A imagem do médico urologista André Berger sentado na cadeira, comandando um equipamento com as mãos e acompanhando as cenas em uma tela, facilmente remete à lembrança de alguém jogando videogame. Há, no entanto, uma grande diferença entre as duas atividades: em vez de guiar um personagem por cenários fictícios, os movimentos do cirurgião coordenam ferramentas que estão dentro do abdômen de um paciente e serão responsáveis pela retirada de toda sua próstata.
Para a prostatectomia radical realizada no Hospital Moinhos de Vento (HMV), na manhã da última terça-feira (24) e acompanhada pela reportagem de GZH, Berger utilizou um robô chamado Da Vinci XI, que conta com quatro braços bem flexíveis. Esses membros suportam os instrumentos necessários para a cirurgia, como a câmera, pinças e tesoura, e são inseridos no paciente, através de pequenos cortes. O comando do equipamento é feito no console, onde há um assento, controles e um visor que disponibiliza imagens tridimensionais.
De acordo com o especialista, que é coordenador do Núcleo de Robótica da instituição de saúde, as cirurgias robóticas oferecem mais precisão e alcançam melhores resultados, principalmente na urologia — especialidade que mais utiliza essa tecnologia em seus procedimentos.
— A cirurgia robótica ajudou muito no tratamento da doença de próstata, porque ela fica localizada em uma área de muito difícil acesso, na pelve, atrás desses ossos. Mesmo com um corte grande, é difícil chegar com a mão e enxergar. A próstata é uma estrutura oval e os tecidos em sua volta são superimportantes para manter a continência urinária e a potência, por isso, precisamos de uma visualização excelente. E o robô nos dá uma visão em três dimensões, magnificação de 15 vezes e flexibilidade nas mãos — explica Berger, ressaltando que é possível fazer um movimento de quase 360 graus com os instrumentos do robô.
Essa flexibilidade também é importante para ajudar a preservar o que está em volta da próstata, reforça o profissional. Em uma cirurgia aberta tradicional, por exemplo, a chance de manter o controle urinário é de cerca de 70%, passando para 100% com o uso do robô. Em relação à manutenção da potência, que é a capacidade de ereção, a porcentagem aumenta de 50% a 60% de possibilidade para 90%. O tempo de uso de sonda na bexiga também diminui de duas semanas para cinco dias.
— É uma diferença absurda, mas o robô não é autônomo, ou seja, não faz nada sozinho. É uma interface entre o cirurgião e o paciente. Então, a experiência do médico tem muito a ver com os resultados. Não adianta fazer uma cirurgia robótica com um cirurgião que não tem experiência nenhuma, porque o paciente estaria se expondo a uma tecnologia que aquele cirurgião não sabe usar — afirma.
Assim como uma cirurgia tradicional, a robótica envolve uma equipe numerosa de profissionais, como outros cirurgiões (além do que opera o robô), médicos especialistas, enfermeiros e técnicos de enfermagem, que atuam antes, durante e depois do início efetivo do procedimento. Por volta das 7h, quando a reportagem entrou no Centro Cirúrgico do Hospital Moinhos de Vento, funcionários organizavam a sala para a operação, cobrindo os braços do robô com um saco esterilizado.
É uma diferença absurda, mas o robô não é autônomo, ou seja, não faz nada sozinho. É uma interface entre o cirurgião e o paciente. Então, a experiência do médico tem muito a ver com os resultados. Não adianta fazer uma cirurgia robótica com um cirurgião que não tem experiência nenhuma.
ANDRÉ BERGER
Coordenador do Núcleo de Robótica do Hospital Moinhos de Vento
Depois, ocorreu o preparo do paciente — momento que não foi acompanhado pela reportagem. No retorno à sala, às 8h, os braços do robô já estavam inseridos no homem, que estava sedado e coberto. O equipamento também já estava programado — há um display onde se seleciona em que parte do corpo será feita a cirurgia, indicando ao robô as configurações necessárias.
Berger entrou na sala, sentou-se em frente ao console e começou a operação. Retirou-se cerca de uma hora e meia depois, tendo feito a prostatectomia radical, uma reconstrução entre bexiga e uretra, além de uma correção de hérnia abdominal, que não estava prevista, sem nem precisar tocar no paciente.
— Como o robô tem essa flexibilidade, conseguimos fazer essas reconstruções e reconexões entre os órgãos de maneira muito mais precisa. Na cirurgia da próstata, retiramos o órgão e ficamos com um gap entre a bexiga e a uretra. Então, precisamos levar a bexiga até a uretra e o robô nos ajuda muito nisso, por causa dessa precisão e delicadeza de movimento — esclarece.
Benefício em diferentes especialidades
Apesar do destaque na urologia, a cirurgia robótica pode ser utilizada em diferentes especialidades, trazendo os mesmos benefícios de precisão e melhor recuperação dos pacientes. O Hospital Moinhos de Vento já fez quase 3 mil procedimentos do tipo e conta com quatro robôs: o Da Vinci e o Versius, para cirurgias múltiplas (como torácica e de cabeça e pescoço), o Rosa e o Cirq, para ortopedia e neurocirurgia, respectivamente.
Para esclarecer o conceito desse tipo de procedimento, André Bigolin, coordenador do Serviço de Cirurgia Robótica e do Centro de Formação em Cirurgia Robótica da Santa Casa de Porto Alegre, estabelece uma analogia com os aparelhos celulares:
Estávamos acostumados com a cirurgia por vídeo, em que conseguimos uma boa recuperação, com menos dor, mas a robótica agrega precisão e movimentos que não conseguíamos. Quando tenho a tecnologia, consigo preservar a segurança mesmo em casos mais desafiadores.”
ANDRÉ BIGOLIN
Coordenador do Serviço de Cirurgia Robótica da Santa Casa de Porto Alegre
— Estávamos acostumados com a cirurgia por vídeo, em que conseguimos uma boa recuperação, com menos dor, mas a robótica agrega tecnologia, precisão e movimentos que não conseguíamos com a laparoscopia. É como se fosse um celular, que inicialmente fazia e recebia ligações, mas quando começamos a agregar tecnologia, passou a fazer coisas incríveis.
Bigolin cita que todas as cirurgias intracavitárias, como as urológicas, ginecológicas, oncológicas, torácicas, abdominais e bariátricas, podem ser realizadas com robô. Já a decisão de quem pode passar por esse tipo de procedimento é compartilhada entre médicos e pacientes. Para exemplificar a amplitude de pessoas aptas, comenta sobre uma operação que fez em um paciente que já tinha passado por diversas cirurgias abertas, utilizando o robô para garantir “um procedimento mais tecnológico e menos invasivo”.
— Quando tenho a tecnologia, consigo preservar a segurança mesmo em casos mais desafiadores. O importante é que as necessidades daquele paciente sejam sempre valorizadas e que ao final do processo tenhamos uma probabilidade maior de oferecer tudo o que ele precisa — ressalta o coordenador do serviço da Santa Casa, acrescentando que especialidades menos comuns, como cabeça e pescoço, plástica e otorrinolaringologia, também estão fazendo uso de cirurgias robóticas.
O serviço na Santa Casa começou em 2021 e, desde então, já foram realizados mais de mil procedimentos, uma média de 60 a 70 por mês. Bigolin destaca que, na instituição, múltiplas especialidades atuam com o robô Da Vinci, inclusive a pediatria. Para o especialista, a expectativa é de que o uso de robô se torne cada vez mais popular.
— É um caminho sem volta para todo cirurgião que quer entregar o melhor para seu paciente. Um cirurgião comprometido com os melhores resultados não pode ficar de fora dessa. Hoje em dia, muitos buscam a capacitação em cirurgia robótica mesmo durante a residência médica, para já saírem capacitados para isso — diz Bigolin.
A tecnologia no SUS
De acordo com os especialistas, o uso de robôs em cirurgias não tem cobertura completa pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Ou seja, os pacientes precisam arcar com os custos.
— Nos convênios, o paciente paga o uso do robô, a “diferença” do valor da cirurgia. No SUS, como o paciente não paga nada, os tratamentos feitos com robôs são todos por meio de doações, envolvendo ensino e pesquisa — aponta André Bigolin, da Santa Casa.
Questionado sobre a possibilidade de incorporação desse tipo de procedimento na rede pública, o Ministério da Saúde informou que “muitos estabelecimentos de saúde realizam procedimentos cirúrgicos oncológicos roboticamente assistidos pelo SUS, por meio de fomentos de pesquisas, como o Instituto Nacional de Câncer do Rio de Janeiro (Inca)”.
Segundo a nota, o Inca foi a primeira unidade da rede pública de saúde a fazer cirurgias robóticas: “O robô Da Vinci, adquirido em 2012, já realizou cerca de 1,5 mil cirurgias até maio de 2023. Atualmente, 23 cirurgiões são capacitados para fazer cirurgia robótica no Inca nas especialidades de urologia, ginecologia, cânceres de cabeça e pescoço, abdômino-pélvica e tórax”.
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), o Programa de Cirurgia Robótica completou 10 anos em agosto. A instituição também conta com um robô Da Vinci e já realizou cerca de 750 procedimentos – vale frisar que o Clínicas atende majoritariamente pelo SUS.
Até 2018, as cirurgias robóticas no HCPA foram executadas também por gestão do SUS, com um subsídio recebido pela instituição e também a partir de alguns projetos de pesquisa. Depois, com cortes de verbas, não foi possível arcar com esse tipo de procedimento para pacientes do sistema público, explica o professor Brasil Silva Neto, diretor médico e membro do Programa de Cirurgia Robótica do Clínicas:
— Os procedimentos se mantiveram só na parcela de internação por convênios. Hoje, as cirurgias robóticas são todas privadas. Não temos um volume de cirurgia que se compare com outros serviços por conta dessas dificuldades no custeio do programa, mas desde o início oferecemos capacitação para profissionais. Atuamos na formação de cirurgiões, com cursos de certificação e residência em cirurgia robótica.
O HCPA já certificou cerca de 50 profissionais e tem três simuladores para treinamento. A Santa Casa também oferece esse serviço, sendo responsável pela formação de 200 cirurgiões — hoje, em torno de 90 médicos de diferentes especialidades são capacitados para cirurgia robótica.
Silva acrescenta que, além dos benefícios no perioperatório do paciente, há redução de exigência física e o filtro de tremores humanos, o que aumenta a precisão nos procedimentos.