A Polícia Civil pretende fechar até o final desta semana o inquérito que investiga a chacina provocada após uma discussão em uma pizzaria em Porto Alegre em 13 de junho, quando quatro homens da mesma família foram mortos por um policial militar. A principal linha de investigação da 5º Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Capital é a tese de legítima defesa. O delegado Gabriel Lourenço ainda verifica se o soldado de 25 anos cometeu excessos aos disparar contras as vítimas que estavam desarmadas.
Sete pessoas foram ouvidas, entre elas as duas mulheres que acompanhavam os homens na pizzaria, o soldado, dois funcionários da pizzaria, a ex-namorada e a amiga dela — que eram as duas pessoas que o PM disse procurar naquela madrugada, quando entrou na casa família Lucena durante um aniversário.
A polícia também pretende ouvir os dois amigos do soldado que estavam com ele em uma boate em Alvorada antes do deslocamento para o Morro Santana.
Os agentes aguardam o resultado dos laudos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) que irão apontar a localização dos tiros, que foram dados com pistola .40. A arma foi entregue à polícia pelo PM quando ele se apresentou na delegacia, no mesmo dia das mortes.
— Já temos uma noção de quantos disparos foram e onde podem ter pego. A questão do laudo vai nos permitir analisar de forma minuciosa onde foram os tiros. Mas não acredito que seja algo tão determinante a ponto de mudar o que as imagens mostram. Vamos avaliar se os disparos são compatíveis com a versão do policial — diz o delegado.
O momento dos disparos foi gravado por câmeras internas da pizzaria. O PM já estava escondido dentro do banheiro do delivery quando seis pessoas da família Lucena — quatro homens e duas mulheres — vão até o local para encontrá-lo. O policial alega que atirou para se defender, e a família argumenta que queria tirar satisfações pelo PM ter invadido sua casa minutos antes.
— Nada está definido até o final das investigações, estamos coletando todo tipo de informações. Estamos analisando também outras circunstâncias e iremos intimar ou não novas pessoas. Por enquanto, a tese de legítima defesa é a que mais se trabalha — afirma o delegado.
Ao ser concluído, o inquérito é enviado ao Judiciário e caberá ao Ministério Público se manifestar sobre o caso. O MP fará uma nova análise das quatro mortes e poderá oferecer ou não denúncia contra o soldado. O advogado da família, Ismael Schmitt, espera que a apuração tenha um reposicionamento quando o chegar ao Judiciário.
— O inquérito não tem o poder de modificar as coisas. O crime de homicídio precisa de indícios de autoria e materialidade e todos esses elementos estão postos. Apresentamos nossos argumentos e os depoimentos da família foram bem claros nesse sentido, que eles não foram para agredir o policial, não tentaram nada. Não desejaram aquilo e ele não deu um disparo de advertência. Para nós, a legítima defesa não é nem crível.
"Para ele retornar para rua, o caminho é longo", diz comandante-geral
Por enquanto, o PM está afastado do batalhão pelo setor de psiquiatria do Hospital da Brigada Militar. Caso receba aval para retornar, ficará em funções administrativas até a conclusão da investigação interna. Dentro da BM, o soldado está sendo submetido a um inquérito policial militar (IPM) aberto na data das quatro mortes.
A apuração é capitaneada por um oficial bacharel em Direito e utiliza as mesmas pericias do inquérito civil, mas faz coleta de provas e oitivas de forma separada. Na conclusão do IPM, que leva de 45 a 60 dias, o relatório poderá considerá-lo culpado e, neste caso, virar processo que tramitará na Justiça Militar, onde ele responderá pelo crime indicado na apuração.
Nesta hipótese, paralelamente à ação, é aberto um conselho de disciplina que discutirá a permanência ou não do soldado na tropa. Em caso de não indicação de crime na conduta do soldado pelo IPM, ele segue na corporação mas o retorno ao policiamento ostensivo ainda dependerá de aval do departamento psiquiátrico.
— Acredito que o stress psicológico ao qual ele foi submetido e está passando deve afetar muito suas condições de trabalho. Para ele retornar para rua, o caminho é longo. Nosso policial tem que ter plenas condições para poder trabalhar na rua. Não posso ter policial inseguro. Ele passou por uma situação de extrema gravidade e fazer o uso da arma afeta indiretamente o psicológico de cada um, mesmo a pessoa achando que não ficou afetada — afirma o comandante-geral da BM, coronel Vanius Santarosa.
O soldado, integrante do 20º Batalhão de Polícia Militar (BPM), com atuação em parte das zonas norte e leste da Capital, ingressou na corporação em 2018 e foi submetido a 10 meses de treinamento.
Contraponto:
David Leal, que está à frente da defesa do soldado, se manifestou por nota:
"Todos lamentamos a morte dos quatro indivíduos. Porém, hoje tudo está mais bem esclarecido. Sabemos o que aconteceu antes e durante a perseguição contra o policial. Desde o início, sabemos o que aconteceu no interior da pizzaria e as imagens reforçam o fato de que o PM utilizou de todos os meios possíveis para evitar a injusta agressão que ele estava prestes a sofrer. O policial foi encurralado em um banheiro de uma pizzaria. É incontestável. Ninguém estava lá para chamar o PM para conversar ou lhe dar um abraço após sermões. Os envolvidos chegaram a disputar quem pegaria primeiro o PM. O militar estava sozinho, e os demais, em maior número. É óbvio que a única defesa que o PM tinha à disposição era o seu próprio armamento. Ele inclusive tentou fugir, dialogar, correr, se esconder, avisar que era PM, sacar a arma, empurrar para se afastarem etc. Qualquer um no lugar do PM faria o mesmo no momento em que ele ficou encurralado e os quatro se projetaram contra ele. O desfecho foi insistentemente perquirido pelo grupo, que, talvez por um grande descuido, por motivos que levam ao vazio de sentido, e pela infelicidade de acharem que um policial encurralado não fosse atirar, acabaram perdendo suas vidas naquela noite. Basta ver que, cessado o perigo, ele deixou de disparar. Eles quis ainda verificar a frequência (cardíaca) dos homens caídos. O que ele fez, concluímos com segurança e tranquilidade, está justificado, configurando-se a hipótese que dispõe sobre a legítima defesa. Portanto, o policial não praticou nenhum crime".