De Santa Maria, na Região Central, onde residia, Melani Aguiar, 20 anos, partiu no fim de agosto em direção a Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo. Deixou o cãozinho Benhur, de quem se dizia mãe, aos cuidados dos tios. Disse aos familiares que regressaria poucos dias depois, mas não pode cumprir a promessa.
Em 27 de agosto, foi hospitalizada após passar mal durante aplicação de silicone industrial no corpo e não resistiu. A investigação da morte da transexual levou a Polícia Civil a descortinar um mercado clandestino no qual os procedimentos estéticos são realizados com produtos proibidos, baixo custo e risco à saúde.
Desde o início, a investigação tratou a morte de Melani como um homicídio. Mas a polícia sabia apenas que a vítima tinha se submetido à aplicação de silicone industrial — de uso proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no corpo humano por conta dos riscos — e que as complicações tinham a levado à morte. Este produto, usado, por exemplo, na área mecânica e em construções, quando aplicado no corpo pode causar lesões e até o óbito. Foi o que aconteceu com a jovem.
— A Melani teve uma síndrome séptica, que é a disfunção de múltiplos órgãos. O silicone, como é líquido, acabou se espalhando por todo o corpo dela — explica a delegada Ana Luísa Aita Pippi, da 1ª Delegacia de Santa Cruz do Sul.
Era necessário descobrir onde havia sido realizado o procedimento e quem era o responsável. Por meio do conteúdo armazenado no celular da vítima, os investigadores começaram a elucidar o que havia acontecido.
Uma das pistas foi o contato de outra transexual de Caxias do Sul, na Serra, salvo no WhatsApp. Ela é conhecida por ser uma "bombadeira", como é chamado quem faz a aplicação de silicone industrial em procedimentos estéticos irregulares. Havia conversas recentes apagadas.
No telefone de Melani, os agentes encontraram ainda uma imagem do silicone industrial adquirido pela internet e entregue em Caxias do Sul. Era a confirmação de que havia ligação entre elas. A dúvida era se a aplicação tinha sido realizada na Serra ou no Vale do Rio Pardo. Com mandado de busca, os policiais seguiram para a casa da investigada de Caxias. Lá, encontraram seringas e agulhas usadas para aplicação.
Em depoimento, a investigada — que não teve o nome divulgado — admitiu ter realizado o procedimento. Sem qualquer formação técnica na área, confirmou que há cerca de quatro anos faz a aplicação desse tipo de produto em diferentes locais do Estado — ela não possuía indiciamento anterior pela prática.
No mês de agosto, teria viajado a Santa Cruz do Sul para fazer a aplicação em outra pessoa. Foi quando ela e Melani se encontraram e combinaram que a aplicação aconteceria dias depois. A jovem já havia feito uma aplicação anterior com a mesma mulher, segundo a polícia, e queria fazer uma nova nos glúteos.
O valor acertado entre as duas foi de R$ 2 mil — em geral, o pagamento é de R$ 3 mil, mas como se tratava de uma segunda aplicação o montante foi mais baixo. Melani pagou pelo procedimento, realizado no quarto de uma casa onde ela costumava se hospedar em Santa Cruz do Sul. No celular da vítima, os policiais ainda encontraram fotografias tiradas durante a aplicação, por volta de 20h30min do dia 27 de agosto. No celular da investigada, a polícia encontrou fotografias da aplicação realizada em Melani.
Para injetar na jovem foram adquiridos cinco litros de silicone industrial. A polícia descobriu inclusive que o produto era de qualidade inferior.
A bombadeira fez uma reclamação na internet ao vendedor porque achou o silicone muito fino. Queria devolver o produto, mas desistiu e resolveu aplicar do mesmo jeito. Durante o procedimento, Melani começou a passar mal. Ela não terminou a aplicação, que deveria durar seis horas. Quando viu que a jovem estava passando mal, a bombadeira foi embora. A vítima começou a se debater de dor e a vomitar.
— Essas bombadeiras são pessoas não habilitadas, que exercem ilegalmente a medicina, com fins lucrativos. Usam locais inapropriados, fora de hospital ou clínica. Infelizmente é uma prática bem comum por conta do baixo custo e da busca pelo corpo perfeito. Quem procura muitas vezes não tem conhecimento do risco — explica a delegada Ana.
A proprietária da residência foi quem chamou o socorro e informou a família da vítima. Quando ouvida pela polícia, ela disse que sabia do procedimento, mas que não teve envolvimento na negociação e que não concordava com a aplicação. Melani foi hospitalizada e permaneceu internada até o dia 31 de agosto, quando faleceu.
Indiciamento
A responsável pela aplicação foi indiciada por homicídio doloso, com o chamado dolo eventual, quando, embora não se tenha a intenção de causar a morte, assume-se o risco de matar, e por exercício ilegal da medicina. Como se trata de ré primária e confessou o crime, a polícia não solicitou sua prisão.
A delegada alerta ainda que, embora nem sempre o resultado seja a morte, o produto pode causar lesões e reações, como dores permanentes. Outras três transexuais ouvidas pela investigação relataram sequelas.
— Uma batida no corpo pode fazer com que o silicone se espalhe. Algumas não conseguem nem sentar direito. A vida muda completamente. Fica o alerta para que realmente não arrisquem a vida com isso. Se quiserem investir, invistam numa coisa séria, feita por médico dentro de hospital ou clínica. A vida vai como foi a da Melani. Uma jovem, com toda a vida pela frente — afirma.
"Só falava em terminar os estudos", diz tia
A última vez que Cleonice Escobar Aguiar, 33 anos, viu a sobrinha foi antes de ela viajar para Santa Cruz do Sul. Dias depois, a família recebeu por telefone a informação de que ela estava hospitalizada, em estado grave.
— Quando chegamos lá ela estava sedada. Não conseguimos nem falar com ela. Foi a pior coisa que aconteceu na vida de gente. Ela tinha tantos planos, sonhos. Era tão jovem. Queria viajar, ter uma formação, uma profissão. Só falava em terminar os estudos, para ter uma oportunidade. Ela era maravilhosa, corajosa — descreve a tia.
Além dos tios e pais, Melani deixa também os quatro irmãos e avós, com quem chegou a morar. Cleonice conta que a família está inconformada. Ela acredita que a sobrinha não tinha noção dos riscos da aplicação do produto.
— Não sabíamos de nada. É um crime horrível. Tirou a vida de uma menina de 20 anos. Queremos justiça. Que essa pessoa não faça isso com mais ninguém. Que nenhum familiar venha a ter o mesmo sofrimento que nós estamos tendo — desabafa.
Entenda
O produto
A Anvisa proíbe o uso de silicone industrial em procedimentos estéticos. O produto tem como finalidade a limpeza de carros e peças de avião, impermeabilização de azulejos, vedação de vidros, entre outras utilidades, e não deve ser utilizado no corpo. O produto não é esterilizado e nem preparado para o uso humano.
Os riscos
Quando aplicado no corpo, pode causar lesões gravíssimas na vítima, e até a morte. Algumas lesões podem não acontecer na hora, mas anos depois. Esses procedimentos, em geral, são realizados sem nenhuma higiene ou exame prévio. O produto é injetado diretamente no corpo com agulhas e seringas.
É crime
A Anvisa alerta que a aplicação ilegal do silicone industrial no corpo humano é considerada crime contra a saúde pública previsto no Código Penal — exercício ilegal da medicina, curandeirismo e lesão corporal.
E se já aplicou?
A orientação para quem aplicou silicone industrial no próprio corpo é procurar um médico, mesmo que ainda não tenha sentido qualquer sintoma. Somente um especialista poderá avaliar a gravidade de cada caso.
Denúncia
Caso suspeite do uso de produtos utilizados de maneira incorreta, é possível entrar em contato com a Anvisa por meio da Ouvidoria (www.gov.br/anvisa/pt-br). Também é possível denunciar os casos diretamente à Polícia Civil (181 – Disque-Denúncia)
Fonte: Anvisa e Polícia Civil do RS