A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (DPE) registrou um aumento significativo no número de atendimentos envolvendo relatos de violência policial no Estado. Em 2021, foram 751 atendimentos, número que subiu para 1.061 em 2022, um aumento de 41%. Os dados foram divulgados no fim de fevereiro, em um evento, promovido pela Defensoria, que abordou e fez reflexões sobre o tema.
Os relatos abrangem denúncias contra agentes de diferentes esferas das forças de segurança, incluindo Brigada Militar, Polícia Civil, Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) e as Guardas Municipais de Alvorada, Cachoeirinha e Gravataí. Confira abaixo o contraponto das instituições.
Conforme a Defensoria, somente no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDDH), foram recebidos 625 casos. Destes, 493 envolveram relatos de violência perpetrada por agentes da Brigada Militar; 88 por agentes da Polícia Civil; 13 por agentes de guardas municipais; oito casos com relatos de agressão perpetrada, conjuntamente, por agentes da Brigada Militar e da Polícia Civil; quatro por agentes da Susepe; e 19 casos em que não houve identificação da instituição envolvida.
Dos 625 casos, 239 geraram novos expedientes administrativos para acompanhamento por parte do núcleo, o que representa um aumento de 71% quando comparado ao ano anterior, em que 139 procedimentos foram instaurados. Os dados mostram que Porto Alegre é a cidade que concentra quase metade dos relatos (300), seguida por Canoas (40), São Leopoldo (33), Alvorada (27) e Viamão (23).
Dos casos que estão sob acompanhamento do núcleo, a maior parte traz relatos de violência física. Outros denunciam ameaças verbais, sufocamento, invasão de domicílio, destruição e apreensão de bens e até choques elétricos.
O mesmo relatório da Defensoria aponta ainda que, no período de 2022, aconteceram seis mortes em decorrência de ações policiais.
Repercussão
A Defensoria não especificou todos os casos registrados, mas alguns tiveram maior repercussão no Estado, como o do torcedor do Brasil de Pelotas, Rai Duarte, que foi agredido por policiais do 11º Batalhão de Polícia Militar após partida da equipe pelotense contra o São José, no Passo D'Areia, em Porto Alegre. O caso ocorreu em 1º de maio de 2022 e outros torcedores também sofreram agressões.
Após o caso, Duarte foi internado com um corte no abdômen, que afetou o intestino. Eme ficou 47 dias na UTI do Hospital Cristo Redentor, em estado de coma induzido, e mais de cem dias no hospital. Ele também participou do evento em fevereiro, em que os dados foram divulgados, e falou sobre a experiência vivida.
Também em fevereiro, 17 policiais militares tornaram-se réus por tortura na Justiça Militar. Eles responderão nesta esfera também pelos crimes de falsificação de documento, injúria e ameaça.
Defensoria destaca adoção de medidas para conter episódios de violação de direitos
O aumento de atendimentos gerou reação por parte da Defensoria, que afirma que a apuração das denúncias de violência policial resultou na elaboração de 992 peças – entre peças jurídicas, envio de ofícios e elaboração de portarias, despachos, pareceres e memorandos nos expedientes administrativos instaurados pela instituição.
Uma novidade criada foi a inclusão de um campo de registro, no sistema da Defensoria Pública, para especificar a qual batalhão pertencem os policiais militares apontados como agressores – que traz agilidade no atendimento aos casos envolvendo relato de violência pela BM, explica a DPE.
Embora o aumento nos números, a dirigente do NUDDH, Aline Palermo Guimarães, destaca como positivo o movimento de medidas adotadas para conter episódios de violação de direitos.
— Apesar do aumento dos números, é possível observar, no ano de 2022, a elaboração e implementação de iniciativas em prol da garantia de direitos humanos, tais como os esforços dos poderes Executivo e Legislativo para adoção de câmeras corporais no uniforme de policiais, bem como a continuidade do trabalho das diversas corregedorias no intuito de investigar e solucionar as denúncias recebidas. Os dados aqui apresentados dizem respeito apenas à atuação da Defensoria Pública, mas espera-se que o levantamento oportunize a órgãos e instituições públicas a reflexão conjunta e a implantação de medidas voltadas à compreensão e superação de violações de direitos humanos — pondera Aline.
Diferentes servidores participaram do evento organizado na última semana. Entre eles, a defensora pública e assessora técnica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Mariana Py Muniz, que falou sobre sua experiência com o tema. Para ela, a problemática da violência policial não está apenas no campo jurídico, mas também no campo social.
— Essas pessoas não se percebem vítimas de violência policial porque no território delas isso já é a realidade. Precisamos perceber a institucionalização desse fenômeno e a estrutura que o compõe, porque não estamos falando de casos isolados. Não é a maçã podre. Estamos falando de algo que permeia a construção das instituições policiais — avaliou.
O advogado criminalista Marçal Carvalho também participou do evento e trouxe um recorte racial ao debate, fazendo um paralelo entre o racismo estrutural e a violência policial. Carvalho pontuou que as polícias militares surgiram após a abolição da escravatura, como forma de evitar que os negros circulassem em determinados espaços. Para ele, o Estado segue excluindo as pessoas negras, as marginalizando e fragilizando, para depois as prender.
— É o Estado que decide quem vive e quem morre. E é o Estado que decide de acordo com a cor da tua pele. Estar sob atividade suspeita significa ser negro.
Contraponto
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP) se manifestou em nome da BM, PC e Susepe. A pasta afirmou que "não compactua com desvios de conduta de policiais e agentes" e que dispõe de órgãos fiscalizadores, "responsáveis pela apuração de eventuais casos, que podem resultar em punições severas".
"Além de trabalhar na capacitação e qualificação permanente dos policiais, a SSP informa que a Corregedoria-Geral da Brigada Militar ainda aumentou o efetivo a fim de fortalecer as apurações. A BM também formou novos sargentos e tenentes para potencializar a supervisão com a corporação".
A pasta disse ainda que "todas as vinculadas da SSP contam com departamentos para fiscalização e controle de condutas" e que a secretaria é composta por "servidores qualificados e comprometidos com a segurança e bem-estar da sociedade gaúcha".
Também em nota, a Corregedoria-Geral da Susepe afirmou que "se mantém vigilante quanto aos possíveis casos de violência no âmbito do sistema prisional, sempre diligente no recebimento de denúncias, mantendo contato direto com as demais instituições, objetivando a efetiva apuração dos fatos noticiados e tomando as providências legais em cada um dos casos".
O comandante-geral da Brigada Militar, coronel Claudio dos Santos Feoli, acrescentou que a instituição se reuniu com a Defensoria Pública em setembro do ano passado, para debater casos do tipo.
— Nosso objetivo foi entender os critérios que baseiam os dados divulgados por parte do núcleo, porque eles não fecham com os que temos na Corregedoria da BM. Temos o maior compromisso com o combate a violência policial, mas precisamos trabalhar com métodos científicos. Na reunião, a BM propôs fazer uma interação dos dados das duas instituições, mas não fomos mais procurados pela Defensoria. De qualquer forma, estamos melhorando nossos métodos, divulgamos uma série de medidas para mitigar os episódios recentemente e seguimos à disposição.
Feoli também critica a comparação entre os dois anos, já os efeitos da pandemia se destacavam mais em 2021 do que em 2022.
A reportagem também entrou em contato com as Guardas Municipais de Alvorada, Cachoeirinha e Gravataí.
O comandante da equipe de Alvorada, José Joceli da Rosa Moraes, afirmou que "todo e qualquer desvio de conduta é apurado pela corregedoria da GM". Se o caso for julgado procedente, é aberta investigação, que pode resultar em penalidades aos agentes, explica.
— Agimos dentro da legalidade. Qualquer desvio é apurado conforme legislação específica.
O comandante da GM em Gravataí, Henrique Gaus, afirma que todas as denúncias que chegam ao órgão são "apreciadas ao rigor da lei". Segundo ele, casos no municípios existem, mas são raros. Gaus ressalta diferenças entre casos de violência policial e os episódios em que o agente precisa usar de força durante o atendimento.
— Às vezes, para conter o criminoso, é necessário o uso moderado da força, para que ele seja incapacitado e mobilizado, até ser entregue à autoridade policial. E isso, por si só, pode causar lesões, porque é necessário fazer força superior a que o indivíduo está fazendo contra o agente. São situações diferentes. Existe o abuso, é claro, mas eles são apurados. Hoje em dia, temos mecanismos para verificar as denúncias, e elas são raras na GM de Gravataí.
O secretário de Segurança de Cachoeirinha, Marcos Barbosa, afirmou que apenas um caso foi registrado contra a GM do município, em 2020, e que não há conhecimento sobre denúncias posteriores. Ele destacou a importância do trabalho realizado pelo núcleo da Defensoria e disse que a pasta trabalha para garantir que nenhuma violação de direitos ocorra.
— A orientação é justamente o respeito a legalidade. Além disso, temos curso de formação que estão sendo restabelecidos, para que o guarda municipal tenha todo o conhecimento de suas atribuições e do respeito aos direitos humanos. Nossa guarda não é violenta e não temos registros neste sentido.
Onde denunciar:
- Corregedoria-Geral da BM: (51) 98577-8135
- Corregedoria-Geral da Polícia Civil: 0800-5104669 e (51) 3288-5506
- Corregedoria-Geral CBMRS: (51) 98577-1362
- Defensoria Pública: na sede mais próxima da sua residência ou diretamente com o Núcleo de Defesa de Direitos Humanos pelo telefone 0800-644-5556.