Pesquisa do Datafolha sobre estupro chamou atenção, na semana passada, para uma informação alarmante: um terço dos entrevistados culpa as próprias vítimas. Mas há outros dados preocupantes, como o fato de que o "debate sobre violência sexual continua travado por uma série de tabus".
É exatamente esse cenário que a reportagem constatou ao conversar com uma jovem de 20 anos violentada, dentro de uma academia, na Capital. Traumatizada, ela demorou cinco meses para criar coragem e registrar a ocorrência.
"Ser estuprada desestabiliza tudo ao teu redor. Passei o verão inteiro – minha estação favorita – sem distinguir o que era dia e o que era noite. Me senti morta por muito tempo. Fiquei meses sem ter relação sexual com meu namorado. Até hoje não me sinto bem quando alguém me toca, mesmo numa braço. Entrei em depressão, não queria ver ninguém nem sair de casa. Ainda não consigo sair sozinha.
Não pude contar para o meu pai, pois ele é uma pessoa mais antiga e não entenderia que a culpa não foi minha. Eu mesma cheguei a me questionar se eu tinha sido culpada."
O depoimento é de uma jovem de 20 anos, da Capital, chamada pelo nome fictício de Ana. Ela foi estuprada pelo professor da academia em uma sessão de massagem terapêutica. Ela já havia feito sessões com o namorado sem sofrer constrangimento.
Naquela manhã de dezembro, o namorado não pôde ir, mas ela acreditava na índole do professor e não imaginava que seri asurpreendida pela violência sexual.
– Entrei em estado de choque, não conseguia me mexer. Não esperava – relata.
O namorado
Ana contou sobre a violência ao namorado. Ele avisou ao professor que buscaria a Justiça. Um advogado do professor tentou negociar um acordo insinuando que o interesse era financeiro. A jovem demorou cinco meses para criar coragem e registrar o boletim de ocorrência.
O acompanhamento psicológico que recebeu no Centro de Referênciada Mulher Márcia Calixto por indicação de uma amiga, a repercussão do estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro e a preocupação com outras alunas que podem se tornar vítimas a encorajaram.
– Entrei e saí várias vezes da delegacia antes de tomar coragem. Tem que reviver tudo aquilo. Tive que retornar depois de um mês para fazer o relato completo e ainda preciso fazer o laudo psiquiátrico. Eu quero continuar com o processo, mas entre querer e conseguir existe uma distância enorme – desabafa.
Com determinação
Embora ainda esteja abalada com a violência que sofreu, Ana está determinada a levar a denúncia adiante. Como o tempo passou, o exame físico teve de ser substituído pela perícia psíquica. Segundo a delegada Tatiana Bastos, da Delegacia da Mulher da Capital, a perícia pode demorar até seis meses. Mas, se a autoria é conhecida,o agressor e as testemunhas já podem ser ouvidos.
A reportagem ouviu a história da jovem e mostra o que ela pensa a respeito da pesquisa divulgada pelo Datafolha sobre a violência contra a mulher:
Reportagem – O que te encorajou a denunciar?
Ana – Depois de fazer o tratamento psicológico e do caso da menina do Rio, eu cheguei à conclusão de que tinha que fazer o BO. Não só por mim, mas por todas que passam pelo que passei. Muitas pessoas não conseguem falar, conviver e se manter vivas depois disso.
Reportagem – Você se sentiu amparada?
Ana – Recebi amparo (dos profissionais), mas é muito doloroso. Quando tu vai na DP tu tens que reviver aquilo de novo. Tu ficas no aguardo, com uma lacuna aberta na tua vida que tu tens que conviver. Acho que não superei direito e não sei se um dia vou conseguir superar completamente.
Reportagem – É muita burocracia?
Ana – Há problemas de estrutura e investimento. Acho que temos parlamentares que reforçam a cultura do estupro. Quem faz as leis são homens que não se preocupam em reforçar essa estrutura.
Reportagem – O que você achou da constatação da pesquisa de que um terço pensa que a vítima que se dá o respeito não é estuprada?
Ana – É um absurdo, mas tem algo por trás disso. A cultura do estupro tem muito a ver com a sexualização das mulheres, apresentadas como objeto em propagandas. Eu não estava de shorts nem de saia, estava pagando pelo serviço e ia trabalhar depois. Não sei qual é o critério das pessoas sobre "se dar o respeito". Eu tenho que ter medo de sair da faculdade às 22h e eu me dou o respeito porque estou em aula. Mas isso não me livra de sofrer um abuso. Isso não me livrou.
Diário - O que você acha que precisa mudar?
Ana - Acho que as mulheres precisam estar em mais cargos de representatividade. Precisa haver instrumentos que digam que a Delegacia da Mulher precisa oferecer um amparo maior às vítimas. Também precisa se pensar em mecanismos de prevenção. Não adianta fazer algo só depois que matou e estuprou. É preciso mudar a cabeça das pessoas através da educação e a mídia tem um papel grande de transformação. Eu posso ter uma discussão enorme com meu pai, mas ele consumiu a mesma ideia durante 50 anos, dificilmente vou mudar a cabeça dele.
Quando falamos de estupro, não estamos falando sobre sexo e sim sobre violência. Mas aí vão me dizer que o homem tem "necessidades". O homem que me estuprou não podia me ver ali na maca sem meu namorado? Ele tinha que fazer aquilo? Essa discussão tem que vir desde criança. Estamos escrevendo um roteiro para as crianças quando dizemos que os meninos não podem chorar e devem ser "pegadores". Vamos continuar criando estupradores em potencial? E vamos continuar criando vítimas em potencial, ensinando as meninas a não se impor?
85% das mulheres têm medo
A pesquisa divulgada pelo Datafolha constatou que o "debate sobre violência sexual continua travado por uma série de tabus e disputas ideológicas", o que dificulta a melhoria no atendimento às vítimas. O levantamento feito com 3,6 mil pessoas em 217 municípios constatou que 85% das mulheres têm medo de ser vítimas de agressão sexual. A pesquisa revelou ainda que 37% dos entrevistados acredita que a mulher é culpada pela agressão sexual sofrida.
Entre as justificativas estão a roupa que ela usa, o fato de andar sozinha em locais considerados inapropriados e a alegação de que o homem não consegue controlar seus "instintos naturais".
Ensinar os meninos
Por outro lado, 91% dos entrevistados concordam que é preciso ensinar os meninos a não estuprar. O Fórum Brasileiro avalia que o resultado aponta para a ideia de que a educação sobre igualdade pode alterara cultura machista, responsável pela reprodução da violência contra a mulher.
A psicóloga Ester Rodrigues, que atende mulheres vítimas no Centro de Referência da Mulher Márcia Calixto, também aponta a violência sexual como um problema cultural.
– Precisamos mudar isso, fazer com que as mulheres sejam protagonistas da própria história. Elas estão em busca, mas sabemos que não é fácil devido à questão cultural e social. A mídia, as letras das músicas e as propagandas ainda apresentam a mulher como objeto sexual – aponta.
A realidade
Para a delegada Tatiana Bastos, da Delegacia da Mulher de Porto Alegre, a pesquisa apenas reproduz o que outros estudos já apontaram.
– Ainda vivemos numa sociedade patriarcal e machista, na qual crimes sexuais são comumente justificados pelo comportamento anterior da vítima ou pela sua maneira de vestir. A cultura do estupro ainda está presente no senso coletivo da população, que não raras vezes culpabiliza a mulher, transferindo para ela a responsabilidade pela violência que sofreu.
Segundo ela, a consequência disso é o aumento da subnotificação e a impunidade dos agressores.
– Precisamos urgentemente desconstruir estes estereótipos de gênero, incentivando a denúncia, empoderando nossas mulheres e responsabilizando criminalmente estes abusadores, pois nada legitima um crime de estupro.
A delegada destaca a importância de procurar a polícia, preferencialmente uma delegacia especializada:
- A DP se encarregará de registrar o boletim de ocorrência e encaminhara vítima a exame de corpo de delito, buscando provas do crime e a responsabilização do agressor.
- Em seguida, encaminhará o acolhimento à vítima, atendimento para evitar doenças e gravidez, eficazes até 72 horas após o abuso, e acompanhamento psicológico.