Lucas Milford saiu de casa para se divertir com os amigos em uma noite de sexta-feira e prometeu à mãe, Tatiane Origuella, que voltaria para jantar. Pouco antes das 23h, fez contato por telefone e disse que logo estaria em casa. Mas, 20 minutos depois, quem bateu à porta da casa no Bairro Parque Marinha, em Rio Grande, foi um vizinho. Ele trouxe a notícia de que Lucas não mais voltaria.
O jovem, de 23 anos, foi baleado no rosto por um desconhecido, na Avenida das Enseadas, e se tornou mais uma vítima da onda de violência em Rio Grande em 2022. A pouco mais de dois meses para o fim do ano, já são 77 homicídios consumados, um recorde na história da cidade mais antiga do Rio Grande do Sul.
Dados dos indicadores criminais, levantados pela Secretaria da Segurança Pública, mostram que Rio Grande, que tem apenas a décima maior população entre os municípios gaúchos, fica atrás somente de Porto Alegre na quantidade de homicídios. A explicação para a explosão da violência é unânime entre forças de segurança e especialistas: a guerra entre facções criminosas pelo controle do tráfico de drogas. De um lado, uma facção já estabelecida em Rio Grande, que dominava o comércio ilícito na cidade. Do outro, uma organização da Região Metropolitana que busca expandir a atuação pelo Interior.
O início do confronto aconteceu no fim de outubro de 2021, com a descoberta, pela polícia, de um falso plano de fuga da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). O plano foi forjado pelas lideranças da facção de Porto Alegre para levar o Estado a isolar e transferir os chefes da facção hegemônica em Rio Grande para unidades prisionais fora do RS.
As represálias entre os criminosos se intensificaram a partir de dezembro, quando foram registrados sete homicídios. Em três meses, entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022, foram 24 assassinatos consumados, igualando a marca dos 11 meses anteriores, entre janeiro e novembro de 2021. O auge da violência aconteceu nos meses de março e maio, com 13 homicídios cada. Os dados são da Polícia Civil. Ainda ficam fora desta contabilidade do órgão dois latrocínios, cinco mortes em confronto e uma lesão corporal seguida de morte. Somados estes casos, são 85 mortes violentas na cidade do início de 2022 até a metade de outubro.
A reação das forças de segurança foi imediata. Rio Grande não tem uma delegacia especializada em homicídios, mas uma força-tarefa foi criada em janeiro na Delegacia Regional para investigar os crimes. Para a delegada regional Lígia Furlanetto, a iniciativa deu certo e mais de 90% dos autores de homicídios foram indicados pela polícia nos inquéritos. A Brigada Militar também intensificou a atuação contra o crime. Conforme dados do 6º Batalhão, foram apreendidas 307 armas até o final de setembro — recorde da BM em Rio Grande e maior número do ano entre as cidades do Interior. A apreensão de drogas passou de 100 quilos, entre maconha, cocaína, crack, skank e ecstasy - um prejuízo estimado às facções de R$ 2,9 milhões.
— O combate a esse tipo de homicídio, derivado de disputas de territórios, demora para ter resultados. Não é como qualquer outro crime. Temos dezenas de integrantes de facções que atuam. Temos que agir com aumento de policiamento, com apreensão de armas. Neste ano, só em armamento, temos R$ 1,68 milhões em apreensões — afirma o major Fábio Martinez Maciel, que respondeu pelo comando do 6º Batalhão de Brigada Militar, em Rio Grande, no mês de setembro.
A partir do segundo semestre, as ocorrências de homicídios apresentaram queda. Em julho, foram duas mortes violentas. Para os comandos das forças de segurança, a redução está ligada ao trabalho integrado de combate às facções no município, que teria enfraquecido as organizações criminosas. A força-tarefa da Polícia Civil foi desmobilizada e as investigações voltaram para as delegacias distritais.
Mas, para o cientista social e pesquisador na área de Segurança Pública Charles Kieling, o arrefecimento da violência está mais relacionado ao domínio da facção da Região Metropolitana sobre o tráfico local e o extermínio das facções rivais.
— Nós estamos assistindo isso em todo o país. Não é exclusivo do Rio Grande do Sul. As grandes facções entram em coalizão, estabelecem as áreas de controle e há uma redução dos homicídios porque as facções locais são exterminadas ou passam a fazer parte desta grande facção. Isso dá uma falsa sensação de que as coisas estão em um certo apaziguamento. Não, nós estamos com o sistema de segurança ainda refém das decisões que as facções tomam no Estado — avalia o pesquisador.
Para Kieling, a cidade é visada pelas organizações criminosas por conta da logística de transporte ligada, principalmente, ao Porto do Rio Grande. O especialista também alerta para a sazonalidade dos crimes e aponta a possibilidade de nova alta dos homicídios. Em setembro, foram oito casos registrados.
— Há uma redução dos homicídios. Os chefes locais vão cuidar da parte financeira da facção. Porém, quando o dinheiro começa a entrar, passam a se deslumbrar com essa riqueza e tirar da própria facção. Então, há uma sazonalidade, um aumento dos homicídios. Essas pessoas são executadas, eliminadas, como uma medida de exemplo aos outros. Então, podemos ter, nos próximos meses, algum momento ou outro com aumento dos homicídios, o que dá a impressão de uma guerra de facções, quando, na verdade, é uma questão interna dos próprios faccionados que estão cobrando alguma dívida, alguma situação — argumenta Charles Kieling.
Brutalidade e envolvimento de adolescentes
O envolvimento de adolescentes na guerra entre as facções também preocupa. Dos 77 homicídios consumados, seis foram de pessoas com até 17 anos. As investigações da Polícia Civil também apontaram 11 homicídios com autoria de menores de 18 anos — três adolescentes estavam envolvidos em mais de um assassinato.
— Há um envolvimento muito grande de adolescentes nesses fatos, o que indica uma falta de controle. Normalmente esses jovens acabam querendo resolver rixas antigas neste contexto dos homicídios. Então, além de uma disputa macro entre as facções, a gente observa também disputas individualizadas em razão de desavenças de grupos pequenos de diferentes bairros, que também acabam refletindo neste número. É um problema bastante grave e não envolve apenas a segurança pública. É um problema que deve ser tratado por todos os setores da sociedade — analisa a delegada Lígia Furlanetto.
Outro fator que chama a atenção das autoridades é a brutalidade das ações. Na madrugada de 27 de setembro, criminosos filmaram a execução de um adolescente de 14 anos e compartilharam o vídeo nas redes sociais. O jovem foi rendido na Praia do Cassino. Nas imagens, a vítima aparece ajoelhada na areia, com as mãos presas. O rapaz é obrigado pelos criminosos a falar o nome de uma das facções. Na sequência, é atingido por pelo menos 12 disparos, à curta distância. O corpo foi localizado pela manhã.
— A brutalidade é uma demonstração de força da facção. Quanto maior a brutalidade, maior o medo, o receio que ela causa para a outra facção. Essa é uma característica da guerra de facções — analisa o major Fábio Martinez Maciel.
Saudade marcada na pele
Uma feição alegre, com um sorriso no rosto, e a camisa do Grêmio no corpo. É assim que Gabriel Crizel, de 25 anos, decidiu eternizar a imagem do amigo Lucas. A homenagem está marcada na pele, em uma tatuagem no peito. Amigos e vizinhos desde a infância, Gabriel e Lucas cresceram juntos e cultivaram uma paixão em comum: o Tricolor gaúcho. Junto de Erick Xavier e Bruno Souza, formavam um quarteto inseparável. Os dois também planejam uma tatuagem semelhante para manter viva a memória do amigo.
Lucas Milford foi morto na noite de 26 de agosto, na Avenida das Enseadas, no bairro Parque Marinha, em Rio Grande. Ele saiu de casa para assistir ao jogo do Grêmio com amigos, mas optou por não ficar para a confraternização após a partida. Ele voltava a pé para casa quando foi atingido no rosto por um disparo. Conforme a Polícia Civil, criminosos ligados a uma facção passaram pelo local de carro e atiraram a esmo, com a intenção de acertar pessoas ligadas a uma facção rival, mas apenas Lucas foi atingido. Ele não tinha antecedentes criminais e não era ligado ao tráfico de drogas.
Lucas é descrito pelos amigos como uma pessoa alegre, bem-humorada, sorridente e companheira, a ponto de ser considerado um irmão.
— Sem palavras. Para o que precisasse, poderia contar com ele. Ele estava sempre disposto a te ajudar — conta Gabriel.
A cerimônia de sepultamento do corpo teve homenagens do Consulado do Grêmio em Rio Grande. Na despedida, os colegas entoaram cânticos da torcida tricolor. Lucas era rio-grandino e filho único de Tatiane.
— É difícil. Não há um dia que eu não pense nele, que eu não chore quando paro para pensar que não terei mais ele. A empresa onde trabalho me deu férias. Eu não sei se vou conseguir voltar. Estou fazendo acompanhamento psicológico também. É uma perda, ter que enterrar o filho com toda uma vida pela frente — lamenta a mãe.