Como havia prometido durante a campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro vem flexibilizando o acesso às armas para a população. E isto é considerado principal fator para o aumento da procura por legalizar arsenais no Brasil, especialmente os recém-adquiridos. No Rio Grande do Sul, o fenômeno é evidente: houve aumento de 3,4 vezes no registro de armas novas entre janeiro e junho de 2020. Foram 7.579 registros na primeira metade deste ano contra 2.216 armas novas registradas no mesmo período de 2019, conforme dados fornecidos pela Polícia Federal a GaúchaZH — acréscimo de 242%.
O incremento armamentista por aqui acompanha o cenário nacional. O Brasil triplicou o número de armas novas registradas no primeiro semestre deste ano, com 73.985, em comparação com o mesmo período de 2019, quando foram adquiridas 24.663. Se olharmos para os 27 Estados, percebemos que os gaúchos continuam nos primeiros lugares entre os adeptos de armas, mesmo após mais de uma década em que o Estatuto do Desarmamento restringiu ao máximo a venda de material bélico. Neste ano, o RS figura em segundo lugar no registro de armas novas pela PF. Só perde para Minas Gerais — embora os gaúchos estejam em sexto lugar no ranking populacional brasileiro.
O registro — também conhecido como posse de arma — concedido pela PF é o documento, com validade de 10 anos, que autoriza o proprietário da arma de fogo a mantê-la exclusivamente em sua residência ou local de trabalho. É diferente do porte, que permite ao cidadão andar armado. Existe outra categoria, que também possibilita a aquisição de armas e demanda autorização do Exército. São os caçadores, atiradores e colecionados (CACs) — esses não precisam se credenciar na PF. O número de pedidos de Certificados de Registros de Armas de Fogo também aumentou. A 3ª Região Militar expediu 9.871 registros no primeiro semestre de 2020 no RS — 2 mil a mais do que os 7.799 registros no primeiro semestre de 2019. É armamento novo, explica um oficial responsável pela fiscalização dos clubes de tiro.
Autoridades ouvidas pela reportagem, tanto da PF como das Forças Armadas, são unânimes em confirmar que o salto na procura por armas acontece porque as restrições diminuíram durante o governo Bolsonaro. O presidente conseguiu emplacar alterações que ampliaram desde os calibres até o número de armas e munição que podem ser adquiridas. Isso estimulou a busca de armamento por quem acredita que o chefe do Executivo contribui para sua defesa — embora no caso dos CACs, em tese, as armas não sejam destinadas a esse fim.
Os defensores do uso de armas como instrumento de defesa celebram o fato de que, mesmo com o aumento dos registros de armamento, o número de homicídios no país vem caindo. No RS, os assassinatos no primeiro semestre diminuíram 8,7% (de 987 para 901) e os latrocínios, os roubos com morte, tiveram queda de 12,8% (de 39 para 34). Alguns consideram isso prova de que o número de mortes violentas no país não está relacionado à venda legalizada de arsenais e, sim, por armamento clandestino.
— Toda a narrativa desarmamentista se firma na premissa de "mais armas, mais crimes", o que vem se provando empiricamente falso. Os recordes nas vendas de armas têm correspondido às reduções nos homicídios. Mas não é intelectualmente honesto creditar essas reduções de crimes à maior circulação legal de armamento, apesar de o fator inibidor ao criminoso, que é supor que sua vítima está armada. Na realidade, o que reduz criminalidade são as políticas de enfrentamento e desarticulação mais rígidas — argumenta Fabricio Rebelo, advogado e coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes).
Bené Barbosa, advogado e presidente do Movimento Viva Brasil (que defende flexibilização do Estatuto do Desarmamento) também considera impossível dizer que o crescimento na venda de armas tem relação com o decréscimo dos homicídios. Mas acredita que a velha máxima de "quanto mais armas, mais crimes e mais mortes" é falsa.
— Se isso fosse verdadeiro, estaríamos assistindo a um crescimento da criminalidade — pondera.
Advogada e membro do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Isabel Figueiredo discorda dessa posição e afirma que mais armas em circulação resultam em mais crimes. Cita ainda pesquisa do Datafolha, realizada em maio, que aponta que 72% dos entrevistados foram contra a declaração de Bolsonaro sobre a necessidade de armar a população — frase registrada durante reunião ministerial em abril.
— O mínimo que se espera é que uma política pública seja baseada em evidências. Mas não é o caso. Por um lado, há uma população com posição clara contra a proliferação de armas e, por outro, um discurso governamental não só de flexibilizar, mas de incentivar a aquisição. O governo está permitindo o acesso a mais armas, com maior potencial ofensivo, que correm risco de migrar para o crime — critica.
Natália Pollachi, do Instituto Sou da Paz, vai na mesma linha e considera que a alteração com maior impacto no aumento dos registros foi a que substituiu a exigência de justificar a necessidade da arma por uma declaração do motivo — agora, não é preciso comprovar. Argumenta que o acesso às armas aumenta a chance de homicídios e latrocínios, além de acidentes com revólveres, pistolas e similares.
As pessoas têm essa ideia ingênua de que vão ser vítimas quando estiverem alerta e vão conseguir se defender com uma arma. Vão ser pegas distraídas, no carro com a família, em desvantagem. É nessa hora que um roubo, que já é um crime grave, pode virar um latrocínio ou um tiroteio.
NATÁLIA POLLACHI
Membro do Instituto Sou da Paz
— As pessoas têm essa ideia ingênua de que vão ser vítimas quando estiverem alerta e vão conseguir se defender com uma arma. Vão ser pegas distraídas, no carro com a família, em desvantagem. É nessa hora que um roubo, que já é um crime grave, pode virar um latrocínio ou um tiroteio — analisa.
Consultor em segurança e proprietário diretor da Escola e Clube Magaldi de Tiro, Dempsey Magaldi sustenta que o incremento de registros não significa mais pessoas armadas, e sim a aquisição de calibres antes proibidos, como o 9mm, por pessoas que já tinham armamentos. Ressalta que os CACs — que tiveram número de armas e munição ampliados — se submetem a rigoroso controle de fiscalização do Exército e de exames para obtenção do registro. Considera o treinamento técnico, inclusive de forma gratuita para quem não puder arcar com os custos, essencial para o preparo de quem quer ter uma arma.
— Muitas vezes o cidadão civil compra a arma e coloca numa gaveta. E na hora de usar pode estar despreparado. Não é o caso dos CACs, que treinam regularmente. A arma é um forte aliado para a segurança de quem quer proteger a sua vida e da sua família. Mas usada levianamente pode gerar risco. O treinamento permite que a pessoa saiba o que fazer e não fazer. Se for pega de surpresa, com uma arma apontada ou em local coletivo, a orientação é não reagir. Com o treinamento, a pessoa estará preparada para identificar e neutralizar o risco, e evitar o confronto. Ter arma com todos esses requisitos, é perfeitamente valido, se a pessoa fez esta escolha — argumenta.
A arma é um forte aliado para a segurança de quem quer proteger a sua vida e da sua família. Mas usada levianamente pode gerar risco. O treinamento permite que a pessoa saiba o que fazer e não fazer.
DEMPSEY MAGALDI
Consultor de segurança e proprietário diretor da Escola e Clube Magaldi de Tiro
Magaldi concorda com alterações feitas pelo governo e defende que Bolsonaro reestabeleceu o que já era previsto em lei.
— O processo de compra não foi flexibilizado. A Lei 10.826, de 2003, já previa que o cidadão tinha que declarar e não justificar as razões pelas quais queria adquirir a arma. O governo Bolsonaro não criou regra diferente, apenas corrigiu o que as instruções normativas e portarias alteraram. As outras exigências permanecem — afirma.
Ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, José Vicente da Silva Filho avalia que a maior parte da população não possui condições de ter acesso às armas, por conta do custo. Argumenta também que facilitar o acesso às armas amplia a possibilidade de que esse arsenal vá parar nas mãos de bandidos, por meio de roubos ou desvios para facções criminosas.
— O valor de um resolver dá para comprar uma geladeira, um fogão e um micro-ondas, tudo junto. Não tem alcance para a população em geral. Em uma sociedade em que muitos estão sujeitos à violência, não podemos esperar que o cidadão resolva a segurança pública. Devemos cobrar as ações das autoridades, ou só uma parcela se livrará da violência — avalia.
A Polícia Federal e o Exército forneceram dados, mas não quiseram se pronunciar sobre o assunto.
Confira algumas das mudanças realizadas durante o governo Bolsonaro
- A quantidade de munição que pode ser adquirida por pessoas físicas, por exemplo, aumentou.
- Para atiradores, o limite de compra de armas subiu de 16 para 30 de uso permitido e 30 de uso restrito. Para caçadores, subiu de 12 para 15 de uso permitido e 15 de uso restrito. Entre armas de uso restrito, estão fuzis de calibre 5.56 ou 7.62. Para colecionadores, o limite é de cinco armas por modelo.
- Com as alterações de quantidades de armas, também aumentou o número de munições que pode ser adquirido por ano. O máximo para atiradores é de 5 mil anuais para cada arma de uso permitido e mil para cada arma de uso restrito
- O acesso às armas que antes eram de uso restrito às forças de segurança, como pistolas 9mm, .40 e .45 foi estendido para civis
- O registro, que valia por cinco anos, foi prolongado para 10 anos
Fonte: governo federal