Há dois meses, uma moradora da Região Metropolitana, mãe de três filhos, só dorme com uso de medicamentos. Ainda assim, acorda com qualquer barulho. Teme andar na rua e, quando consegue sair, por vezes acredita enxergar o rosto do estuprador que transformou sua vida em pesadelo. Em 5 de julho, a manicure foi atacada pelo criminoso no limite dos bairros Moinhos de Vento e Bela Vista, em Porto Alegre, a caminho da casa de uma cliente.
Naquela tarde de domingo, ela saiu da residência onde vive com a família e embarcou em um ônibus em direção à Capital. Durante a pandemia do coronavírus, o salão onde ela trabalha foi fechado e, por isso, só foram mantidos os atendimentos na casa das clientes. Quando desceu do coletivo, na Avenida Protásio Alves, percebeu que estava adiantada — havia agendado o atendimento para 14h. Como não gosta de chegar fora do horário marcado, decidiu ir caminhando, mesmo com chuva.
Em uma mão, levava o guarda-chuva e, na outra, a maleta com os itens do trabalho. Aproximava-se da casa da cliente, na Rua Dona Laura, quando foi abordada por um homem. Ele disse que precisava de uma informação. Questionou como ele podia chegar em uma faculdade, próxima dali. Quando ela se virou para apontar o local, ele encostou uma faca em seu pescoço e anunciou o assalto.
O criminoso usou o guarda-chuva que carregava para impedir que alguém percebesse que a ameaçava. Os dois seguiram caminhando, em direção à esquina com a Rua Coronel Bordini, onde a manicure viveria momentos de terror.
— Falei: "pega meu celular, o dinheiro e se quiser levar a maleta tem bastante coisa de material". Ele falou: "não, eu não quero só isso". Comecei a chorar e perguntei por que ele estava fazendo isso. Ele apertou a faca no meu pescoço e disse que ia me matar se eu não parasse quieta. Perguntei: "você não precisa trabalhar?". Ele falou: "sim, estou trabalhando, esse é meu trabalho" — recorda.
No pátio de uma casa desocupada, a cerca de 200 metros dali, a mulher foi violentada sexualmente pelo criminoso e agredida. Por diversas vezes, acreditou que não sairia viva e suplicou para que ele não lhe matasse. Sem conseguir convencê-lo, decidiu brigar pela vida e tentou desarmá-lo. Recebeu chutes e socos, que marcaram seu corpo. Por fim, o estuprador desistiu, e fugiu levando seus pertences. Antes de deixar o local, arremessou sobre a vítima uma nota de R$ 10 — retirada da carteira dela — para o transporte de volta para casa.
Em pânico, na rua, com medo de que o criminoso voltasse, pediu a um motorista e uma mulher que se exercitava para chamarem a polícia. Desconfiados, os dois só indicaram um posto de combustíveis próximo. Foi ali que a mulher recebeu apoio das atendentes, que chamaram o socorro médico, a polícia e informaram a família dela. A manicure passou por exames e recebeu medicações para prevenção de doenças.
Dois meses depois, para ela o pesadelo ainda não acabou. Tenta lidar com a dor, a revolta e a culpa. Como mãe, sente-se responsável por demonstrar fragilidade em frente aos três filhos e por não conseguir trabalhar normalmente, como fazia antes. É ela quem sustenta a família. Desaba em prantos todas as vezes em que fala neles, especialmente por temer que as duas filhas possam passar por algo parecido. Por isso, buscou tratamento psicológico, inclusive para a família. Acredita que só a prisão do agressor poderá lhe trazer de volta alguma tranquilidade.
— Minha família psicologicamente está destruída. Estou destruída. Não durmo, esperando que o telefone toque, com a polícia dizendo que ele foi preso. Não quero ser só mais uma. Não quero que isso aconteça com uma filha minha ou de outra pessoa — desabafa.
A investigação
A delegada Tatiana Bastos, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) da Capital, confirma que um suspeito foi identificado a partir de imagens de câmeras de segurança e reconhecimento de testemunhas. A polícia fez buscas pelo foragido, mas ele não foi localizado.
— É uma pessoa com histórico por esse tipo de crime, esse modo de ação, de cometer roubo e estupro. Temos concentrado esforços para localizá-lo — disse a delegada.
O nome suspeito é mantido em sigilo pela polícia, mas GZH apurou que se trata de Carlos Alexandre da Silva, 45 anos, com histórico de condenações por assaltos e estupros. Em março deste ano, ele recebeu o direito à prisão domiciliar humanitária, devido à pandemia do coronavírus. Deveria ter tido a tornozeleira eletrônica instalada, mas isso não chegou a acontecer. Desde maio, não é mais localizado pelos órgãos policiais.
O celular da vítima foi recuperado no mesmo dia do crime e encaminhado para análise. Conforme a delegada, a polícia aguarda o recebimento de perícia para concluir o inquérito. O suspeito deverá ser indiciado pelos crimes de roubo e estupro, além do sequestro, já que a vítima foi obrigada a seguir com ele até a casa onde foi violentada.
ENTREVISTA
A senhora pensou que ia morrer?
Pensei várias vezes. A todo momento dizia: "o senhor não precisa disso. Não faz isso. Toma minhas coisas". Ele deixou eu ver o rosto dele, e estava dizendo que ia me matar. Jogou meus pertences para o pátio (da casa). Começou a empurrar, dar socos. Tentei tirar a faca dele, comecei a gritar.
Queria tanto a minha vida de volta. Sinto que vou ter um pouco disso quando ele estiver preso. Agora, com ele solto, tenho pesadelo. Enxergo ele a todo momento, quando saio para a rua.
VÍTIMA
39 anos
Mesmo durante o dia, ninguém percebeu o que estava acontecendo?
Estava chovendo muito, ninguém escutou. Ele falou: "tu tem (sic) duas opções, ou cala a boca ou eu vou te matar". Ele pediu para eu me despir, eu disse que não, que estava frio. Começou a me xingar, dar pontapés e socos. Foi quando ele conseguiu consumar o ato. "Vou morrer aqui e ninguém vai me encontrar", pensava. Pedia por Deus. É uma casa linda, mas um pátio abandonado. Pensava nas minhas filhas. Falei para ele: "não me mata". Ele me mandou virar de costas, tirou a máscara da minha boca e quis colocar nos meus olhos.
E como conseguiu escapar com vida?
Comecei a empurrar ele. Virei, olhei para o rosto dele e disse: "não vou morrer, não quero morrer". Ele me mandou virar o rosto. Eu disse: "não vou". Até que ele falou: "é teu dia de sorte, vou levar só tuas coisas, mas se tu abrir (sic) a boca, vai morrer". Aí me xingou, deu um pontapé, pegou meu celular, cartão, dinheiro e meu casaco. Puxou R$ 10,00, amassou, tocou em mim e disse: "oh, para ti ir embora". Fiquei olhando para ele, chorando. Ele disse: "fica aí, se tentar fugir, vou te matar".
E depois, o que aconteceu?
Fiquei de costas para ele, no chão. Ele colocou meu casaco e saiu. Quando fui levantar, ele voltou e disse: "o que tu tá (sic) fazendo?". Eu falei para ele: "nada, nada, vou sentar aqui". Voltei e sentei no chão. Quando ele saiu, fiquei um tempo ali, não conseguia levantar, meio tonta. Então fiz a volta gritando e batendo nas paredes da casa. Pensei que poderia ter alguém, tinha luz acesa. Mas não tinha. Comecei a gritar na rua. A impressão que tinha é de que ele ia vir atrás de mim. Fui em direção ao posto e entrei num café. Ali tive toda a assistência.
O que mudou na sua rotina?
Tenho pesadelo. Tomo remédio para dormir, remédio para passar o dia. Não consigo me alimentar ainda como antes. Tenho crise de pânico. Ele tirou uma parte de mim quando fez isso comigo. Tirou toda a estabilidade emocional que eu tinha. Tenho medo de tudo. Qualquer barulho. Tudo o que quero é que ele seja preso. Eu me sinto presa hoje.
O que espera agora?
Queria tanto a minha vida de volta. Sinto que vou ter um pouco disso quando ele estiver preso. Agora, com ele solto, tenho pesadelo. Enxergo ele a todo momento, quando saio para a rua. Sei que a polícia está fazendo o trabalho dela. Mas, neste momento, estou me sentindo abandonada.
Contrapontos
Judiciário
Conforme o juiz Paulo Augusto Oliveira Irion, a decisão de conceder prisão domiciliar humanitária foi tomada tendo por base a resolução nº. 62 do Conselho Nacional de Justiça, estando o apenado no grupo de risco em relação à covid-19, de acordo com a informação da própria unidade prisional onde se encontrava recolhido.
Secretaria da Administração Penitenciária
A Seapen informou que naquele momento ainda não havia condições sanitárias para instalação da tornozeleira. Segundo a secretaria, os protocolos de segurança estavam sendo ajustados. Por isso, foi estabelecido prazo de 30 dias para que o preso retornasse e instalasse o equipamento.
Onde vítimas podem procurar ajuda
- Brigada Militar - Atende chamados de emergência pelo 190
- Polícia Civil - No Estado, há 23 unidades especializadas em atendimento de mulheres vítimas de violência. Em Porto Alegre, a Deam está localizada na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172. Também é possível procurar a delegacia mais próxima. A Polícia Civil atende no 197 (plantão de emergências) ou no 181 (Disque Denúncia).