— Eu não estava escalado para aquele time. Entrei de gaiato — recorda Rafael Mottin, 40 anos depois de se tornar uma das vítimas de um dos maiores sequestros em número de vítimas registrados no Rio Grande do Sul.
O sumiço de seis garotos, que saíram de casa para jogar uma partida de futsal, mobilizou a polícia gaúcha e de Estados como Santa Catarina, Paraná e São Paulo, e despertou a atenção da imprensa, inclusive fora do país. Por duas noites, os meninos ficariam trancados e acorrentados pelos pés em uma Kombi branca, em Gravataí. A mesma Kombi em que o time embarcou próximo da escadaria do Ricaldone, no bairro Moinhos de Vento, na Capital.
Era fim da tarde de 3 de novembro de 1977. Rafael, 13 anos, circulava de bicicleta quando viu cinco meninos com camisetas de time de futebol descendo a Rua Santo Inácio. O grupo caminhava em direção à escadaria. Mesmo de calça jeans, o garoto, fominha por futebol, escalou-se para o jogo. Só precisava deixar a bike em casa. Ansiosos, os meninos disseram para ele se apressar.
— Me esperem que já tô voltando — gritou antes de disparar em direção à Rua Félix da Cunha, onde morava. Juntos, Renato Padilla, 14, o irmão menor, Rogério Padilla, oito, Renato Rizzo e Alexandre Crespo, ambos com 14, e Edgardo Marques da Rocha Velho, 12, seguiram em direção à Marquês do Pombal.
Às 18h30min, Santino Ferreira da Silva, 29 anos, parou o veículo para que os garotos, sentados na escadaria, entrassem. Rafael, que tinha pedido uma carona ao irmão para não perder o jogo, foi o último a chegar. Alexandre estava no banco da frente, ao lado do condutor. Os outros cinco se amontoavam na parte traseira, onde só havia um banco no fundo da Kombi. O do meio havia sido removido. O que os meninos não sabiam é que o veículo, ano 1975, havia sido furtado dois dias antes, em uma garagem na Avenida Mauá.
Foi como uma aventura, um sonho. Uma coisa de criança. Ninguém teve no momento a dimensão do que se passou.
EDGARDO VELHO
uma das vítimas do sequestro
O combinado era que os garotos fossem até um ginásio da Brigada Militar, onde disputariam uma partida contra o time do filho de Santino, um auxiliar de serviço externo em uma empresa de construção, desempregado na época. O jogo havia sido arranjado durante mais de um mês nas ocasiões em que o sequestrador foi até o bairro observar os meninos jogar.
A disputa, que nunca aconteceria, foi adiada diversas vezes, até ser agendada para aquela quinta-feira. Quando a Kombi começou a se afastar do Hospital Militar, os garotos desconfiaram.
— Onde tu tá indo? — questionavam ao motorista, repetidas vezes.
— Vou pegar meu filho — dizia Santino.
— Onde mora o teu filho? — começaram a perguntar com a demora.
"Vocês entraram numa fria"
Com a insistência dos meninos, Santino entrou em um beco próximo da Avenida Assis Brasil e parou a Kombi. Virou-se na direção dos garotos, sacou um revólver — que ele contou depois ser feito de madeira e plástico preto — e anunciou:
— Gurizada, não tem jogo nenhum. Vocês entraram numa fria. Isso aqui é um sequestro!
Renato Padilla, hoje com 54 anos e executivo de vendas, relembra o pânico que tomou conta do grupo:
— Isso eu não esqueço. Foi o maior susto que levei na minha vida.
Alexandre, que estava na frente, saltou para a traseira da Kombi, com os amigos. Chegou a bater a cabeça na janela. Em meio à gritaria dos amigos, o caçula da turma, Rogério, tentava entender o significado da palavra sequestro.
— Não tinha ideia. Mas, pela reação dos outros, não era algo bom — diverte-se o dentista, hoje com 48 anos.
O cativeiro
Os meninos choravam, gritavam e se debatiam na Kombi. O trinco da porta havia sido removido para que não conseguissem escapar. A turma só começou a se acalmar quando Santino contou que estava sendo obrigado a fazer aquilo. Disse que era apenas o carcereiro e que os verdadeiros criminosos estavam com o filho dele. Não podia libertar os garotos porque estava sendo vigiado.
— Hoje mesmo, se der tudo certo, vocês serão liberados. Eles sequestraram meu filho. Eu tô desempregado. Mandaram fazer isso para conseguir dinheiro e dar para eles — contou.
A Kombi já estava preparada com correntes nos bancos. Os garotos foram presos, com cadeados, pelos pés. Santino usou um plástico preto para tentar cobrir os meninos. Dali, seguiu em direção à freeway. Na estrada, quando cruzavam por um carro, que dava sinal de luz, dizia que eram os outros criminosos.
— Viu, esses aí são os caras. Estão me cercando.
Os garotos, apavorados, acreditaram na história de Santino. Já era noite quando chegaram a Gravataí. O motorista saiu da freeway, cruzou por baixo dela, e entrou em uma estrada que levava a um matagal. Parou em uma clareira. Ali, com um papel na mão, passou a anotar o nome de cada um, o dos pais e os telefones de casa. Perguntava quantos carros tinham, se tinham casa na praia e na Serra.
Até hoje, os meninos acreditam que o objetivo de Santino era sequestrar somente um deles, mas acabou levando o time todo para não ser descoberto. Apavorado, quando chegou no cativeiro, Rafael começou a se lembrar das histórias de sequestros que tinha lido em revistas. Os relatos de pessoas levadas, que acabavam mortas.
— Para nossa sorte, o sequestrador não era um profissional.
Pedido de resgate
Santino saiu ainda na noite de quinta-feira para telefonar a primeira vez para as famílias. Às 23h30min, os pais receberam a ligação, informando que os meninos tinham sido raptados. O sequestrador exigiu 2 milhões de cruzeiros (equivalente a cerca de R$ 290 mil) para devolvê-los. O criminoso faria contato no dia seguinte, para combinar o pagamento. Em um Fusca branco, com os faróis altos ligados na direção da Kombi, ele chegou de volta à clareira onde ficaram os garotos. Aproximou-se da Kombi e avisou:
— Os caras estão ali. Querem negociar com eles ou comigo? — indagou aos meninos.
— Contigo, claro — responderam assustados.
Na manhã seguinte, Santino levou os seis até um rio para que eles se lavassem. Deixou que ficassem soltos, mas avisou que havia pessoas nas árvores observando o que eles faziam.
— Nós tínhamos certeza de que havia mais pessoas — recorda Renato Padilla.
Os garotos até tentaram jogar futebol com uma bola comprada por Santino, mas estavam desanimados. As pernas bambas, sem vontade. O sequestrador levou refrigerantes, água e salsichão com pão, mas eles não conseguiam comer.
— Tinha aquela angústia, aquele medo de acabar mal. A gente jogava bola, mas quando se dava conta, chorava — lembra Rafael.
Naquele dia, com Alexandre, Rogério e Renato Rizzo dentro do mesmo Fusca, voltou para Porto Alegre. Seguiu até um posto de combustível, na Avenida Assis Brasil, onde usou um telefone público para fazer novo contato com as famílias. De tanto chorar, Rogério, o único que usava óculos, estava com os olhos irritados. Santino comprou um colírio em uma farmácia. De volta a Gravataí, quando anoiteceu outra vez, os meninos foram para dentro da Kombi. Desta vez, não foram acorrentados. Santino saiu sozinho, dizendo que buscaria o dinheiro e depois libertaria os garotos.
O fim do cárcere
Ao amanhecer, por volta das 5h, os meninos decidiram que era o momento de fugir. Eles já estavam desconfiados de que a versão do sequestrador, sobre ser somente o carcereiro, podia não ser verdade. Saíram da Kombi e caminharam pelo mato até chegar a uma estrada. No trajeto, encontraram o rio, onde viam pessoas e casas do outro lado.
— Vamos nadar até lá — planejaram.
Rogério não sabia nadar, só boiar. Acharam melhor não correr mais um risco e decidiram seguir a fuga pela estrada. No trajeto, encontraram Santino, que voltava caminhando, com duas sacolas. Ele tinha recebido 1.730.000 cruzeiros (equivalente a cerca de R$ 250 mil) pelo resgate. Ao ver os garotos levantou o polegar, em sinal de positivo.
— Deu tudo certo, vou pegar a Kombi e levar vocês para casa — avisou.
— Vamos entrar de novo nessa Kombi? — se questionavam os garotos.
Tinha aquela angústia, aquele medo de acabar mal. A gente jogava bola, mas quando se dava conta, chorava
RAFAEL MOTTIN
uma das vítimas do sequestro
Sem saber exatamente onde estavam, por fim decidiram aceitar a carona do sequestrador. Exigiram como garantia que ele entregasse o trinco que tinha sido retirado.
"Ele vai nos matar agora. Vão chegar os outros e vão nos matar", pensava Renato Padilla em silêncio, para não apavorar os demais.
Como prometido, Santino deixou que os meninos desembarcassem em Gravataí. Os seis entraram em um táxi, que estava saindo de um posto de combustíveis. O sequestrador entregou 300 cruzeiros para que eles pagassem a corrida. Ao taxista, os meninos disseram que estavam em um acampamento. Pediram que ele seguisse direto para o Moinhos de Vento. O taxista achou a história estranha, mas aceitou fazer a corrida. No trajeto, a turma discutia o que aconteceria com eles quando voltassem, após dois dias fora de casa.
— Vai ser uma semana de castigo! — cogitavam.
O retorno dos guris
Quando o Corcel ingressou na Rua Santo Inácio, às 6h53min daquele sábado, os garotos viram uma multidão em frente à casa da família Rizzo. Os dois Renatos dividiam o banco da frente, enquanto os outros quatro se amontoavam no banco de trás. Renato Padilla, que mal cabia dentro do veículo, estava com parte do corpo para fora. Quando se aproximaram, começaram os aplausos.
— Foi emocionante. Não imaginava aquilo tudo — recorda o executivo de vendas.
Assim que o táxi parou, repórteres, fotógrafos, familiares e policiais cercaram o veículo. Enquanto o irmão mais velho era puxado por um policial de dentro do carro pela janela mesmo, o pequeno Rogério ainda se perguntava o que teria acontecido para ter tanta gente ali. Aos poucos, o menino descobriu que o motivo era eles.
— Começou a cair a ficha do que era um sequestro — conta o hoje dentista.
Após ouvir o relato das crianças de que Santino estava sendo obrigado a fazer o sequestro, o delegado Paulo Seelig, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPs), concluiu:
— Ele fez tudo sozinho. Não tem ninguém com ele — disse aos policiais na sala da casa da família Rizzo.
Ele estava certo. Santino admitiria mais tarde, ao ser preso, que não havia ninguém mais envolvido. Quando os meninos voltaram, no entanto, a polícia ainda não sabia quem era o sequestrador, que tinha fugido com o dinheiro do resgate. O valor reunido pelas famílias acabaria sendo recuperado. A partir do relato dos garotos e de testemunhas, foi produzido um retrato falado, muito parecido com a fisionomia de Santino.
Mas foi uma fotografia descoberta por três repórteres de Zero Hora e da Rádio Gaúcha que levou a polícia ao nome do sequestrador. Sérgio Lima, Cláudio Brito e Roberto Hirtz foram os primeiros a conseguir ter acesso a uma fotografia de Santino. A partir desta imagem a polícia fez os primeiros reconhecimentos com testemunhas, que identificaram Santino.
Prisão no café
Quatro décadas após a prisão de Santino Ferreira da Silva, o sequestrador dos meninos do Moinhos, o policial militar aposentado Wilmar Alves da Silva, 78 anos, ainda guarda a braçadeira que usava naquela noite de chuva. Integrante da Polícia Rodoviária Estadual, em 8 de novembro de 1977, ele estava de serviço em um dos postos da Tabaí-Canoas, em Porto Alegre, quando um homem entrou no local. Agitado, contou ter visto nas margens da estrada alguém parecido com a foto do sequestrador.
O sargento e o colega, Manoel Pires, entraram na Caravan e seguiram em direção a Porto Alegre, com o giroflex desligado para não chamar atenção. O homem que havia avistado o suspeito seguia um pouco à frente em outro veículo. O combinado era de que ele reduziria a velocidade quando cruzasse pelo possível sequestrador, mas ele passou reto, sem pisar no freio. Do outro lado da rodovia, os policiais viram um homem caminhando com as roupas molhadas e uma mala na mão. Era Santino.
No volante da Caravan, Wilmar deu meia volta sobre a pista. Assustado, Santino correu em direção a uma cerca, perdeu a sacola que carregava e se embrenhou no mato. Os policiais foram atrás dele e juntaram o que parecia ser uma máquina de escrever. Era na verdade uma bolsa com o resgate que havia sido pago três dias antes. O dinheiro foi recuperado quase na totalidade. Só faltaram alguns trocados, que Santino disse ter usado para um café.
Os policiais pediram reforço e as buscas se concentraram na área, com uso de cães. Era a primeira vez que a polícia chegava perto do sequestrador. Cerca de uma hora depois, com as roupas molhadas e com frio, Wilmar e o colega decidiram tomar um café em um restaurante a cerca de um quilômetro dali. Quando entravam no local, viram um homem no balcão, de costas para a porta. Santino, que tinha acabado de jantar, virou-se na direção dos policiais e fingiu sacar uma arma.
— Não se mexe que eu vou atirar — avisou Pires.
— Não atira. Ele está desarmado — alertou o sargento, ao observar que não havia nada na cintura do sequestrador.
— Pensei em reagir à prisão para que a polícia me executasse — contou o sequestrador em entrevista à imprensa no dia seguinte.
Santino disse aos policias que o motivo do sequestro era o fato de que o filho estava para nascer e não teria o que comer, enquanto os meninos do Moinhos inclusive falavam inglês.
— Eu não imaginei que sentiria uma emoção tão grande e ia causar um mal tão grande — disse ainda à imprensa ao ser entrevistado em uma coletiva.
Cinco meses depois da prisão de Santino, o sargento conheceria Erena Iaroseki, que se tornaria sua esposa, com quem vive há 39 anos. Alguns anos depois, ao buscar a mulher na Santa Casa, encontrou Santino. Ele trabalhava como auxiliar de serviços-gerais do hospital, enquanto ainda cumpria os dez anos de prisão.
— Conversamos algumas vezes. Ele até agradecia por ter sido a gente a prender ele.
No mesmo serviço, Santino se encontrou com o pai de um dos meninos sequestrados. Constrangido, desculpou-se mais uma vez. Ele morreu na Santa Casa, em 1984, de cirrose.
Para o sargento, aposentado há 30 anos, a prisão do sequestrador foi a história que marcou sua carreira. Quarenta anos depois, espera ainda reencontrar os meninos, que só viu uma vez em um almoço.
— Queria encontrar com eles de novo, saber como estão — comenta.
O reconhecimento
Após a prisão de Santino, o reconhecimento foi feito pessoalmente pelos meninos. Quando ingressaram na sala, os garotos cumprimentaram Fuscão, como tinham lhe apelidado. Chegaram a perguntar ao sequestrador quando sairia o jogo combinado.
— Não me queiram mal. Minha tristeza maior seria se vocês me condenassem — disse.
— Da maneira como ele nos tratou não houve nenhum tipo de ódio. Era uma pessoa que estava passando por dificuldade. Era uma pessoa boa, mas perdeu a cabeça — recorda Rafael.
Santino conquistou a confiança dos garotos aos poucos. Durante cerca de um mês, tinha frequentado a Rua Santo Inácio, onde eles jogavam. Na rua pacata, os meninos utilizavam os portões das garagens das residências como goleiras. Santino saía com frequência de uma agência de propaganda onde os garotos acreditavam que ele trabalhava. O homem puxava conversa. Chegou a bater bola com a turma algumas vezes.
Ter passado por essa experiência na infância me tornou um adulto mais cuidadoso com a segurança
ROGÉRIO PADILLA
uma das vítimas do sequestro
— Ele fingia que ia nessa agência. E quando saía ele ficava puxando conversa. Por isso demos confiança para o cara — conta Renato Padilla.
— Não querem jogar com o meu filho? — propôs Santino um dia. Ele ficou de telefonar para um dos garotos e agendar o jogo.
— Ele foi pegando a confiança da gurizada — conta Rogério.
A história contada por Santino, de que o filho havia sido sequestrado, não convenceu a todos, mas amenizou a revolta dos garotos durante as 36 horas de cativeiro. O sequestrador sempre prometeu que tudo acabaria bem.
— Eu vou soltar vocês e soltar meu filho — dizia.
— Ele não nos tratava com agressividade, mas o fato de nos deixar duas noites dentro de um mato, com correntes, sendo seis crianças, já foi uma violência — afirma Rogério.
Quando Santino contou que o verdadeiro motivo do sequestro era conseguir dinheiro para sustentar o filho, que ainda não havia nascido, os meninos se comoveram.
— A gente ficou com uma certa pena dele, mas depois vimos o sofrimento dos pais e caiu a ficha — conta Edgardo.
O time
Renato Rizzo
54 anos
É formado em engenharia e diretor de uma construtora.
Renato Padilla
54 anos
Hoje é executivo de vendas.
Rafael Mottin
53 anos
É advogado e continua fominha por futebol.
Edgardo Velho
52 anos
É veterinário e agropecuarista.
Rogério Padilla
48 anos
O caçula da turma hoje é dentista.
Alexandre Crespo
Foi leiloeiro e narrador. Era o extrovertido da turma.
Morreu em 2015, aos 51 anos.