Diante da decisão de anular a condenação dos réus no caso da Boate Kiss, na quarta-feira (3), o Ministério Público (MP-RS) traça alternativas para tentar reverter a determinação e busca garantir que os condenados pelo incêndio voltem à prisão. Os quatro acusados — Elissandro Callegaro Spohr, Mauro Hoffmann, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão — foram colocados em liberdade e deixaram a prisão ainda na noite de quarta, logo após a decisão.
Para recorrer, o MP aguarda a publicação do acórdão da decisão de quarta — ou seja, a publicação do que foi definido na sessão. De acordo com o TJ, a previsão é de que essa publicação ocorra entre esta quinta (4) e a próxima segunda-feira (8).
Mesmo sem essa oficialização, o Ministério Público já fez sua primeira movimentação ainda na noite de quarta-feira. Após a decisão pela anulação, o órgão enviou petição ao ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em que solicita a revogação da soltura dos quatro réus. De acordo com o MP, a prioridade agora é fazer com que todos sejam novamente presos. Isso porque, assim, o processo tramita mais rapidamente, já que casos de réus presos têm prioridade.
O pedido, colocado como de urgência, destaca que, em decisão de dezembro passado, Fux derrubou um habeas corpus que mantinha os réus em liberdade e disse que "é cediço que a autoridade desse pronunciamento apenas pode ser alterada ou revogada no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, pelas vias recursais próprias. Nesse sentido, nenhuma decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ainda que em sede de julgamento de mérito do habeas corpus, teria o condão de sustar, direta ou indiretamente, os efeitos da decisão suspensiva prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível inversão de instâncias".
No documento enviado a Fux, assinado pelo procurador-geral de Justiça Marcelo Lemos Dornelles, o órgão ainda defende que a soltura dos réus pode representar "abalo à confiança da população nas instituições públicas".
Estamos recorrendo ao STF porque acreditamos que houve descumprimento de uma regra constitucional, utilizando, na argumentação, o que disse o próprio ministro em decisão que manteve presos os quatro réus, ou seja, que a prisão deve ser mantida até o trânsito em julgado, ou até decisão contrária do Supremo Tribunal Federal.
MARCELO LEMOS DORNELLES
Procurador-geral de Justiça
"Deve-se acrescentar que a concessão da liberdade aos acusados, por ocasião do julgamento do recurso de apelação pelo Colegiado Gaúcho, contribui sobremaneira para tal 'abalo à confiança da população nas instituições públicas', bem como ao 'necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social', pois, em caso excepcional de amplíssima repercussão nacional e internacional, dá azo a sucessivas determinações do Poder Judiciário de prisão e soltura, além de sinalizar, em completa subversão à hierarquia das decisões judiciais, que decisum proferido pelo Ministro Presidente da mais Alta Corte do Estado Brasileiro pode ser (re)discutido por Tribunais estaduais", diz o MP.
— Estamos recorrendo ao STF porque acreditamos que houve descumprimento de uma regra constitucional, utilizando, na argumentação, o que disse o próprio ministro em decisão que manteve presos os quatro réus, ou seja, que a prisão deve ser mantida até o trânsito em julgado, ou até decisão contrária do Supremo Tribunal Federal — afirma Dornelles, que assina o expediente.
Não há prazo para que essa petição seja analisada por Fux.
STJ e STF
Além da petição pedindo a prisão, o MP também irá percorrer outros dois caminhos para tentar reverter a decisão de anulação: será enviado um recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e um recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal (STF). Isso será feito após a publicação do acórdão.
Nessas medidas, o MP tentará reverter a decisão pela anulação. Conforme Dornelles, "não houve nada de errado" no júri que condenou os réus. O procurador-geral afirma que há pontos na anulação do júri que ferem tanto a lei quanto a Constituição:
— O processo é um instrumento, um fluxo, um procedimento, ele não tem um fim em si mesmo. Ele tem que efetivamente garantir situações em relação ao devido processo legal, à ampla defesa, mas isso tudo foi garantido. Para que haja a nulidade tem que ser um prejuízo efetivamente grave, a ponto de anular todo o julgamento. O que nós vimos de argumentação ali passa ao largo disso.
O subprocurador-geral de Justiça para assuntos institucionais do MP, Júlio César de Melo, afirma que o órgão recebeu a decisão com "perplexidade":
— Nós lamentamos a decisão e nos solidarizamos com familiares e sobreviventes. Também nos solidarizamos com toda a sociedade gaúcha, que acompanhou aqueles dias de angústia não só do fato, do incêndio, mas também do julgamento. Embora essa perplexidade, nós iremos recorrer aos tribunais superiores.
O MP também informou que ainda avalia se entrará com embargos de declaração junto ao próprio Tribunal de Justiça.
A suspensão
Por 2 votos a 1, na quarta, os desembargadores da 1ª Câmara Criminal decidiram anular o júri ocorrido em dezembro de 2021 — considerado o maior até hoje no RS — e submeter os réus a novo julgamento. Eles aceitaram as apelações de advogados de defesa dos réus, que alegam nulidades no processo.
Uma delas seria uma reunião do magistrado do caso que não está na ata nem nas gravações do julgamento. O desembargador José Conrado Kurtz de Souza, que votou pela anulação do júri, avaliou que os atos realizados em plenário precisam ocorrer sob os olhos de todos ou pelo menos das partes envolvidas e ser registrados.
Em aberto
Conforme o pós-doutor em Direito Penal e professor da PUC-RS, Marcelo Peruchin, o desfecho do caso é incerto e dependerá da análise do STJ e STF:
— É possível que a decisão pela anulação seja reformada, o que faz com que o júri de dezembro volte a ser validado, assim como as prisões. Mas também é possível que a decisão do TJ seja mantida e, nesse caso, será feito um novo julgamento.
Em relação aos recursos, Peruchin explica que o primeiro a ser apreciado será o especial, no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Se o pedido do MP for aceito, o júri de dezembro volta a ser validado e os réus podem retornar à prisão. Se o pedido for negado, no entanto, será analisado o recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF).
Contraponto
Questionado sobre a decisão dos desembargadores de anular o júri, o TJ se manifestou por meio de nota, enviada pelo desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação Social do tribunal. Confira:
"O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul possui expertise consolidada na realização de grandes júris de repercussão, estando apto para estruturar um novo julgamento, aos moldes de como ocorreu o último, de modo que iremos enfrentar a demanda, se a decisão for mantida".