Havia 10 pessoas na casa de madeira na zona norte de Porto Alegre. Todas consumiam crack, segundo depoimento de uma testemunha que estava no local. Subitamente, Douglas Seelig de Fraga, 38 anos, entrou na residência. Segundos depois, três homens ingressaram na casa e passaram a gritar: "Polícia, todo mundo deitado no chão". Na sequência, começaram os tiros que deixaram um ferido e sete mortos — cinco homens e duas mulheres, entre elas, uma gestante.
O crime aconteceu em 19 de julho de 2018 e é considerado a maior chacina registrada na Capital neste século. Morreram Fraga — último a chegar na casa — Adriano Muller Guimarães, 35 anos, Breno Eli Silva de Freitas, 70 anos, Najara Katiane Schumacher Pereira, 30 anos, Jair da Luz de Souza, 49 anos, Vantuir Francisco Zanella Vieira, 39 anos, Rita Borba de Aguiar, 33 anos — grávida de oito meses.
GaúchaZH teve acesso ao processo com 1.043 páginas, que está em fase de instrução — que antecede o julgamento — e obteve detalhes do que aconteceu dentro da moradia. Para a investigação, foram ouvidas 33 pessoas e recebidas nove denúncias anônimas. Segundo a apuração, o alvo dos atiradores era Fraga. Ele teria passado nota falsa ao comprar drogas.
Além do ferido, outras três pessoas sobreviveram: dois homens e uma mulher. Um deles, foi "poupado" pelos criminosos. Antes de os disparos começarem, deram o aviso para ele deixar a casa.
Uma mulher de 29 anos estava atrás de uma porta e conseguiu escapar ao se atirar embaixo de uma mesa e se cobrir com cobertores e mochilas. Após os tiros, saiu correndo pela rua. O outro sobrevivente, um homem de 39 anos, também tentou procurar refúgio ao ver um dos criminosos entrando na casa com uma metralhadora. Ele acabou sendo "protegido" por uma das vítimas, que caiu sobre ele.
O homem ferido, de 31 anos, foi ouvido duas vezes, ainda no hospital. Aos policiais, contou que na hora "achou que fosse brincadeira". Vizinhos relataram à polícia que ouviram ao menos 20 tiros em um intervalo de dois minutos. Os sobreviventes e pessoas que passavam pelo local ajudaram a polícia a chegar nos três réus: Paulo César Feliciano Júnior, 19 anos, o Picolé; Émerson Dione da Rosa Barcelos, 21 anos, o Cabecinha; e James Whellinton Gouvêa da Silva, 20 anos, o Dida.
Detido no Presídio Central, o trio aguarda julgamento. O promotor Eugênio Paes Amorim, que acompanha o processo, acredita que os três devem ir a júri em 2020.
Barcelos foi denunciado em 20 de agosto do ano passado, enquanto Feliciano e Silva em 22 de outubro. Os três respondem por sete homicídios qualificados por motivo torpe (devido ao contexto de tráfico de drogas), uso de recurso que dificultou a defesa e meio que resultou perigo comum, devido à série de tiros.
Eles também foram denunciados por terem provocado aborto sem consentimento em Rita, no momento em que foi atingida. Além disso, foi computado aos três o crime de associação criminosa armada.
A quarta pessoa que participou do crime dirigindo o carro no qual o trio fugiu não foi identificada. Um vídeo mostra o deslocamento do veículo após a chacina.
Ficha extensa
Documentos anexados ao processo mostram que a ficha criminal dos três criminosos é extensa. Antes da chacina, Barcelos era suspeito de envolvimento em outros cinco homicídios, entre novembro de 2015 a junho de 2018. Ou seja, contando as sete vítimas assassinadas na casa da zona norte, pelo menos 12 pessoas teriam sido mortas com participação dele.
Já Feliciano foi apontado por suspeita de envolvimento em dois homicídios em 2016, quando ainda era adolescente. Ele foi o último dos três a ser preso, em 16 de agosto. Estava escondido em uma casa e, quando os policias se aproximaram, tentou fugir. Pulou uma janela, subiu um muro e conseguiu acesso a um telhado. Ao tentar caminhar por ali, acabou caindo após a cobertura ceder. Ainda tentou escapar pela porta da frente, mas foi preso. Na época, a delegada Luciana Peres Smith salientou que o homem era conhecido como "matador" no Passo das Pedras.
Silva é suspeito de ter atuado com os outros dois — em situações diferentes — em três homicídios.
Contraponto
Procurada, a Defensoria Pública — que representa os três réus — informou que o processo está em fase de instrução e que só irá se manifestar após esta etapa. Em ofício de 21 de novembro do ano passado, a defensora Ariane Ramos da Cunha Freitas Ritter salientou que os réus "não concordam com os fatos descritos na denúncia e provarão sua inocência no decorrer da instrução".
Além disso, a defensora pediu a revogação das três prisões por "não ter sido demonstrada a necessidade da segregação nem em que consistiria o alegado risco à ordem pública" e por ter sido considerada outras possibilidades de aplicação de medidas cautelares. A magistrada Tais Culau de Barros observou que a defesa "não trouxe nenhum fato novo capaz de ensejar a reconsideração das decisões" e que "não se vislumbra, diante das peculiaridades do caso, a suficiência de medidas cautelares mais brandas".
Em depoimento à polícia, Barcelos e Silva se mantiveram calados. O primeiro disse que só iria se manifestar em juízo e o outro pediu um advogado. Já Feliciano inicialmente se negou a falar, porém, acabou respondendo a algumas perguntas dos investigadores. Negou participação na chacina e salientou que não participava de nenhuma facção criminosa ou com tráfico de drogas.
No dia do crime, disse que estava na casa de sua avó, no bairro Restinga, na zona sul de Porto Alegre. Em relatório de investigação encaminhado à Justiça, a delegada salientou que o álibi apresentado por ele era "inverídico".
Cronologia
19 de julho de 2018
Por volta das 19h50min, três homens entram na casa e atiram. Seis pessoas morrem no local e dois homens são encaminhados para o hospital — um deles morreu em atendimento.
23 de julho de 2018
Sobrevivente presta depoimento à polícia em cama de hospital.
26 de julho de 2018
Polícia pede a prisão de dois homens pela chacina: a preventiva de Émerson Dione da Rosa Barcelos; e temporária de Paulo César Feliciano Júnior. Também pede mandado de busca e apreensão em endereços de quatro pessoas.
2 de agosto de 2018
Barcelos é preso.
20 de agosto de 2018
Barcelos é denunciado pelo Ministério Público.
4 de setembro
Sobrevivente que ficou ferido em chacina é novamente ouvido pela polícia. O homem confirmou que o local era um ponto de consumo de drogas, mas disse que havia regras no local. "Qualquer um que quisesse utilizar deveria levar sua própria droga e dividi-la com o proprietário da casa."
22 de outubro
Feliciano e Silva são denunciados pelo Ministério Público
21 de novembro
Defensoria Pública pede a revogação da prisão dos três réus. Uma semana depois, o Ministério Público se manifesta contrário ao pedido e, no dia 3 de dezembro, a Justiça decidiu manter os três presos.