Durante cinco meses, a reportagem da Rádio Gaúcha investigou uma rede de médicos, enfermeiros, agenciadores e seguranças que chegavam a realizar cinco abortos por dia em uma clínica de luxo em Porto Alegre. Além da Capital gaúcha, a organização criminosa tem um núcleo em São Paulo. O trabalho resultou em uma operação deflagrada na tarde desta quarta-feira (28) pela Polícia Civil.
Os agenciadores eram responsáveis por encaminhar pacientes para a clínica, localizada no Bairro Floresta, em Porto Alegre, e também pela comercialização de medicamentos abortivos em vários estados do País. Gravações feitas pela reportagem, que se passou por pessoas interessadas no serviço, mostram como a quadrilha agia. Nos áudios, uma agenciadora fala que a clínica é segura e de luxo:
Repórter: É onde mesmo?
Agenciadora: Não sei te dizer onde fica bem a clínica. Tu vai em um dia marcado só para fazer, pois eles não têm esse entra e sai de gente.
Repórter: Mas quem nos busca?
Agenciadora: Tu pode vir aqui em casa e o Jean te busca ou pode ir no shopping. Tu acompanha tua namorada, fica na sala de espera, é tudo alto padrão, desde mármore no chão. Sempre tem um casal saindo e vocês entrando, mas não tem aglomeração de gente, fica tranquila.
Repórter: Então eu encontro ele no shopping?
Agenciadora: Sim, o que acontece: quando tu chegar tu me liga, eu ligo para ele, ele busca vocês e leva até a clínica. Eu não dou endereço da clínica para as clientes não passarem na frente, mas o local é discreto e de luxo. É a pessoa que vai te levar, mais duas mulheres que tu vai ver lá. Imagina se eu ia me envolver em algo se não fosse de total confiança.
Ouça:
A reportagem manteve contato por cinco meses com os agenciadores da clínica. A quadrilha marcava os procedimentos com os pacientes por telefone e pelo Facebook. As clientes interessadas em fazer o aborto tinham duas opções: ou seriam recebidas em um shopping da Capital, e dali encaminhadas até a clínica; ou iriam até a casa de uma das líderes da quadrilha na zona sul da cidade, e de lá seriam transportadas por um motorista até a clínica.
Os agenciadores não falavam para as clientes onde faziam os procedimentos. O valor cobrado chegava a R$ 5 mil por aborto e apenas um acompanhante poderia ir junto com a grávida até a clínica.
Em outra ligação, a agenciadora detalhou que o médico responsável pelos procedimentos é um obstetra experiente:
Repórter Tem um médico lá né?
Agenciadora: Tem. Mas, vou te dizer: tu não vai ver o médico, tu entra e só vê as assistentes, tu vai ver bem lá.
Repórter: O médico é experiente?
Agenciadora: Nossa eles estão há cinco anos no mesmo local, não é um louco varrido. Mas, por ele ser médico, eu já digo que vocês não vão ver ele. Vocês vão conversar só com a equipe médica, nem eu sei quem é o médico. Ninguém sabe quem é o médico, pois ele não é cassado, ele tem CRM, médico que atua, tanto que tem duas casas, uma é para o médico fugir. Uma denúncia, ele sai ileso.
Repórter: Ele é ginecologista?
Agenciadora: Ele é obstetra
Ouça:
A mulher, que se identificou como Eva, contou detalhes dos procedimentos realizados na clínica. Ela revelou que os abortos eram feitos no turno da tarde e que o médico trabalhava de terça a sexta-feira. Segundo a agente, o grupo estava desde 2008 no mesmo local e chegava a fazer cinco abortos por dia.
Com quadrilha também seria possível comprar remédios abortivos por R$ 1,3 mil. Os medicamentos, além de serem adquiridos facilmente em Porto Alegre, também eram encaminhados para outros estados, como Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
A reportagem foi até o shopping da Capital indicado pela agenciadora e seguiu seguranças da quadrilha. Em seguida, foi descoberta a localização da clínica, na Rua Santo Antônio, no Bairro Floresta.
Uma faixa indicava que no local funcionava uma clínica de massoterapia. Uma placa detalhava que os atendimentos eram realizados apenas por telefone. Na frente, um segurança, chamado Luiz, cuidava da clínica. Ao avistar uma grávida, ele encaminhou a mulher até a casa.
A reportagem bateu na clínica. A atendente afirmou que as informações eram repassadas somente pela manhã.
A agenciadora que conversou com a reportagem, sem saber que era gravada, confirmou que a clínica chegou a ficar duas semanas sem abrir porque o médico andava desconfiado depois do fechamento de clínicas de aborto no Rio de Janeiro. Ela detalhou como era feito o aborto na clínica:
Agenciadora: Eu vou te dizer que aqui está todo mundo com medo da polícia. Eu espero sinceramente que o médico volte a trabalhar como antes, ele ficou atordoado com as prisões no Rio de Janeiro. O problema é que ele atua e tem CRM bom, então...
Repórter: Ele é ginecologista?
Agenciadora: Ele é obstetra. Mas, a equipe médica não vai te dizer quem é ele, vai ser feito sedação e tu não vai ver ele.
Agenciadora: não fica com medo, não tenho como consumir contigo e com teu namorado. Acontece, como aconteceu no Rio, eles mataram a guria, porque lá não eram profissionais, eles deveriam ter mandado a guria para o hospital.
Ouça:
A mulher ainda tentou tranquilizar a suposta paciente afirmando que a clínica era de luxo e que o procedimento do aborto era realizado com os melhores equipamentos.
Agenciadora: Eu trabalhei uma época, quando tinha ali no centro, lá sim era povão. Lá também era médico. Aqui tem sala de recepção, com ar-condicionado, é coisa de outro mundo, é para quem tem dinheiro. Eles são de luxo e precavidos. Não é centrão, tu só entras se tem hora marcada.
Ouça:
A reportagem entrou em contato com uma paciente que realizou o aborto na clínica do Bairro Floresta. A jovem, que não quis se identificar, confirmou que a paciente faz o procedimento sem ver o médico.
Paciente: Eu tentei de tudo: chás abortivos, o tal de remédio e depois procurei a clínica. Cheguei no local, fiz o pagamento adiantado e duas mulheres te preparam, elas te sedam e quando tu está quase dormindo tu vê entrando o médico, mas tu não consegue saber quem é. Em nenhum momento eu vi quem fez. Acordei um pouco depois, vestida e em uma cadeira, eles me deram um lanche e eu fui para casa.
Ouça:
Desde 1998, a comercialização do remédio utilizado, conhecido como Cytotec, é proibida no Brasil. A casa onde está localizada a clínica que a reportagem investigou está registrada no nome de Neide Maria Ibias da Silva, que já foi presa em flagrante em 1994 pelo crime de aborto. Na época, a Clínica funcionava no Centro de Porto Alegre. Conforme o delegado Wagner Dalcin, naquela ocasião o crime foi descoberto em flagrante pela polícia.
Atendimento médico após abortos
De acordo com a Secretária Estadual da Saúde, apenas neste ano 5.343 mulheres buscaram atendimento médico por complicações decorrentes de abortos espontâneos e ilegais no Estado. Em todo o Brasil, 196 mil mulheres procuram atendimento por complicações.
Com base nesses dados, o Ministério da Saúde estima que ocorram 800 mil abortos inseguros no País ao ano. O aborto é permitido por lei em casos de risco de morte para a mãe, estupro e quando o feto não tem cérebro.
Veja imagens da clínica: