O promotor do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Presidente Prudente, do Ministério Público (MP) de São Paulo (SP), Lincoln Gakiya, 52 anos, é uma das maiores autoridades no combate ao avanço do Primeiro Comando da Capital (PCC). Conseguiu, em 2019, realizar uma das empreitadas que vinha tentando há mais de uma década: isolar em penitenciárias federais a cúpula da maior facção do país e uma das mais expressivas da América do Sul.
De fevereiro a maio, 25 chefes da organização criminosa foram enviados para casas federais. Entre eles, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, principal líder do PCC (que já cumpriu pena no RS, no início dos anos 2000). Para o promotor, esse episódio representa um marco na quebra do comando da facção e tem vínculo direto com a redução da criminalidade em SP e em outros Estados do país.
Pelo caráter combativo, o promotor foi repetidas vezes ameaçado de morte. E, por isso, vive com segurança especial. Ao longo dos 28 anos de MP — 11 deles no Gaeco de Presidente Prudente — Gakiya viu esse grupo criminoso se alastrar pelo país. Em 2014, eram três mil membros do Partido do Crime — como é conhecida a facção — fora de SP. Hoje, segundo levantamento feito pelos próprios membros e obtido a partir de escutas ou apreensões nas cadeias, são 27 mil espalhados pelo Brasil e mais 8 mil em SP. Entre os Estados está o Rio Grande do Sul, onde haveria mais de 900 simpatizantes, segundo o MP paulista.
O grupo criminoso, que completa 26 anos no fim deste mês, nasceu dentro das prisões paulistas, como uma espécie de sindicato do crime, um ano após o massacre do Carandiru — onde, pelo menos, 111 detentos foram mortos pela polícia. A facção fez do sistema carcerário o seu corredor de fortalecimento. Por isso, chama a atenção quando Gakiya afirma que pela primeira vez o comando dessa organização está nas ruas. Mas ainda depende de aval da cúpula, agora isolada, para agir.
Em entrevista a GaúchaZH, o promotor diz que o combate a esse grupo precisa passar por uma estratégia nacional e internacional, que integre Estados, União e países da América do Sul. Demonstra preocupação com o contato entre criminosos do PCC e chefes de facções locais. Para tentar evitar que o grupo dissemine também nas prisões federais a sua ideologia de que "o crime fortalece o crime", traça estratégias com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e o Ministério da Justiça. Para o sistema federal, abrigar membros da cúpula do PCC ainda é algo novo.
O promotor defende ainda que cada Estado invista em uma prisão com isolamento em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) dentro do próprio território para evitar o "intercâmbio do crime". A alternativa para isolar presos no RS foi debatida em reportagem de GaúchaZH em julho. Gakiya alerta também para a expansão internacional do grupo criminoso, que hoje envia uma tonelada de cocaína por mês para países da Europa, onde recebe em euro. Projeta a necessidade de atacar o grupo por meio de uma extensa investigação, que compara à realizada na Lava-Jato.
— Vamos ter de ver o caminho desse dinheiro, via doleiros. É uma nova fase que começa esse ano —analisa o promotor, que denunciou criminalmente ao longo da carreira mais de 300 membros da organização.
Confira a entrevista com o promotor na íntegra:
O que mudou desde a transferência de lideranças, como o Marcola, para o sistema federal?
Temos experimentado, pelo menos aqui no Estado de São Paulo, diminuição geral nos índices de criminalidade. E tem relação com esse isolamento. Conseguimos retirar o primeiro e o segundo escalão juntos. Isso deixou o sistema sem um líder imediato. Os que haviam sido nomeados pelo Marcola para ficar no seu lugar, foram removidos junto. Isso causou um vácuo de poder. Hoje, ao contrário do que aconteceu por muitos anos, o controle da facção não está no interior dos presídios e sim, na rua. E o pessoal de rua não tem autonomia para tudo.
O isolamento realmente consegue afetar a cadeia de comando, o imediatismo?
"Para decisões estratégicas houve uma quebra de cadeia de comando. Isso impactou nos índices de criminalidade pelo Brasil afora. Deu uma arrefecida na guerra"
LINCOLN GAKIYA
Promotor do Gaeco
Na penitenciária federal, eles não têm acesso à visita íntima. As conversas são monitoradas. As ordens acabam saindo, mas não no volume que saía. Para decisões estratégicas, houve uma quebra de cadeia de comando. Isso impactou nos índices de criminalidade pelo Brasil afora. Deu uma arrefecida na guerra entre PCC e Comando Vermelho. Houve uma trégua momentânea por conta dessas remoções. Está sendo uma vitória.
Aqui no RS o Estado transferiu 27 líderes de facções há dois anos. E também teve queda em homicídios. Mas isso pode a longo prazo aproximar chefes locais da cúpula de organizações maiores?
É um risco. Para o sistema penitenciário federal a presença do PCC passou a ser um fator novo. Já tinham alguns integrantes, mas receberam a liderança máxima. É um fator de preocupação para o sistema federal. A possibilidade de fazerem alianças para poderem se fortalecer e combater o Estado é maior.
Inclusive com as facções locais de outros Estados?
"A tendência é as facções menores se unirem a maiores, como o PCC, até para ter facilidade de domínio de território, de comprar drogas, no Paraguai, na Bolívia."
LINCOLN GAKIYA
Promotor do Gaeco
No Rio Grande do Sul, há dezenas de pequenas facções. A tendência é os grupos menores se unirem a maiores, como o PCC, até para ter facilidade de domínio de território, de comprar drogas, no Paraguai, na Bolívia. Temos essa preocupação, de mandar esses presos para lá, mas que no sistema federal não possam se fortalecer ainda mais. Creio que está sendo bem cuidado. O Marcola, por exemplo, e outros integrantes importantes estão isolados em Brasília. Não tem presos de outras facções. Tanto que se, os líderes que estavam em SP não faziam muito movimento para defender, entre aspas, os presos no sistema federal, hoje a coisa mudou.
Por que agora interessa a eles?
Exatamente. Toda vez que essa liderança se envolve em alguma coisa é por interesse próprio, não tem a ver com o interesse dos demais presos. Vão brigar por estabelecimento com visita íntima, acesso à televisão, maior tempo de banho de sol. Nisso, vão tentar se aliar a outras facções para combater o Estado. É com essa ideologia (de que "o crime fortalece o crime") que eles conseguem essas alianças dentro do sistema. Acompanhamos isso com bastante apreensão. Vejo com preocupação o isolamento indiscriminado de presos.
"Um dia, esses presos acabam voltando para o Estado. Se pegam sistema penitenciário sem condições mínimas, voltam maiores do que eles saíram"
LINCOLN GAKIYA
Promotor do Gaeco
No Rio Grande do Sul são cerca de 30 presos isolados em penitenciárias federais.
É, é bastante. São Paulo com 235 mil presos a gente pinçou 25 para mandar. Nós devemos ter 5% de vagas do sistema federal. É pouco, em relação a outros Estados. É preciso ter um pouco de cautela e bom senso na seleção dos apenados que realmente precisam ser isolados. Um dia esses presos acabam voltando para o Estado. Se pegam sistema penitenciário sem condições mínimas, voltam maiores do que eles saíram. Empoderados.
Dentro do sistema federal, eles ganham status no meio do crime?
Eles estão como mártires. A maioria acha que foi para lá para defender a causa. Então querem ser recompensados e reconhecidos por isso. E são. Quando retornam, são reverenciados. Precisa ter muito cuidado para mandar. É uma questão que os Estados tem de pensar. Aí no RS uma dificuldade muito grande é que vocês têm muitas facções. Até que se acomodem, gera uma violência muito grande. Nós já tivemos esse problema em SP há muitos anos. Depois, o PCC se tornou hegemônico. Por um lado é bom, porque diminui a quantidade de homicídios, por outro lado é ruim porque existe fortalecimento das facções que sobrevivem.
E qual a solução para quem precisa isolar lideranças?
Os Estados precisam resolver os problemas internos e ter uma unidade de RDD (regime disciplinar diferenciado). Em São Paulo, temos o RDD. O próprio sistema penitenciário federal se inspirou aqui no Centro de Readaptação de Presidente Bernardes. Há uma opção dentro do Estado antes de mandar para o sistema federal. Se não conseguir resolver no Estado, aí sim, manda para o (sistema) federal. Ou você vai causar dois problemas: vai saturar o sistema federal e vai mandar presos que não tinham perfil e que vão voltar piores do que foram. Isso é um problema.
O PCC fez um movimento ano passado para aumentar número de filiados. Há algum dado mais atualizado sobre o tamanho do PCC no RS?
São 900 e poucos integrantes. Esse dado é do início deste ano. Em 2014, o PCC tinha 3 mil integrantes fora do Estado. Hoje, tem 27 mil. O crescimento é exponencial. Enquanto cresceu 2 mil no Estado (de São Paulo). O que isso implicou? Batizou qualquer um. Não teve critério. Só queria número. Para poder ter mais um soldado na guerra contra o inimigo. Aqui no Estado de São Paulo manteve várias regras. O sujeito que é padrinho é corresponsável por quem vai batizar. Tem de pensar bem ao indicar alguém. Fora do Estado, tem batizado qualquer um. No Ceará tem batismo de adolescente, uma coisa que aqui não aceita. Cresceu em número, mas não em qualidade.
No ano passado, houve notícias que eles chegaram a abrir mão da contribuição.
A contribuição no Estado de SP ainda é cobrada: R$ 950. É muito caro. Quando preso, não precisa pagar, mas na rua tem de pagar. E muitas vezes tem de roubar para pagar. Se não, vai ter problema. Fora do Estado eles aboliram porque o Comando Vermelho não cobra mensalidade. A tendência é aqui deixarem de cobrar também. Não é um faturamento expressivo. São estratégias para cooptar mais seguidores.
O ataque à lavagem de dinheiro é o caminho para tentar asfixiar essas organizações?
A liderança do PCC é milionária. Mas o dinheiro da facção não circula no mercado formal. Até dois anos atrás, era enterrado em cofres. Cada milhão, enterravam. Não era depositado, aplicado. Agora mudou. Mais da metade do faturamento é trafico externo, na Europa. Calculamos o envio de uma tonelada/mês. Um quilo de cocaína, eles vendem por 25 mil a 30 mil euros. Não volta para o Brasil em espécie. É muito dinheiro. Estão utilizando doleiros. Já vai direto para pagamentos na Bolívia, no Paraguai, no Peru. É uma nova etapa de investigação. Penso que vai ser como uma Lava-Jato. Precisa identificar os doleiros. Qual o caminho que esse dinheiro faz. Se é lavado em fazendas de produtores de drogas ou imobilizado em imóveis e empresas fora do Brasil.
E o que pode ser feito pelos Estados?
Os presos com um celular, uma carta, conseguem ter contato daqui ao Acre. O ideal é que pudesse agir em concurso com o MP aí do RS. Nós assinarmos uma denúncia juntos. Essa seria uma atuação integrada e importante. Penso em alguma reforma na lei de organizações criminosas. Precisa também integração com as polícias estaduais. A Polícia Federal não tem perna no país todo. Precisa ter ações integradas entres Estados, governo federal e países vizinhos. Se não, ficamos enxugando gelo, cada um dentro da sua casinha do Estado.