O relato sobre a violência física e emocional sofrida pela menina Mirella Dias Franco, 3 anos, dentro de casa, em Alvorada, trazem "reflexão" e apontam falhas na rede de proteção a crianças e também na sociedade, de acordo com a equipe da Polícia Civil que investigou o caso. A criança morreu em 31 de maio, em razão de uma hemorragia abdominal. Conforme a investigação, a menina era submetida a agressões frequentes, teve queimaduras e fraturas pelo corpo, e também era privada de se alimentar e de tomar banho.
— É uma criança de três anos que sofreu uma violência muito grave. Uma criança extremamente pequena, frágil, que foi constantemente tão agredida e exposta a violência que acabou não resistindo. Foi submetida a um intenso sofrimento, não só físico, mas também psíquico, ao longo de quase dois anos, que é o período que a mãe e o padrasto mantiveram relacionamento. Por alguma razão, que não nos cabe tentar entender porque não há justificativa plausível, a Mirella vivia toda essa situação. É uma violência inominável — define a delegada responsável pelo caso, Jeiselaure Rocha de Souza.
O inquérito do caso foi concluído pela Polícia Civil e remetido à Justiça nesta quarta-feira (22). A mãe da criança, Lilian Dias da Silva, 24, e o padrasto, Anderson Borba Carvalho Junior, 27, foram indiciados pelo crime de tortura-castigo com resultado morte. Eles estão presos desde 11 de junho. O conselheiro tutelar Leandro da Silva Brandão, que teria mentido em depoimento durante a investigação, também foi indiciado por falso testemunho e falsificação de documento público. Ele está afastado das funções no conselho.
Jeiselaure afirma que cerca de 30 pessoas foram ouvidas ao longo do inquérito. Algumas delas disseram que tinham conhecimento da violência, que já haviam visto as agressões e também marcas pelo corpo da menina.
— Ela teve muitas entradas no sistema de saúde nos últimos meses, com fraturas, queimaduras. Estava sempre machucada, sempre reclamando que não queria voltar para casa. Temos testemunhas que afirmam que já tinham visto a Mirella com as mãos amarradas dentro de casa, e que isso era de ciência do padrasto e da mãe. No depoimento, pessoas que cuidavam da menina disseram que ela estava sempre com algum machucado, com olho roxo, que chorava e se escondia embaixo das cobertas para não voltar para casa.
Apesar disso, segundo a polícia, nenhum familiar, vizinho ou conhecido da menina fez nenhum tipo de denúncia sobre o caso.
— Os depoimentos são claros ao mostrar que muitas pessoas perceberam, no decorrer dos anos, que a menina estava passando por um processo de violência. Mas nenhuma denúncia chegou. Talvez se ao menos uma dessas muitas pessoas que viam essa situação tivesse feito uma denúncia, fosse possível ter mudado a realidade dela — lamenta Jeiselaure.
Segundo a polícia, as agressões eram feitas tanto pelo padrasto quanto pela mãe da menina.
No começo da investigação, eles teriam dito que a criança se machucou quando estava no banho. No entanto, segundo a equipe médica que atendeu a menina no dia da morte, ela estaria sendo privada de cuidados de higiene básica:
— O atendimento médico comprova que ela não tomava banho já há alguns dias. Inclusive, nas roupas íntimas dela, tinha urina e resto de fezes, o que seria limpo se ela tivesse esse contato com a água. Ele teve até sarna. Essa menina era submetida a frio e fome, a negligência de cuidados básicos e de higiene ao longo desse tempo.
Segundo a polícia, a menina não ia para creche nem escola, mas era deixada com diferentes cuidadoras.
"Falhamos como sociedade", diz delegado regional
Apesar das reiteradas agressões a menina, amigos e familiares que frequentavam a casa permaneceram sem fazer denúncias. Segundo a polícia, Mirella teve diversas entradas em hospitais, com fraturas e machucados. A maioria das instituições também não alertou as autoridades — o número exato de vezes que ela foi levada a atendimento médico não foi confirmado pela polícia.
— Quantas vezes ela foi levada para hospitais com ferimentos? Uma vizinha de trás da casa afirmou que sabia, que tinha conhecimento. A gente se pergunta: por que ninguém avisou a polícia ou o Ministério Público? Não havia nenhuma, nenhuma denúncia dessas pessoas contra esse casal. Ela era muito pequena, não tinha como sair dali, avisar alguém. Mirella sofreu sem conseguir pedir socorro, apoio. Há uma falha na rede de proteção, e nós falhamos como sociedade — analisa o delegado Juliano Ferreira, da 1ª Delegacia Regional Metropolitana.
De acordo com a polícia, uma única denúncia às autoridades foi encontrada pela polícia, por parte do Hospital Cristo Redentor, em 10 de janeiro. A instituição informou ao Conselho Tutelar de Alvorada sobre suspeitas de que a menina sofria maus-tratos. Na ocasião, a criança havia sido levada pelo avô materno a uma consulta, pois estava com fraturas.
O alerta foi encaminhado ao conselheiro Leandro da Silva Brandão. Ao depor na polícia, ele afirmou que, em fevereiro, esteve no endereço da família e tentou contato telefônico, sem sucesso. Alegou ainda que registrou as diligências em uma certidão e que não retornou ao local em razão de excesso de trabalho.
Após o depoimento, no entanto, a polícia recebeu denúncias de que o homem estaria mentindo. As equipes fizeram diligências junto ao Conselho Tutelar, analisando planilhas de rotas dos veículos do órgão e ouvindo colegas, motoristas e demais funcionários.
Conforme a apuração, Mirella só ganhou uma pasta de registro no órgão depois de morrer. E, nesta pasta, o conselheiro inseriu a certidão com a declaração, possivelmente falsa, de que havia tentado contato com a família em fevereiro, após a denúncia do Hospital Cristo Redentor.
A polícia afirma, no entanto, que o conselheiro não fez nenhuma das diligências que relatou em depoimento e que os documentos apresentados são falsos. O indiciamento ocorreu em razão dessa conduta, e não de uma suposta omissão, explica a polícia.