Tinha tudo para terminar em rispidez o debate entre três dos últimos secretários da Segurança Pública do Rio Grande do Sul – o atual e dois de seus antecessores, realizado em Porto Alegre na noite de quarta-feira. Mas as alfinetadas mútuas foram pautadas pela elegância. O delegado Ranolfo Vieira Junior (atual titular da pasta e vice-governador) e dois recentes ocupantes do cargo, o advogado Cezar Schirmer e o procurador de Justiça Airton Michels exibiram mais convergência do que divergências na análise do combate à criminalidade. Descontadas, lógico, as rivalidades políticas entre o trio, pois cada um é ligado a um partido.
O encontro foi pioneiro. O atual secretário e seus antecessores foram o ponto alto da terceira edição da FutureGov Conference, evento sobre soluções criativas e colaborativas na área de segurança, organizada pela universidade Imed. O encontro aconteceu no campus na Capital, no bairro Mont´Serrat.
Os debatedores falaram sobre falta de vaga em presídios, perfil dos criminosos que ocupam as cadeias, receitas para melhor prover segurança. Concordaram em muitos pontos, discordaram em outros e foram questionados pelas mais de cem pessoas presentes, a maioria estudante de Direito.
Michels, que chefiou a segurança pública de 2011 a 2015 em governo do PT, o primeiro a falar, foi o mais crítico. Chamou de hipócritas os “cidadãos de bem” que vibram pela morte de 15 suspeitos na favela, mas tentam subornar quem lhes aplica multa. Elogiou a ação policial que resultou na morte do sequestrador de um ônibus no Rio, terça-feira, mas chamou de “absurdo” o gesto do governador fluminense Wilson Witzel de comemorar o desfecho fatal. E, num petardo direto contra o atual governo do RS, classificou como “crime de tortura, medieval”, a permanência de presos algemados em viaturas por dias, até semanas. Ele disse que isso leva alguns policiais a enxergarem criminosos como “animais” e desafiou o secretário Ranolfo a providenciar vagas em presídios.
– Estivesse no seu lugar colocava presos até no meu gabinete, mas não deixava na rua. Se tem 5 mil presos em presídios superlotados, por que não colocam lá 5,2 mil? Pelo menos seria sob um teto, diminuiria essa vergonha.
Política antidrogas
Michels também criticou o governo federal pelo estímulo à violência “insana e injusta”, considerou a política antidrogas um fracasso e lembrou que 35% dos presos brasileiros são detidos pegos com pequenas quantias.
Cezar Schirmer, que chefiou a Segurança Pública de 2016 a 2019 (governo MDB), fez discurso emotivo, que lembrou seus tempos de tribuna na política nacional. Após cumprimentar de forma engraçada a Michels – “que conheço do tempo em que ambos tínhamos cabelo e era preto” – concordou com na análise de que “a política antidrogas do Brasil é uma droga, pois prende-se muito mal”. Mas ressaltou que esta é a lei e tem de ser cumprida. O ex-secretário emedebista e possível candidato a prefeito de Porto Alegre foi o único a falar em pé, caminhando em direção ao público. Com ênfase, declarou que o Brasil é um país onde o cidadão que não delinque tem medo – e, nisso, está na contramão de outros países com ideologias diversas, como EUA e Rússia. Disse que isso é parte por culpa da situação prisional caótica e sob domínio das facções, outra parcela pela ausência de políticas de Estado à segurança (e não de eventuais governos), e uma última fatia pelo desrespeito crônico às pequenas regras de convivência.
Schirmer falou que pular catraca, pichar muros e destruir vidraças são infrações que abrem caminho para condutas permissivas que levam ao crime. Ele lembrou o caso de uma adolescente, em Cachoeirinha, que matou asfixiada uma colega de aula, sem ser contida por ninguém. Tudo por uma discussão.
– Isso não tem polícia que resolva. É um problema de falta de valores! – esbravejou e colheu aplausos.
Homicídios
Ranolfo Vieira Junior, atual secretário, foi o menos inflamado dos três debatedores. Concordou polidamente com críticas ao sistema prisional e ao excesso de presos por motivos menores, mas ressaltou conquistas do atual governo. Ele afirmou que a elucidação de homicídios, que já foi de 17%, hoje chega a 70%. Falou que desde o início do governo o número de assassinatos vem caindo mês a mês, em parte por concurso de pessoal e parcerias com a iniciativa privada para doações. O delegado ainda ressaltou o projeto RS Seguro, que pretende fortalecer a integração entre as polícias, ações de inteligência e investimentos tecnológicos. O plano é concentrar policiamento em 18 cidades com 70% dos homicídios e 90% dos roubos de veículos.
Na plateia do debate muitos aprovados em concursos cobravam nomeação e Ranolfo admitiu que, se tivesse dinheiro em caixa, chamava todos para trabalhar.
O secretário chamou o sistema prisional de “calcanhar de Aquiles” da segurança. Disse que existem 25 mil vagas para 42 mil presos gaúchos e que levou o governador Eduardo Leite para conhecer “o fundão do Presídio Central”. Ranolfo descreve que o governador se espantou ao passar entre detentos dormindo no chão, em colchões.
– Grande parte da sociedade acha que preso tem de sofrer. Ela se esquece que eles, tratados como bichos, voltarão às ruas como feras – definiu, ganhando aplausos.
O coordenador do FutureGov, o estudioso de segurança pública Eduardo Pazinato, saudou o resultado do debate.
– Acho que conseguimos bastante convergência e consensos, apesar das evidentes diferenças que existem entre os convidados – concluiu.