Seis meses depois de perder o irmão, a cunhada e o sobrinho durante uma briga de trânsito na zona sul de Porto Alegre, a administradora de empresas Leticia Zanetti, 47 anos, tenta reconstruir o dia a dia da própria família. Em 26 de janeiro, depois de saírem de um aniversário, Rafael Zanetti Silva, 45, Fabiana da Silveira Innocente Silva, 44, o filho Gabriel da Silveira Innocente Silva, 20, foram mortos a tiros na Estrada do Varejão, no Lami, após discutirem por uma colisão lateral entre dois veículos. O caçula de nove anos e a namorada de Gabriel, 18, presenciaram o crime. Dionatha Bitencourt Vidaletti, 24, está preso na Penitenciária Estadual de Canoas e é réu pelos três homicídios.
Após o choque, a família Zanetti cuidou daquilo que julgou ser o mais imediato: resguardar o menino que viu mãe, pai e irmão serem mortos. Atualmente, ele vive com a tia, o primo e os avós paternos em São Paulo. Juntos, tentam elaborar o luto e lidam com o vazio da perda.
— O trauma inicial te deixa um pouco sem raciocinar. Depois, vai caindo a ficha, que não tem mais aquela conversa, o telefonema, o contato. Não tem mais o calor da pessoa. É uma luta diária. É um vazio que fica. Não tem como mensurar o tamanho da dor. É como uma peça de Lego, não tem substituição — compara Leticia.
Assim como os pais, Leticia é gaúcha e mora há oito anos em São Paulo. A vida na capital paulista foi readaptada para receber e acolher o sobrinho, ao mesmo tempo em que cada um deles trava a batalha pessoal de cicatrizar uma ferida que é comum a toda a família. A irmã de Rafael mora na mesma rua em que os pais, o que facilita a proximidade cotidiana. O sobrinho tem um quarto nas duas casas e mantém contato com os avós maternos, que vivem no Rio Grande do Sul, por telefone e videochamadas. A tia conta que a adaptação da criança, tanto na escola quanto no convívio em casa, não teve grandes percalços:
— O difícil é o coração, é suprir essa falta de todos os dias e que está nos olhos dele, estampado nele. A maior vontade que eu tenho é trazer os três de volta e colocá-los na frente do meu sobrinho e dos meus pais.
A presença do neto no cotidiano tem sido fundamental para os pais de Rafael elaborarem o luto. Na avaliação de Leticia, para o sobrinho, a proximidade tem o mesmo efeito, principalmente pela semelhança física do pai do menino com o avô.
Quando tudo aconteceu, achei que perderia meu pai também. Ele tinha algo com meu irmão, uma ligação muito forte, faziam as mesmas coisas, trabalhavam com as mesmas coisas. Meu sobrinho foi o ar para poder ajudar meus pais a seguirem.
LETICIA ZANETTI
Irmã de Rafael Zanetti
— Quando tudo aconteceu, achei que perderia meu pai também. Ele tinha algo com meu irmão, uma ligação muito forte, faziam as mesmas coisas, trabalhavam com as mesmas coisas. Meu sobrinho foi o ar para poder ajudar meus pais a seguirem. Sinto isso no colo, na brincadeira, na fala.
Após enfrentar os primeiros seis meses da perda, a família compara a convivência com o luto a um jogo de quebra-cabeça, onde a cada dia se encaixa uma nova peça:
— Nossa vida foi muito compartilhada, eles tinham uma alegria de viver e viveram intensivamente. E passaram isso para o meu sobrinho. A gente está reinventando todo nosso dia a dia. É complicado conseguir explicar o que estamos fazendo para readaptar a vida. Nos confortamos diariamente. Espero do fundo do meu coração que ele (Vidaletti) nunca passe por isso que estamos passando. É muito ruim.
Amigo de Rafael desde os 13 anos e padrinho de Gabriel, o comerciante Márcio Becker, 45 anos, convivia com Rafael diariamente, especialmente nos encontros de fim de tarde. Eram compadres e confidentes. O sentimento da perda é compartilhado por ele, pela esposa e pelas duas filhas e amparado com apoio psicológico. Todos confraternizavam na Zona Sul horas antes do crime: naquele domingo, a família Zanetti estava no aniversário de 18 anos da filha de Becker.
— Estavam tão felizes, tinham reformado a casa deles, comemoramos o aniversário dele (Rafael) e dela (Fabiana) lá. Foi uma morte estúpida, não foi um acidente. Todo dia eu penso no Rafa. Fui na oficina que era do meu afilhado (Gabriel) e todo mundo fica triste. Quando as pessoas me veem, lembram deles. Rafa era meu compadre, amigo, estávamos sempre juntos, dando conselhos um para o outro.
Vida na prisão em Canoas
Preso desde 28 de janeiro, Vidaletti também é réu por tentativa de homicídio do menino de nove anos e da namorada de Gabriel. No entendimento do Ministério Público (MP), o crime teve três agravantes: motivo fútil, pois foi cometido após uma batida lateral no veículo de Vidaletti; perigo comum, por ter sido realizado em local e horário de circulação de pessoas e, por último, recurso que dificultou a defesa das vítimas.
Na Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan), o jovem já teve 17 atendimentos técnicos, entre eles suporte com psicólogo. No período, conversou duas vezes por videochamada com a família – as ligações estão previstas no sistema prisional durante o período de pandemia na qual as visitas estão suspensas. Na prisão, Vidaletti atua em duas ligas laborais: é facilitador da sua galeria para a biblioteca, faz catálogo dos livros e leva os títulos para os presos. Também é o responsável por listar os nomes dos presos que precisam de atendimento médico dentro da Pecan para encaminhar para a Unidade Básica de Saúde (UBS).
O processo que levará Vidaletti ao tribunal do júri tramita em segredo de Justiça na 1ª Vara do Júri de Porto Alegre. A ação está em fase de instrução e a primeira audiência foi marcada para 17 de agosto, quando serão ouvidas 14 testemunhas de acusação. No entanto, há incerteza quanto a sua realização devido a pandemia de coronavírus. Não há previsão de julgamento.
Ele não tinha histórico violento, praticamente não tinha ocorrência nenhuma. Pelo perfil, ele não demonstrava que era uma pessoa que poderia tomar a atitude que tomou. O fato em si nos chamou muito a atenção: uma briga de trânsito, num ato muito rápido, foram poucos segundos, com presença de arma na mão, levou a morte de três pessoas da mesma família.
RODRIGO POHLMANN GARCIA
Titular da 4ª Delegacia de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP)
À frente do caso na Polícia Civil, o delegado Rodrigo Pohlmann Garcia, afirma que desde o início a investigação tentou buscar traços de agressividade no histórico de Vidaletti que pudessem ter justificado suas atitudes na tarde daquele domingo.
— Não tinha histórico violento, praticamente não tinha ocorrência nenhuma. Pelo perfil, ele não demonstrava que era uma pessoa que poderia tomar a atitude que tomou. O fato em si nos chamou muito a atenção: uma briga de trânsito, num ato muito rápido, foram poucos segundos, com presença de arma na mão, levou à morte de três pessoas da mesma família.
Embora Vidaletti tenha alegado, em depoimento, que agiu em defesa da mãe, Pohlmann avalia que a motivação não se enquadra com o resultado do crime:
— Eram argumentos frágeis para reação que ele teve. Eram pessoas que ele não conhecia, nunca tinha visto, não tinha uma relação antecedente de briga ou vingança. Foi completamente de impulso. Uma discussão banal se tornou letal, no assassinato de várias pessoas.
Mãe de Vidaletti, Neuza Regina Bitencourt Vidaletti, não foi indiciada pela Polícia Civil, mas foi denunciada pelo Ministério Público como coautora dos assassinatos. O promotor Eugênio Paes Amorim entendeu que Neuza, "levando a arma de fogo ao momento da desavença, bem como ao atirar a esmo e ao não impedir que o denunciado Dionatha, seu filho, pegasse a arma, houve omissão relevante causal e, sendo assim, concorreu para a prática do crime". Procurada por GaúchaZH, Neuza, que responde em liberdade, preferiu não se manifestar.
Contraponto
Responsáveis pela defesa dos réus, os advogados Marcos Ribeiro de Sousa e Michelle Costa Brião de Souza enviaram a seguinte nota a GaúchaZH:
"A defesa técnica de Dionatha Bitencourt Vidaletti e Neuza Bitencourt Vidaleti, instada pela mídia acerca do caso e da questão armamentista, vem dizer que este escritório de advocacia está compromissado, para dentro dos limites legais disponíveis, lançar mão de petitório, administrativo ou judicial a fim de viabilizar licença de armamento para todos os cidadãos de bem que preencherem os requisitos insculpidos em lei, para que, nos limites da legalidade, exerçam a justa proteção de sua integridade física, família e patrimônio.
Os acusados sustentam o exercício de legítima defesa em razão de que as supostas vítimas teriam investido injustamente contra suas integridades físicas. O laudo de exame de corpo de delito realizado no acusado aponta neste sentido. Ademias, foi constatado pela perícia consideráveis índices de álcool no sangue dos falecidos. Os fatos serão esclarecidos no curso do processo.
Com efeito, é sabido e consabido da impossibilidade do poder púbico em garantir a segurança absoluta, por todo o tempo, de todos os cidadãos, em especial a dos que se encontram em situação de vulnerabilidade, notadamente pela falta de estrutura e logística para tanto.
O direito de defesa é inerente à pessoa humana, logo, intransponível, sobretudo, na proteção do direito à própria vida ou à de outrem. Armas legalizadas preservam vidas e patrimônio todos os dias, entende-se, pois, que a atual legislação infraconstitucional de controle de armas no Brasil viola, deliberadamente, o direito natural dos cidadãos, e não somente isso, mas também a liberdade e a própria democracia. É a posição dos firmatários."