A técnica de enfermagem Ana Paula Padia, 31 anos, tinha encerrado um plantão pesado de 12 horas no Hospital de Clínicas de Passo Fundo. Na madrugada entre os dias 18 e 19 deste mês, dois pacientes da ala reservada ao coronavírus morreram no intervalo de uma hora. No fim do expediente, às 8h, voltou para casa exausta e ainda cuidou dos sobrinhos, enquanto a irmã Diênifer Padia, 26 anos, estava na rua. Venceu o cansaço ao longo do dia sem imaginar que aquele dia terminaria muito pior do que começou.
Quando Ana Paula enfim conseguiu fechar os olhos sobre a cama, por volta das 21h, na casa dos fundos, o marido Alessandro dos Santos, 34 anos, a filha Kétlyn, 15 anos, e a irmã Diênifer foram amarrados e asfixiados na residência da frente.
Horas antes do crime, nada da rotina da família poderia supor que ela seria dilacerada ainda naquela noite. O pai levou a filha ao dentista à tarde e marcaram a extração de um dente para o sábado seguinte. Jantaram polenta com azeitonas. Após a refeição, Kétlyn foi tomar banho. A última lembrança de Ana Paula é de ter visto a filha secando cabelo.
— O Alessandro cozinhava, aquele dia fez a janta. A gente jantou, ele tomou duas latinhas de cerveja. Deitei no colo dele. A nenê (Kétlyn) foi tomar banho. E depois fui dormir na outra casa, eu e o Alessandro só dormíamos naquele quarto. Não sei quanto tempo dormi mas me acordei com o brigadiano no meu quarto. Levei um susto e perguntei: o que houve? Ele não me disse nada, só me trouxe até eles. Eu fiquei em choque quando vi eles no chão. Ninguém me dizia o que tinha acontecido. A minha irmã e meu marido estavam na sala. A Kétlyn estava na porta do quarto. Ainda disse para uma brigadiana: "estão com vida". Me ajoelhei. Queria fazer qualquer coisa.
Se eu tivesse ouvido qualquer coisa, teria ido correndo acudir. Jamais ia deixar minha filha passar pelo que passou. Eu tinha entregado a minha vida por ela. Como eu ia deixar a minha filha morrer e não ia fazer nada? Ou eu tinha morrido ou tinha matado esses demônios. Sempre jurei que daria minha vida por ela.
ANA PAULA PADIA
Mãe de Kétlyn, esposa de Santos e irmã de Diênifer
Juntos há 16 anos, a adolescente era a filha única do casal. Santos foi o primeiro namorado de Ana Paula e o casal havia reatado há dois meses após dois anos de idas e vindas. Estavam morando de forma provisória na casa de Diênifer e pretendiam, até o final do ano, comprar uma casa própria e ter mais um filho. Kétlyn pedia muito um irmão. Daqui para frente, ensaiavam recomeçar uma vida nova. No dia em que foi morto, Santos havia olhado uma motocicleta para a esposa. Não queria mais que ela voltasse a pé do hospital para casa.
— Eu só queria que a nossa família fosse feliz. Estávamos nos dando tão bem — diz.
Mãe de três filhos, Diênifer estava animada com a loja de roupas que iria abrir e já estava vendendo algumas peças pela internet. No momento do crime, as crianças foram colocadas em um quarto escuro. Amparada por familiares e colegas de trabalho que a visitam, Ana Paula não quer mais retornar para a casa onde morava e ainda não voltou ao trabalho. Até aqui, tem dificuldade para prever seu futuro:
— Não consigo sair de casa, não consegui fazer a certidão de óbito deles. Tenho medo, não sei se era para mim. Não sei se eu era o alvo. Isso foi uma encomenda — desabafa Ana Paula
Cursando o 1º ano do Ensino Médio, Kétlyn estava ansiosa para voltar à escola. Segundo a mãe, mantinha uma rotina caseira, não frequentava a casa dos amigos e só saia para ir a padaria. Gostava de estudar e jogar bola. Era fanática pelo Internacional e muito apegada a Diênifer.
— Só quero que peguem essas pessoas o mais rápido possível. Não sei porque fizeram isso, só queria entender quem foi e porquê. Não consigo comer, não consigo dormir. Cada dia é pior. Não sei o que vai ser da minha vida sem eles. Me deixaram sozinha, não tenho mais ninguém, minha família se foi. Eu ia trabalhar, eles me levavam até a parada de ônibus. Eu chegava em casa, abriam a porta para mim.
Além do luto, Ana Paula conta que tem sofrido especialmente com comentários que questionam como ela não ouviu, mesmo dormindo, nenhum sinal do crime que estava acontecendo na casa da frente.
— Se eu tivesse ouvido qualquer coisa, teria ido correndo acudir. Jamais ia deixar minha filha passar pelo que passou. Eu tinha entregado a minha vida por ela. Como eu ia deixar a minha filha morrer e não ia fazer nada? Ou eu tinha morrido ou tinha matado esses demônios. Sempre jurei que daria minha vida por ela. Eu trabalho dentro de um hospital, sei o que é o sofrimento das pessoas. Ninguém está dentro de mim para saber o que eu estou passando.
Os celulares de Santos e Diênifer desapareceram da cena do crime, mais um fator que dificulta o trabalho da polícia. No comando das investigações, a delegada Daniela Minetto afirma que está diante de um trabalho complexo. Até o momento, a polícia descarta a possibilidade de latrocínio (roubo com morte) e não dá detalhes do avanço dos trabalhos:
— Será um desafio. E não vai ser de um dia para o outro que teremos respostas. Vai demandar tempo para a elucidação.