A Polícia Civil desencadeou, na manhã desta segunda-feira (14), uma operação contra a venda irregular de licenças para que ônibus antigos possam trafegar, mesmo estando fora dos prazos e das condições estabelecidas por lei. São quatro mandados de prisão temporária e seis de busca e apreensão autorizados pela Justiça, todos cumpridos em Porto Alegre.
Entre os quatro presos estão um funcionário graduado do Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (Daer) e um ex-funcionário de seguradora, que intermediava a remessa de propina dos proprietários de veículos velhos a servidores públicos encarregados de fiscalizar as frotas usadas para fretamento e turismo.
A investigação é conduzida pelo delegado Max Otto Ritter, da 1ª Delegacia de Polícia de Combate à Corrupção. Tudo começou com denúncias encaminhadas por funcionários de seguradoras que trabalham com registro e recursos de veículos e com a regularização deles junto aos órgãos competentes, como o já citado Daer.
Uma seguradora descobriu que o corretor de seguros fazia acesso indevido aos sistemas do Daer e cadastrava veículos que, por lei, não poderiam prestar o serviço de transportes e turismo — eram ônibus fabricados há mais de 20 anos, em desacordo com o que prevê a legislação vigente. A descoberta aconteceu porque clientes ligaram, procurando por essa facilidade ilegal e mencionando o nome do securitário.
Ouvidos, esses donos de veículos disseram que o securitário conseguia registros provisórios para veículos antigos mediante contatos dentro do Daer. Ele também providenciaria renovação dessas licenças. A facilitação era feita por um parente do securitário, um servidor com cargo de relevo no departamento estadual.
A Polícia Civil não divulga os nomes deles, mas a reportagem apurou, nos locais onde aconteceram as prisões, que o corretor de seguros preso é Anderson de Paula Ferreira. Já o funcionário do Daer é Gilberto Mattos da Silva, na época dos fatos superintendente adjunto de Fretamento e Turismo, setor que fiscaliza os ônibus usados em excursões. Era também do Conselho de Tráfego da autarquia. Ele agora está na Diretoria de Administração e Finanças, no setor de patrimônio da estatal.
Os dois têm residências em Porto Alegre. Anderson foi preso no apartamento dele, e Gilberto estava em Montenegro e foi preso ao se apresentar na sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), na Capital.
A Polícia Civil rastreou documentos de consulta da situação dos veículos com mais de 20 anos de uso — o que é vedado para este tipo de transporte — e que teriam sido ilegalmente liberados pelo Daer. Esses registros foram inseridos nos sistemas de informação do departamento, de modo irregular, por meio da matrícula de um servidor do órgão estatal de transportes, que teria agido em combinação com o corretor investigado. Isso comprovou as desconfianças.
— Existe uma remota possibilidade de conseguir registro provisório, mas mediante liminar judicial. Mas em nenhum dos casos checados, no site do Tribunal de Justiça, aparece decisão desse tipo, o que nos leva a concluir que houve acesso indevido ao sistema do Daer e pagamentos de vantagens indevidas por tais serviços — descreve o delegado Ritter.
Uma segunda testemunha ouvida pela Polícia Civil citou pagamentos ao corretor para agilizar questões administrativas, sendo que o mesmo disse que seria para "quitar valores em aberto". Só que no sistema do Daer os valores nunca foram quitados. Seria uma cobrança por algo não feito.
Liminar garantida "graças a contatos no Daer"
Um proprietário de empresa de viagens e transporte, ouvido pelos policiais, informou que o corretor de seguros garantiu que conseguiria a inclusão de registro liminar junto ao Daer, "porque teria um conhecido" dentro do órgão estatal. Essa autorização seria necessária porque o veículo tinha mais de 20 anos e, pela legislação estadual, não poderia mais ser utilizado para as atividades de turismo.
Esse empresário disse que diversas outras empresas do ramo se valeram dos serviços do mesmo corretor, sem que houvesse qualquer processo para que fosse concedida a tal "liminar". Ele alegou que sequer sabia como o securitário faria a liberação do veículo, mas que foi dito que o intermediário tinha conhecidos dentro da Daer, que fariam isso, mesmo indo contra a legislação. Inclusive, a liminar seria "garantida", porque o intermediário teria pessoas dentro do órgão público associadas a ele.
O empresário confessou que aceitou a proposta e pagou pelos serviços. Com isso, a liminar foi colocada no sistema, e o veículo foi liberado. Conforme esse dono de ônibus, o intermediário (corretor de seguros) disse que conseguiria, por força de sua influência interna no Daer, falar com pessoas que liberariam de um dia para o outro, mas que essas cobrariam pela aceleração dos registros. O proprietário da transportadora de passageiros concordou e, após o pagamento ao intermediário, a liminar foi imediatamente registrada no sistema do Daer, informou ele.
A Polícia Civil investiga esses registros indevidos de liminares no sistema do Daer, em relação a licenciamentos de ônibus de turismo com mais de 20 anos de fabricação, além de baixas em multas. Todas essas inclusões não seriam possíveis sem a utilização de liminar judicial, que não ocorreram nos casos investigados, ou mesmo sem processos administrativos internos.
Precarização que leva a acidentes
O delegado Max e seus colegas da 1ª Delegacia de Polícia de Combate à Corrupção ainda não têm ideia de quantos veículos foram liberados pelo grupo alvo da operação desta segunda-feira. Nem quantas licenças ilegais foram expedidas pelo Daer. Mas já têm uma suspeita: alguns desses veículos se envolveram em acidentes.
Um caso suspeito aconteceu na Argentina, em 2016, e envolve ônibus fretado no Vale do Sinos. O veículo, que levava 50 brasileiros em viagem de excursão a Buenos Aires, tombou numa estrada. Um homem e uma mulher morreram.
Um corretor que na época conseguiu liberação do veículo acidentado, Edemilson Ferreira da Silva, também é alvo da investigação desencadeada agora. A Polícia Civil, a partir de licenças vistoriadas, vai tentar verificar se os veículos beneficiados se envolveram em acidentes e se a antiguidade dos ônibus pode ter contribuído para os desastres.
O próprio Gilberto Mattos da Silva, o servidor do Daer preso nesta operação, divulga em suas redes sociais um balanço que dá dimensão do que representa o setor de fretamento de ônibus: conforme ele, foram expedidas pela autarquia 17 mil licenças para veículos de excursão e turismo em 2019. Elas beneficiaram 2,3 mil empresas, que realizaram, ao todo, 194 mil viagens.
Os números de 2020, ano de pandemia, ainda não foram contabilizados.
CONTRAPONTOS
O que diz o defensor de Gilberto Mattos da Silva:
Tiago Horbach de Oliveira, advogado de Gilberto, diz que seu cliente se resguarda a falar apenas no processo. Ao saber da investigação em curso, ele se apresentou espontaneamente à Polícia. A defesa vai tentar a libertação dele e declara que não existe nenhuma comprovação de envolvimento de Gilberto nos fatos imputados.
GZH tentou ouvir os outros suspeitos no momento em que eram presos, mas eles não falaram.