O projeto de lei que pretende remover alguns controles que governadores de Estado têm sobre suas forças policiais também está relacionado a atribuições da Polícia Federal (PF), no que diz respeito à fiscalização e regulação de empresas particulares de segurança privada. A avaliação é de representantes e entidades do Ministério Público e do órgão ouvidos pela reportagem.
O texto em discussão prevê que caberá às polícias militares (PM) "credenciar e fiscalizar as empresas de segurança privada, os serviços de guarda de quarteirão ou similares, e as escolas de formação, ressalvada a competência da União e atendido os termos da legislação específica do ente federativo".
Atualmente, essa atribuição é da PF, que possui um departamento para administrar o assunto. É de responsabilidade exclusiva da corporação:
- credenciar e habilitar instrutores para escolas de formação de vigilantes; emitir a carteira nacional de vigilante;
- emitir autorizações para a aquisição e o transporte de armas de fogo, armas não letais e munições;
- vistoriar os veículos especiais de transporte de valores e autorizar o seu uso pelas empresas de vigilância;
- autorizar a aquisição de coletes balísticos;
- emitir o certificado de regularidade de empresas de segurança privada.
De acordo com a subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, titular da Câmara Criminal da Procuradoria Geral da República (PGR) e de ofício criminal junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), passar essas atribuições às PMs pode gerar problemas de conflitos de interesse, dado o alto número de policiais militares que são sócios em empresas privadas de segurança.
E se o PM tiver participação societária nessas empresas?
A questão pode ter impacto significativo. Conforme dados da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores (Fenavist), havia, em junho do ano passado, 4.618 empresas do ramo atuando no Brasil. Elas empregavam mais de 500 mil vigilantes com vínculos ativos, metade deles no Sudeste.
Cerca de um milhão de profissionais capacitados pelos cursos de formação e regularizados na Polícia Federal estão aptos a trabalhar. O setor alcançou R$ 36,9 bilhões de receita bruta em 2019, de acordo com a consultoria econômica da Fenavist.
— Há muito tempo que as PMs querem atuar nessa área — disse o vice-presidente da Associação dos Delegados da PF, Luciano Leiro.
Ele afirmou que, no Rio Grande do Sul, parte dessas funções já é desempenhada pela Brigada Militar, o que tende a ser alvo de ação judicial.
— Já há essa fiscalização por parte da PF, para que criar uma nova estrutura de fiscalização para isso? É um desperdício de dinheiro público.
Contra
Diretor jurídico da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Flávio Werneck concordou. Ele disse que, se preciso, a Fenapef vai se posicionar contra o projeto no Congresso.
— Nesse ponto, somos terminantemente contra (o que prevê o projeto). Temos uma influência muito grande de policiais militares na segurança privada, o que pode acarretar problemas futuros nas fiscalizações.
— Essa missão de fiscalizar empresas de segurança é muito bem executada pela PF. Esse é um ponto preocupante do projeto — afirmou o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio George Cruz da Nóbrega.
A possibilidade de policiais serem sócios de empresas da área é permitida pela legislação da maioria dos Estados. Em São Paulo, por exemplo, apesar de a Lei Orgânica da Polícia do Estado proibir que os policiais exerçam qualquer outro emprego ou função "mesmo nas horas de folga", o estatuto do funcionalismo público estadual cria a brecha para que o servidor seja "acionista, quotista ou comanditário" de sociedades comerciais.
Para o ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, embora seja necessário e urgente regulamentar as polícias estaduais, já que as regras em vigor são de 1969, o projeto em discussão é inconstitucional porque fere o pacto federativo.
— Do jeito que está não passa no Congresso e, se porventura viesse a passar, seria declarado inconstitucional pelo STF. Seu objetivo político é claro: atender e manter a mobilização das suas bases nas corporações policiais — afirmou o ex-ministro.
Jungmann alertou ainda para o fato de que, ao conceder funções demais às PMs, o texto poderia produzir o resultado de retirar os efetivos das ruas e das suas funções privativas de prover a segurança à população.