A morte trágica da cadelinha de estimação de um menino em Sapucaia do Sul, na Região Metropolitana, poderia ser lembrada apenas pela dor da perda, já que o animal foi morto a tiro por um comerciante na frente do adolescente, no Dia das Crianças em 2020, logo após a sanção da nova lei dos maus-tratos aos animais.
Quase um ano depois, a família tenta preencher o vazio que ficou, mas as boas lembranças e a vontade de que outras situações como essa sejam coibidas acabaram prevalecendo.
Um dia depois da tragédia, ao acordar sem a companheira do dia a dia, Alexandra Moreira da Silva diz que o filho Jackson olhou para uma área verde em frente à casa onde residem, no Loteamento Nascer do Sol, bairro Boa Vista, e teve uma ideia:
— Mãe, a Belinha não está mais aqui para me acordar, mas quero um lugar onde os seres humanos possam brincar com seus animais.
Desde então, com doações e a ajuda de vizinhos, a família conseguiu arrumar o local, comprou brinquedos para crianças e irá inaugurar, com uma festa no próximo dia 12, um ano depois do crime, a praça da Belinha.
— Nunca vou esquecer ela, não tive mais outro cachorro, outro animal de estimação, a Belinha era considerada da família, todo mundo ficou triste quando ela se foi. Ainda é difícil esquecer aquela brutalidade que foi feita, não tinha necessidade daquilo, infelizmente aconteceu — explica Jackson Alessandro Delavechia de Lima, 14 anos.
No ano passado, o menino foi a um mercado na região e Belinha o acompanhou, como de costume. Mesmo tendo ficado do lado de fora do estabelecimento comercial, a presença do animal teria irritado o proprietário. Segundo a polícia, na época, ele acabou atirando na cadela com uma espingarda. O disparo chamou a atenção de Jackson, que saiu do mercado. Ao ver o fato, ele pegou no colo o animal de estimação e, na tentativa de socorrer Belinha, a levou até seus pais. Mas ela não resistiu.
Alexandra diz que foi muito difícil superar tudo, ainda mais porque foi no Dia das Crianças e também pelo fato de que a cadela estava com a família há oito anos. Em relação ao crime que causou comoção, mas também indignação por parte da comunidade, o comerciante Nelson Edison Martins Fagundes, 43 anos, foi preso em flagrante pela Brigada Militar. Ele ficou 27 horas preso e recebeu liberdade provisória. O processo está em andamento no Judiciário e aguarda marcação de audiência. Tanto na época, quanto atualmente, GZH não conseguiu contato com ele.
A praça da Belinha
A mãe de Jackson destaca que não quis saber o que houve com o agressor, ressaltando que o foco foi dar apoio ao filho. Ela conta que o garoto recebeu apoio de várias pessoas, inclusive uma camisa do Grêmio autografada pelos jogadores. Foi feita até uma vaquinha online, onde conseguiram arrecadar R$ 4 mil.
Da cena que viu no ano passado, com a Belinha morta nos braços do filho, Alexandra diz que o carinho de todos foi crucial para a superação:
— Isso queima, é que nem brasa quente na tua mão, escutar isso da boca dele, depois que aconteceu tudo aquilo, mas a gente reverte e a emoção toma conta ao também ouvir dele a vontade de ter a praça. Eu estou emocionada, me tranca as palavras toda a ajuda que recebemos.
Família, amigos e vizinhos, com apoio de vários doadores e da prefeitura de Sapucaia do Sul, limparam o local, conseguiram brinquedos, lixeiras, floreiras e materiais diversos para a praça localizada na Avenida Juventino Machado, em frente à Rua Antenor da Silva, no bairro Boa Vista. Todo o trabalho é postado nas redes sociais da família para garantir a transparência.
No dia 12 de outubro será a inauguração do espaço e haverá uma festa, com previsão de medidas voltadas para os cuidados sanitários. A família ainda busca apoio para conseguir balas, pirulitos e brinquedos para as crianças. O objetivo é levar para todos os participantes um pouquinho da consciência sobre cuidados com os animais, mas também mostrar que, independentemente da tragédia sofrida, sempre há uma forma de reparar o dano.
Apesar de não conseguir ter outro animal que substitua Belinha, Alexandra espera que, com a praça, seu filho possa compensar a perda com dezenas de outros animais ao seu redor.
— Peço que cuidem muito bem dos seus animais, não deixem passar fome e frio. Tenho certeza que, quando tudo estiver dando errado, ele vai estar lá para te ajudar, é o único amigo que tu vai poder contar, ele nunca vai contar o teu segredo. Parece que tu entende o que eles latem ou miam — diz Jackson.
Maus-tratos
Alexandra diz que a lei dos maus-tratos aos animais, sancionada em 29 de setembro de 2020, 13 dias antes da morte de Belinha, foi importante, principalmente para que, em casos como esse, os agressores possam ser detidos. Mas o coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do Ministério Público, promotor Daniel Martini, diz que a nova regulamentação precisa de avanços, principalmente na questão sobre acordos penais, em casos de bons antecedentes e não utilização de benefícios anteriores.
Na prática, Martini destaca que o chamado Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) exclui o processo criminal e interfere no flagrante, ou seja, o agressor acaba sendo solto e ocorrem penas alternativas.
Rejane Ferreira, da Associação Duas Mãos Quatro Patas, na zona sul de Porto Alegre, lembra ainda que a nova lei só vale para cães e gatos, excluindo outros animais, bem como só trata sobre o agressor, deixando de lado o atendimento ao animal, o que recai a municípios e a entidades sociais ou privadas de proteção.
Desde que houve a sanção da nova lei federal, o Rio Grande do Sul registrou 8,1 mil casos de crueldade e 2,8 mil de omissão de cuidados por parte da Polícia Civil e Brigada Militar. Houve 64 flagrantes registrados em delegacias e o Tribunal de Justiça teve 1.021 processos, com 10 condenações.
Casos mais registrados
Segundo o tenente-coronel Vladimir da Rosa, que responde pelo Comando Ambiental da Brigada Militar (CABM), a corporação faz fiscalizações a atende a denúncias pelo telefone 190 e 181 ou pelo site. Desde a segunda metade do ano passado, já ocorreram 440 operações de combate aos maus-tratos aos animais e, segundo o militar, a nova lei é um incentivo no trabalho diário que verifica dezenas de casos que não somente agressões e mortes.
Entre eles, os mais registrados são falta de abrigo adequado, abandono durante vários dias, falta de alimentação adequada, não realização de consultas e vacinas obrigatórias e não encaminhamento para tratamento em caso de doença grave.
Delegacias amigas dos animais
A chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor, diz que, além dos registros de maus-tratos e das prisões em flagrante, a instituição tem como meta as chamadas “delegacias amigas dos animais”.
Desde o início da sua gestão, já foram criadas 44 delegacias, sendo 29 no Interior e 15 na Região Metropolitana. São locais especializados dentro das estruturas já existentes e que têm um trabalho diferenciado no atendimento de denúncias sobre esses casos.
— Trabalhamos com parcerias não só na repressão aos crimes, mas na prevenção. Contamos com a perícia e prefeituras, mas também com entidades de proteção animal e a comunidade em geral que nos auxiliam, inclusive, em informações para nossos inquéritos — descreve Nadine.
Antes mesmo da nova lei dos maus-tratos aos animais, a Polícia Civil, por meio da 2ª Delegacia Regional Metropolitana, já havia criado a Operação Arcas. Segundo o diretor, delegado Mario Souza, é utilizada a logística, a inteligência e a estrutura em uso durante outras ações para realizar um trabalho diferenciado no combate aos maus-tratos aos animais.
A primeira ação foi em 31 de janeiro de 2019, quando 21 cães e 27 pássaros foram restados em Canoas. Além disso, foi a regional que instaurou inquérito e investigou o comerciante que matou a cadela Belinha, em Sapucaia do Sul.
— Atuamos em seis cidades da região com 43 operações, além das ações rotineiras que resultaram em 458 animais resgatados — diz Mario Souza.