No primeiro semestre de 2022, foram 60.632 MPUs. Ou seja, o indicador tem crescimento de 37% (veja gráficos abaixo).
Conforme especialistas, a elevação é positiva porque indica que mais mulheres estão buscando ajuda e entrando para a rede de proteção do Estado. O dado também mostra os efeitos de um problema estrutural que ainda não foi superado pela sociedade. Os números foram obtidos junto à Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) do Tribunal de Justiça do Estado.
A juíza-corregedora Taís Culau de Barros, coordenadora da Cevid, explica que o indicador não representa o total de mulheres atendidas, mas de medidas protetivas decretadas. Isso porque, para a mesma vítima, podem ser deferidas medidas diferentes, como de afastamento do agressor, proibição de contato com a mulher, determinação de atendimento psicológico, abrigamento da vítima e até de proteção de patrimônio da mulher, se necessário.
Conforme a magistrada, o crescimento observado entre 2022 e 2023 indica represamento anterior na busca de vítimas às autoridades. Nos primeiros semestres de 2020 e 2021, os números ficaram estáveis — com 54.699 e 52.225 medidas, respectivamente.
— A gente vê que os números vêm crescendo de forma paulatina, ao longo dos anos, e se mantêm estáveis durante a pandemia. Depois, em 2022 e 2023, voltam a subir, em razão de um represamento. Esse aumento é visto de forma positiva, porque mais mulheres estão buscando ajuda e sabemos que a concessão dessa medida salva a vida de vítimas. É sabido que, na maioria das vezes, a violência chega ao crime mais grave, o feminicídio, quando a mulher não tem a medida vigente — avalia Taís.
Segundo ela, ao receberem a decisão favorável, as vítimas são incluídas na rede de proteção do Estado, passando a ser acompanhadas pela Patrulha Maria da Penha, por exemplo.
De acordo com a promotora Ivana Machado Moraes Battaglin, que atua na área de violência doméstica há mais de 20 anos, o crescimento "não surpreende". Ela explica que o Tribunal de Justiça gaúcho é um dos que mais concede MPUs no país, segundo pesquisas.
— Ao longo dos últimos anos, os magistrados começaram a trabalhar com um novo paradigma. Estão cada vez mais compreendendo como funciona essa violência, olhando para esses casos com uma "lente de gênero". Entendendo que a mulher que pede ajuda é quem mais sabe do risco que corre, do que já passou, então precisamos acreditar nessa mulher, acolher — diz Ivana, que atua como coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (CAOVCM) do Ministério Público.
O aumento nos números também mostra, em parte, o tamanho do problema que resulta na violência contra a mulher no Estado, que segue sem solução definitiva. O dado não leva em conta, por óbvio, o índice de subnotificação — quando vítimas não denunciam, seja por medo ou vergonha, e os casos não chegam às autoridades — que esse tipo de crime costuma ter.
O aumento demonstra o retrocesso da nossa sociedade, mostra que ainda é necessário muito trabalho de conscientização e uma mudança de cultura.
TAÍS CULAU DE BARROS
Juíza
A análise dos dados de 2023 dá uma ideia do cenário dos casos notificados ao Estado: em seis semestres, foram autorizadas 83.206 medidas. São 13.867 deferimentos ao mês e 459 por dia. Ou seja, no RS, quase a cada três minutos uma mulher pede ajuda às autoridades para manter seu agressor afastado, por entender que corre riscos.
— Infelizmente, é um número muito alto. O aumento demonstra o retrocesso da nossa sociedade, mostra que ainda é necessário muito trabalho de conscientização e uma mudança de cultura. Esse crescimento é um sinal de adoecimento da nossa sociedade, indica que ainda não avançamos, que ainda falhamos. E é preciso lembrar que é necessário que todos nós nos engajemos na luta contra a violência doméstica, que a gente acolha as vítimas e apoie a denúncia — pondera Taís.
A juíza-corregedora destaca que o problema atinge mulheres de todas as camadas sociais, de diferentes núcleos e contextos.
Mudança de cultura
Conforme a promotora de Justiça Ivana Battaglin, antes da Lei Maria da Penha, que nasceu em 2002 e criou as MPUs para vítimas mulheres, os casos de violência doméstica eram tratados como de menor potencial ofensivo, que são considerados menos graves e têm penas menores. As vítimas, segundo ela, ficavam desamparadas:
— Não se falava em violência contra mulher nem se levava em conta fatores específicos desse tipo de crime. Os processos nem andavam e, quando andavam, a vítima costumava ser quase forçada a desistir da ação pelo próprio agressor. Elas estavam completamente desprotegidas. Quando surgiu, a Lei Maria da Penha enfrentou muita resistência, teve até quem dissesse que era inconstitucional.
A promotora avalia que, apesar do avanço já conquistado, ainda há um longo caminho a ser trilhado. Um dos pontos que precisa ser melhor compreendido pela sociedade, segundo ela, é de que as mulheres não permanecem em relacionamentos violentos por quererem. Muitas não buscam ajuda por medo, vergonha e dependência financeira ou emocional.
— Na sociedade, a tarefa de cuidar está intimamente ligada ao feminino. Seja cuidar da família, dos filhos, do marido, da casa. Criamos nossas meninas assim desde a infância, quando as presenteamos com bonecas, com cozinhas de brinquedo. Destinamos a elas o espaço privado, e aos meninos o público, com carros, bola. Então a mulher entende que é dever dela "salvar o homem", "salvar a relação", quando não andam bem. Ela busca uma justificativa para a violência, normalmente se culpando, para suportar aquilo e acredita que deve permanecer nesse contexto — explica a promotora.
Ivana afirma que este é um dos fatores que fazem muitas vítimas voltarem atrás nas denúncias contra seus agressores, entre outros motivos como pressão do parceiro e de familiares, por exemplo.
Ela também ressalta que episódios de violência física e ameaças não surgem de imediato nas relações, se intensificando com o tempo.
— Começa com ciúme, xingamento, alguma agressão verbal. Depois, evolui para a humilhação, violência psicológica, manipulação. Tudo isso vai preparando o terreno. Quando o agressor parte para a violência física, a mulher já não sabe como reagir, o que fazer, a quem pedir ajuda. Ela se vê dentro de um ciclo que não consegue sair, é uma espiral que cresce em intensidade e diminui o intervalo da violência. Só entende isso quem se propõe a estudar esse fenômeno. Então, se o Estado não tirar ela dali, não intervir, é provável que a violência prossiga e acabe no estágio mais avançado, o feminicídio.
Proteção
Para a titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) da Capital, delegada Cristiane Ramos, o crescimento do número de MPUs no Estado indica que as ações da Polícia Civil estão funcionando.
Segundo ela, a medida protetiva se consolida como recurso fundamental no combate à violência contra a mulher.
— Esse aumento mostra que as vítimas estão denunciando, notificando mais os casos ao Estado. E nós temos desenvolvidos inúmeros trabalhos justamente para que isso ocorra. É o que buscamos e nosso trabalho vai sempre estar focado em aumentar o número, diminuir a subnotificação e combater a violência.
Conforme a polícia, em 2022, das 107 vítimas de feminicídio no RS, 86 não tinha pedido medida protetiva contra o agressor.
Tire suas dúvidas
Quem pode pedir medida protetiva?
Qualquer mulher que esteja em situação de violência doméstica. Não é preciso ser casada com o agressor.
O que é considerado violência doméstica?
A Lei Maria da Penha prevê não somente a violência física, mas também a sexual (forçar relação ou forçar gravidez, por exemplo), patrimonial (subtrair bens, valores, documentos), moral (calúnia, difamação ou injúria) e psicológica (ridicularizar, chantagear, ameaçar, humilhar, isolar e impedir contato com amigos e familiares, vigiar, controlar, impedir de trabalhar e/ou de estudar, impedir de usar telefone/redes sociais).
Como posso obter a medida protetiva?
A mulher agredida deve se dirigir à Delegacia de Polícia ou Delegacia da Mulher mais próxima. Se precisar de proteção para si ou para os filhos, pode solicitar as medidas protetivas específicas e a própria Delegacia de Polícia encaminha o pedido ao juiz. Se for agredida em casa, a vítima deve sair do local para evitar que o agressor utilize objetos como faca e arma de fogo.
Quais tipos de medidas protetivas possíveis?
Entre as possíveis, está o afastamento do agressor do lar, proibição da comunicação entre o agressor e a vítima ou seus familiares, prestação de alimentos aos filhos menores, suspensão do porte de arma de fogo do agressor, proibição de contato ou aproximação com a vítima, restrição ou suspensão das visitas a dependentes menores, restituição de bens indevidamente subtraídos e encaminhamento da vítima a programa de proteção.
Quanto tempo dura a medida protetiva?
A validade da medida protetiva é determinada pela Justiça, dependendo de cada caso.
E se ele descumprir?
Se o agressor descumprir alguma das medidas protetivas, a vítima deve comunicar a polícia. Se o descumprimento estiver acontecendo no momento, chame a Brigada Militar, pelo 190. Se já aconteceu, é possível procurar a Polícia Civil, por meio da delegacia ou da Delegacia Online, a Defensoria Pública, o advogado ou diretamente no Juizado da Violência Doméstica.
Descumprimento da medida pode ser punido?
O descumprimento da medida protetiva também é crime. A pena é de três meses a dois anos de prisão. O juiz poderá decretar a prisão preventiva do agressor para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Onde posso obter mais informações?
Um dos canais que possui diversas informações para as vítimas é Coordenadoria Estadual da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ-RS. Acesse em gzh.rs/tjvd.