No final da madrugada de 13 de junho, uma discussão resultou na morte de quatro pessoas da mesma família em Porto Alegre. O policial militar Andersen Zanuni Moreira dos Santos, 25 anos, saiu de uma festa em Alvorada, na Região Metropolitana, e diz ter ido a procura a ex-namorada por volta das 5h. Não a encontrou em casa e partiu para o endereço de uma amiga dela.
Ao chegar em uma via do Morro Santana, a festa de aniversário da família Lucena chamou sua atenção. Supondo, segundo conta, que a ex pudesse estar lá, entrou na casa sem se apresentar e dizer quem procurava. Logo começou um desentendimento que fez Andersen sair da residência e correr.
Foi seguido foi seis integrantes da família, que o acharam, escondido, dentro do banheiro de uma pizzaria delivery a 180 metros da residência. Ali, o policial matou os irmãos Christian e Cristiano Lucena Terra, o sobrinho deles, Alexsander, e o primo Alisson Corrêa Silva. As vítimas não tinham antecedentes e estavam desarmadas.
O episódio foi analisado sob perspectivas diferentes pela Polícia Civil – que entende que as mortes aconteceram por legítima defesa – e pelo Ministério Público – que não só denunciou o soldado por quatro homicídios qualificados, invasão de domicílio e agressão como pediu a sua prisão.
Com acesso ao inquérito policial e à denúncia do MP, GZH expõe nesta reportagem as principais divergências de interpretação sobre o caso. A juíza Lourdes Helena Pacheco da Silva, da 2ª Vara do Júri de Porto Alegre, concordou com o MP, aceitou a denúncia e mandou prender Andersen, que desde quarta-feira (18) está recolhido no Batalhão de Polícia de Guarda (BPG) da BM.
O entendimento da Polícia Civil
Após as mortes, o soldado se apresentou na delegacia, entregou a arma e alegou legítima defesa. A 5º Delegacia de Homicídios analisou o caso ao longo de 18 dias e entendeu que soldado não deveria ser responsabilizado pois buscou evitar o confronto. O inquérito detalha o passo a passo da ação e também se debruça sobre o espaço físico do banheiro onde aconteceram as mortes – 1,20m por 1,43m – e a impossibilidade de fuga do PM daquele cômodo.
"O local se tornou uma armadilha para si, visto que não tinha condições de fuga e, consequentemente, de evitar confronto com as vítimas. O policial tenta argumentar com as outras partes e em momento algum efetuou disparo sem que antes tentasse dialogar e evitar que fosse agredido e subjugado, e muito provavelmente linchado", consta no inquérito.
O que se vê pelas imagens é o grupo de homens não recuando, mas sim avançando em direção ao policial, que torna a atirar contra as vítimas a fim de salvaguardar sua própria vida, culminando com a neutralização da ameaça.
GABRIEL LOURENÇO
Delegado titular da 5ª DHPP
Na investigação policial, o soldado é descrito como "visivelmente acuado, em desvantagem numérica dentro do banheiro, sendo que as vítimas insistiam na perseguição e tentaram tirá-lo a força de lá. Não conseguindo isso, os quatro homens entraram no banheiro e começaram a lutar com o policial".
No relatório final, o delegado Gabriel Lourenço afirma que o grupo não recuou com o primeiro disparo, diferentemente das duas mulheres, que se afastam. "O que se vê pelas imagens é o grupo de homens não recuando, mas sim avançando em direção ao policial, que torna a atirar contra as vítimas a fim de salvaguardar sua própria vida, culminando com a neutralização da ameaça", escreve Lourenço.
Entende que devido ao pequeno espaço do banheiro, não havia outra alternativa ao soldado, se não, atirar: "esta passou a ser a única escolha que poderia ser tomada pelo agente para sobreviver".
O entendimento do Ministério Público
Ao chegar nas mãos do Ministério Público, a análise do caso ganhou outros contornos. Na denúncia, o promotor de Justiça André Gonçalves Martinez descreve que Andersen entrou "abruptamente" na casa da família Lucena, desferiu "tapas fortes nas costas" de uma das mulheres, filha de Cristiano Lucena Terra. "Em seguida, com estado de ânimo bastante alterado", pediu, "agressivamente, para que baixassem o som, alegando que estaria atrapalhando o sono de sua suposta esposa e filho".
A atitude gerou surpresa na família, que não o conhecia. Perguntaram quem ele era e o motivo daquele comportamento, "tendo o denunciado alegado que morava na mesma rua, em casa acima de numeração 375, afastando-se do local".
Além de não caracterizada injusta agressão de parte dos ofendidos, se tem por absolutamente desnecessária e imoderada a violência que ele empregou a fim de suprimir às suas vidas.
ANDRÉ GONÇALVES MARTINEZ
Promotor
O promotor afirma que, diante do impacto e da indignação da família com o comportamento do soldado, saíram atrás dele para verificar quem era, depois de não terem encontrado na rua o número que Andersen havia indicado. Escreve que, "perplexos e buscando entender" a motivação do que aconteceu, foram atrás do soldado.
No entendimento do MP, é "absolutamente inaceitável o comportamento" do PM, que irrompeu "na casa onde as vítimas estavam, por tão somente supor que ali residiria uma amiga de sua namorada em cuja companhia ela poderia estar" e ainda agredir uma das mulheres – fato negado por Andersen – sob falsa alegação de ser vizinho. Também classificou o ato do soldado como "invasivo, desrespeitoso e agressivo" e de absoluta "provocação às vítimas".
A discussão teve sequência na pizzaria, onde Andersen tentou se esconder. Para o MP, "sem ter desferido sequer um tiro de aviso, de forma desnecessária e imoderada, passou a alvejar" Alexander, o primeiro a ser atingido. A denúncia aponta que, quando Christian tentou socorrê-lo, levou um tiro na cabeça. A atitude de contenção de Christian está clara nas imagens do delivery, aponta o promotor.
Cristiano e Alisson foram atingidos em sequência, também na cabeça. O promotor classificou de "desnecessária e imoderada a violência" usada por Andersen e "incompatível" com a função de um policial militar, que fez "emprego letal indevido de treinamento e arma recebidos da corporação da Brigada Militar".
Juíza pede produção de mais provas
Ao receber a denúncia, a juíza Lourdes Helena concordou com os argumentos do promotor. A magistrada argumenta que seria prematuro utilizar a excludente de ilicitude neste momento. Poderia ser adotada se fosse " incontroversa", o que "não é esse o caso deste feito". No entendimento da juíza, o depoimento das duas mulheres que presenciaram as mortes e a perícia no corpo de Alexander – que apontam tiro na face e na palma da mão, o que indica atitude de defesa –, põem em dúvida a tese de legítima defesa.
A magistrada propõe a que a versão do soldado deve ser melhor analisada com produção de prova judicializada, ampliando a discussão dos seus requisitos para além do apontado no inquérito policial.
Na quarta-feira, após decisão judicial, foi o próprio delegado Lourenço que cumpriu mandado de prisão contra Andersen. Procurado por GZH nesta quinta-feira (19), disse que seu entendimento sobre o caso segue o mesmo:
— Nossa convicção é o que está no inquérito. Não há o que ser retificado. Permanece essa linha de entendimento em que pese destoe do Ministério Público e do Judiciário.
Procurado, o promotor André Gonçalves Martinez preferiu não se manifestar.
Os advogados Ismael Schmitt e Daniel Cavalcanti, assistentes da acusação representando as vítimas sobreviventes, avaliam que "o pericial foi um divisor de águas no deslinde da fase inquisitorial".
"Extrai-se do documento elaborado pelo Instituto-Geral de Perícias que as vítimas foram alvejadas com tiros na palma das mãos e, um deles, com disparo na parte posterior da cabeça, em um claro movimento defensivo. O confronto do laudo, com a narrativa das sobreviventes torna cristalino o massacre ocorrido. Também, e não menos importante, foi valorada a conduta pretérita ilibara das vítimas e os maus antecedentes do policial preso. Assim, descartando totalmente a legítima defesa", diz a nota.
O advogado de defesa, David Leal, enviou nota:
"A denúncia do Ministério Público é mais do que ingênua. É fantasiosa. Nunca se vê uma denúncia com 21 páginas. Normalmente, tem uma ou duas página e pronto. Agora, os promotores usaram de toda as suas capacidades criativas para inventar fatos e alegações e chegaram a dizer que os envolvidos, depois de irem de carro atrás de Andersen e cantarem pneu no beco próximo à pizzaria, adentraram no estabelecimento sem autorização do proprietário para apenas conversar com o Andersen. Quem àquela hora, sob efeito de álcool e ira, iria conversar com um policial armado? As imagens demonstram pelos gestos do corpo dos envolvidos que eles não queriam conversar. Ninguém é ingênuo a esse ponto de acreditar numa alegação dessas. Eles foram audaciosos e abusaram da sorte, de forma que vieram a óbito por insistirem no conflito. Foram advertidos por diversas vezes. Não existe em lugar nenhum nem é exigido que o policial dispare para cima antes de disparar contra outrem. Isso é outro argumento torpe, que não merece crédito. Se uma pessoa armada lhe diz para se afastar por diversas vezes porque ela pode atirar, apenas pessoas muito audaciosas insistiriam em avançar, que vêm a polícia como inimigo. Quero crer que a juíza não teve conhecimento de todos os fatos, pois foi absolutamente equivocada a decisão de decretar a prisão preventiva. Iremos juntar provas que demonstram o quão desnecessária foi a prisão. Mas as imagens já falam o suficiente. As 21 páginas de denúncia apenas demonstram que o papel aceita tudo. As imagens não. As imagens nem sequer foram encaminhadas para o IGP. E isso demonstra mais uma vez que não se está a atuar de modo escorreito. De qualquer maneira, o delegado do plantão e o delegado titular entenderam que era caso de legitima defesa. Qualquer interpretação diversa, é descabida".