Correção: 17% das ocorrências de roubo são finalizadas e acabam virando processo judicial, e não 15% como publicado entre 15h e 21h de 27 de maio. O texto já foi corrigido.
Guilherme* tinha acabado de sair do trabalho e aguardava em uma parada de ônibus quando foi abordado por duas pessoas, no começo da noite. Vítima e assaltantes chegaram a trocar algumas palavras. Fingindo se passar por passageiros, perguntaram o horário do coletivo que levava até a zona sul de Porto Alegre. Mas a harmonia entre as duas partes para por aí.
Discretamente, um dos assaltantes tira uma faca de dentro de uma mochila e se aproxima da vítima, que se vê encurralada em uma parede com a arma apontada em sua direção. "Passa, passa tudo", gritaram os criminosos. Do outro lado da rua, a ação chamou a atenção de outras pessoas, que também aguardavam ônibus, só que para outra região da cidade. Entretanto, nada fizeram. Apavorado, Guilherme entregou uma mochila com pertences.
Após o assalto, chamou a Brigada Militar que logo chegou ao local. Buscas foram feitas, mas nem os criminosos nem os pertences foram encontrados. O crime ocorreu em março de 2018 e virou ocorrência policial. Passado mais de um ano, a vítima nunca foi chamada na delegacia para prestar depoimento ou para identificar possíveis suspeitos.
A situação não se limita a Guilherme. Em 2018, foram registradas 72.483 ocorrências de roubo no Rio Grande do Sul. Do total, foram abertos 27.836 inquéritos pela Polícia Civil, o que corresponde a 38,4% dos registros iniciais. Dos boletins de ocorrência, 12.668 foram concluídos e encaminhadas para a Justiça. Em resumo, significa que apenas 17% das ocorrências são finalizadas e acabam virando processo judicial. Ou seja, uma a cada oito ocorrências de roubo é remetida à Justiça.
Nos casos de furto (quando algo é tomado sem que a vítima perceba), a situação não é diferente. No ano passado, foram registradas 136.685 ocorrências, sendo que 47.177 (34,51%) viraram inquérito. Do total registrado, 17,74% foram encaminhadas para à Justiça (24.255). Ou seja, uma a cada 5,63 ocorrências são finalizadas pela polícia.
Considerando todos os crimes registrados no Estado, o índice de resolutividade criminal é maior, de 32,61%. Das mais de 693 mil ocorrências comunicadas no ano passado, 226.159 foram concluídas. Os dados estão disponíveis no site da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Já as informações especificadas por crime (roubo e furto) foram obtidas pela reportagem pela Lei de Acesso à Informação (LAI) com a SSP.
Para o presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil (Sinpol), Emerson Lopes Ayres, a situação é reflexo direto da falta de efetivo. Na corporação, há quase 5 mil servidores, entre agentes e delegados, considerado o menor desde a década de 1980.
— Ultimamente, tem se propagado o discurso que a polícia tem de investir em tecnologia, mas um computador não trabalha sozinho. Tem crimes que a tecnologia ajuda muito pouco, como o arrombamento da residência. Nesse caso, vai depender de trabalho de campo, de ir no local, verificar as redondezas, ver se tem câmeras, conversar com os moradores — salienta o sindicalista.
Aposentado há três anos, após 35 anos na ativa, Ayres observa que os últimos concursos não têm suprimido a saída de servidores, como de casos de aposentadoria, o que deve se agradar nos próximos meses, caso uma nova política de ingresso não seja adotada.
— O governo do Estado deve criar uma política para reposição dos quadros da segurança pública, principalmente da Polícia Civil. Não se pode seguir nessa mesmice de abrir concurso apenas quando a situação está grave — salienta Ayres.
* Nome fictício.
Especialistas entendem que situação pode ser ainda pior
Integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania da Ufrgs, a professora de Sociologia Letícia Maria Schabbach acredita que a situação mostra a prioridade da polícia em investigações de crimes contra a vida — como homicídio e latrocínio (leia abaixo) — frente ao efetivo reduzido de policiais. Por outro lado, a pesquisadora entende que o baixo índice de resolutividade em casos de furto e roubo também pode indicar dificuldade para se apontar os autores dos crimes, o que, consequentemente acaba arrastando o andamentos das investigações que podem até mesmo não serem concluídas.
A professora alerta que os números de roubos ou furtos podem ser ainda maior, devido às subnotificações, quando crimes acabam não sendo registrados, por uma série de motivos, como medo, descrédito da polícia, entre outros.
— A subnotificação é externa à polícia. Então, não tem como quantificar só se fizesse pesquisas de vitimização e envolvesse toda uma população de uma forma ampla para verificar quantas pessoas ou quantos delitos não são comunicados à polícia. No caso de furtos e roubos, essa notificação à polícia é maior quando se trata, por exemplo, de registrar o furto de veículo para acionar o seguro, aí temos uma cifra oculta bem menor, pois o seguro exige o registro da ocorrência — observa a professora.
Integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo admite que a capacidade de investigação criminal da polícia é pequena para crimes de roubo e furto, devido ao volume de ocorrências e equipe reduzida.
— São crimes que acontecem em grande número e, evidentemente, não se tem uma estrutura capaz de dar conta disso. Há caminhos para que isso melhore. O principal deles é o aumento da confiança na polícia por parte da sociedade, quando a sociedade tem confiança, ela vai e registra. Se a confiança é baixa, as pessoas vão registrar se tiverem algum tipo de vantagem, em vista do documento da ocorrência para a comprovação da perda do bem — entende Ghiringhelli.
Uma das alternativas apontadas pelo pesquisador é repassar investigações desses crimes para a Brigada Militar, devido à estrutura disseminada, com atuação mais próxima da comunidade:
— A PM teria mais capacidade para documentar isso, coletar provas, identificar testemunhas. Hoje, quando a BM notifica um caso, tem de encaminhar para a delegacia e aí todo um procedimento que precisa ser iniciado, muito burocratizado e sem estrutura capaz de investigar de forma mais aprofundada.
Polícia pretende abrir delegacia especializada
A chefe da Polícia Civil, Nadine Anflor, reconhece que o órgão trabalha com prioridades em investigações para crimes com maior gravidade — como homicídio, feminicídio e latrocínio (roubo com morte). A delegada observa que roubos e furtos são "crimes com maior complexidade" e que o foco do órgão é em apurações "com maior viabilidade investigatória".
— Não são índices que gostaríamos — observa a chefe da polícia.
Um dos fatores para os baixos índices está na efetivo reduzido. Para tentar aumentar a resolutividade, a Polícia Civil quer abrir uma delegacia especializada para roubo de veículos. Com isso, essas investigações ficam concentradas em um lugar e não mais espalhadas pelas delegacias distritais. Além disso, mais de 400 agentes devem se formar em julho e diminuir o déficit de servidores.
Conforme a Secretaria da Segurança Pública (SSP), dos 6.251 inquéritos instaurados de homicídios em 2018, 80% (ou 5.019) foram remetidos à Justiça com indiciamento. Já nos casos de latrocínio (roubo com morte), o índice é maior, chegando a 93% — dos 170 casos de roubo com morte registrados no ano passado, 168 foram encaminhados ao Poder Judiciário.
A assessoria de comunicação da SSP enviou nota à reportagem na qual "ressalta que a comparação entre o número de ocorrências de um determinado tipo criminal em um período com o número de inquéritos remetidos desse tipo criminal não é estatisticamente válida". De acordo com a SSP, "em muitos casos há correção ou alteração do tipo criminal inicialmente informado quando do registro, o que pode resultar em distorção do dado pela comparação de fatores diferentes". Para a secretaria, o correto seria comparar inquéritos instaurados e remetidos.
Ainda conforme a SSP, "de qualquer forma, é importante ressaltar que a Polícia Civil sempre trabalha com vistas à repressão qualificada".