Foi somente depois de muitas idas à emergência, com fortes dores articulares, que Izabel Oliveira conseguiu um encaminhamento para investigar a origem do problema. Era final dos anos 1990, e a gaúcha moradora de São Leopoldo decidiu insistir, dizendo ao médico do plantão que não queria apenas mais um remédio para amenizar os sintomas, mas uma resposta.
— Eu disse: “Quero saber o que está acontecendo comigo, estou me sentindo muito mal, não consigo caminhar, meu coração está acelerando”. Sempre trabalhei como doméstica e chegou a um ponto que eu não conseguia mais varrer, lavar roupa ou carregar um balde com água — lembra Izabel, hoje com 60 anos.
Naquela época, ela já estava com uma lesão no rosto, que se estendia do nariz às bochechas, e o corpo bastante inchado, o que prontamente alertou o clínico, um médico nefrologista, para o qual foi encaminhada. No primeiro contato, o especialista lhe informou que os sintomas eram de uma doença rara, que para algumas pessoas poderia ser muito grave e, para outras, mais leve.
A suspeita do médico foi confirmada após vários exames e, aos 37 anos, Izabel foi diagnosticada com lúpus, doença inflamatória crônica e autoimune, de causa desconhecida, que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos. A condição se divide em dois tipos (eritematoso sistêmico e cutâneo) e tem como característica marcante a lesão conhecida como “asa de borboleta”, pela forma como se distribui no rosto do paciente.
De acordo com Marco Antônio Araújo da Rocha Loures, presidente da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR), o tipo mais comum de lúpus é o sistêmico, que atinge todo o organismo (principalmente a pele, o coração, os pulmões, os rins e as articulações) e pode ser leve ou grave. Já o cutâneo é mais raro, causa somente lesões na pele e não costuma representar risco de morte. Entretanto, mesmo sendo pouco frequente, é possível que o quadro dermatológico evolua para todo o sistema.
O reumatologista explica que os pacientes com lúpus apresentam um desequilíbrio na defesa do organismo, que produz vários autoanticorpos contra as células do próprio corpo, quando deveriam combater agentes estranhos, como vírus e bactérias. O desequilíbrio provoca inflamação em diversos órgãos, alterando suas funções normais e provocando danos.
— Quem tem lúpus já nasce com essa característica genética. Algumas pessoas desenvolvem mais e, outras, menos, porque algumas têm uma marcação genética mais forte, enquanto outras têm só um pouquinho. E aí pode desenvolver ao longo da vida com os gatilhos, onde entram os hábitos da pessoa, se fica muito exposta ao sol, se fuma muito, se tem algum problema emocional. Tudo isso conta como fator de gatilho para desenvolver a doença — esclarece Loures.
Com uma incidência anual de cinco novos casos a cada 100 mil pessoas no Brasil, o lúpus é considerado uma das mais graves doenças autoimunes conhecidas. Por isso, campanhas buscam alertar a população sobre os sinais e possíveis complicações. Uma delas é o Fevereiro Roxo, que também tem como objetivo conscientizar a respeito da fibromialgia e do Alzheimer.
Os sintomas do lúpus
Médico reumatologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e responsável pelo Ambulatório de Lúpus, Thiago Willers afirma que as alterações de pele são um dos sinais mais comuns dos dois tipos de lúpus. Mas esse não é necessariamente o primeiro sintoma que os pacientes apresentam, nem o mais relevante:
— Quando a população pensa só na pele, acaba minimizando a doença, que é uma das mais graves que eu trato no consultório. Mas às vezes é mais difícil perceber os outros sintomas, como dor nas articulações, então pode ser um bom caminho para começar a notar. Só que cada pessoa começa apresentando sinais diferentes.
O lúpus afeta principalmente mulheres entre a segunda e a terceira década de vida — são 10 para cada homem na mesma faixa etária, conforme Willers. Mas alguns sinais podem aparecer antes. Após receber o diagnóstico de lúpus sistêmico e entender um pouco mais sobre a doença, Izabel percebeu, por exemplo, que desde a infância apresentava alguns sintomas. Ela conta que, quando era criança, tinha muitos episódios de dor de garganta e, em determinados períodos, não conseguia sair da cama em função da dor que sentia no corpo.
Como sintomas iniciais mais comuns, o reumatologista Loures cita febre, mal-estar, perda de peso e de apetite, queda de cabelo e alterações vasculares nas pontas dos dedos, que costumam ficar roxos. Fotossensibilidade à exposição solar, cansaço e desânimo também estão entre os sintomas. O especialista também aponta que, no caso do lúpus cutâneo, as lesões costumam ser manchas vermelhas de diferentes tipos, que podem aparecer pelo rosto ou no tronco.
Diagnóstico e tratamento
Apesar de não ter prevenção ou cura, o lúpus pode ser controlado com um diagnóstico precoce e tratamento adequado, ressalta o reumatologista Thiago Willers. No entanto, o especialista aponta que, mesmo que o entendimento sobre as doenças reumatológicas tenham melhorado bastante, ainda há dificuldades no sistema de saúde para identificar esta enfermidade, já que o diagnóstico é feito a partir de uma série de alterações constatadas por diferentes exames:
— Não tem um único teste para identificar o lúpus. Tem um exame que é fundamental, que é o FAN, mas a alteração não significa que a pessoa automaticamente vá ter lúpus.
O exame citado pelo médico é feito a partir da coleta de sangue. Histórico familiar de lúpus e de outras doenças reumatológicas devem servir de alerta para consultar um especialista logo que sintomas, como a lesão da asa de borboleta, a sensibilidade em demasia à luz solar e as dores articulares persistentes, comecem a chamar a atenção.
De acordo com o médico da Santa Casa, o tratamento é contínuo e envolve medicamentos consolidados, como a hidroxicloroquina, além da manutenção de hábitos saudáveis. Essas medidas, embora variem de pessoa para pessoa, podem proporcionar uma vida praticamente normal ao paciente. Mas é fundamental que haja entendimento sobre a doença e adesão às medicações e às consultas.
— Hoje, fazemos o diagnóstico mais cedo e isso é muito importante para evitar as sequelas e o aumento da gravidade. Se fazemos um tratamento mais inicial, com medicamentos mais específicos, conseguimos evitar sequelas. E fazendo o tratamento correto e controlando a doença, 80% dos pacientes costumam ter uma vida normal — acrescenta o presidente da SBR, destacando que a taxa de morte caiu muito no decorrer dos anos, em função dos avanços da medicina.
Outro ponto importante citados pelos dois especialistas é que, para controlar a doença, os pacientes precisam evitar a exposição solar, sobretudo durante o verão, no horário de maior incidência de radiação ultravioleta, entre 10h e 16h30min. Ao sair para a rua neste período, mesmo em dias nublados, as pessoas devem utilizar protetor solar com fator acima de 50, no mínimo.
— A radiação ultravioleta é extremamente nociva à pele, porque estimula as proteínas cutâneas e, com essa modificação, elas se tornam como se fossem estranhas ao corpo. Então, o organismo produz mais autoanticorpos, gerando mais inflamações e, consequentemente, maior gravidade da doença — explica Loures.
Complicações no sistema nervoso central, nos rins e no coração
O principal alerta dos especialistas está relacionado às graves complicações que a doença autoimune pode gerar. Willers aponta que o lúpus pode acometer o sistema nervoso central, causando vasculite, convulsões e sequelas cognitivas e na movimentação. Também é possível que afete o coração, gerando inflamação e dificultando os batimentos, e os rins — o que pode fazer com que o paciente precise até mesmo de um transplante.
Quando recebeu o diagnóstico, Izabel sentia uma forte dor na cintura, na direção das pernas. Ela conta que, quando caminhava, tinha a sensação de que ia cair e de que uma corda estava lhe apertando naquela região, o que tornou cada vez mais difícil se locomover. Por isso, acabou encaminhada a um cirurgião vascular:
— Contei ao médico que tinha o diagnóstico de lúpus sistêmico. Ele olhou minhas pernas de longe e disse que eu não tinha nada, me receitou remédio para dor. Cheguei em casa e chorei muito com meu ex-marido e meus filhos, porque eu falava de uma dor que ninguém entendia. Disse para eles: “Acho que não vou mais em médico nenhum, porque talvez a dor que estou sentindo seja da minha cabeça.
Izabel foi de São Leopoldo a Sapucaia do Sul atrás de outro especialista e descobriu que quase não tinha mais circulação nas pernas. Assim, iria fazer um cateterismo, mas acabou enfartando logo que internou no hospital. Diante das complicações pelo entupimento das artérias, Izabel precisou passar por outros procedimentos e cirurgias, inclusive sob o risco de ter os membros amputados:
— Saí do hospital sem caminhar e fiquei quase dois anos fazendo fisioterapia, até conseguir voltar a andar com duas muletas. Foi muito difícil porque eu trabalhava desde novinha, saía de manhã e voltava de noite. O pior da doença são os limites que ela te traz. Eu fiquei só na cama, não podia caminhar, dependia das pessoas para ir no banheiro.
Anos depois, uma infecção obrigou Izabel a amputar o dedão do pé esquerdo. E, mesmo com a doença estabilizada por seguir o tratamento de forma adequada, em 2022 ela teve outro infarto e colocou uma válvula no coração. A mancha no rosto não está mais presente, mas Izabel aponta: as lesões na pele aumentam o preconceito, assim como a incapacidade gerada pelas fortes dores.
A importância da rede de apoio
Diante das dificuldades que passou a enfrentar, Izabel decidiu fundar, em abril de 2005, a Associação de Lúpus e Outras Doenças Reumáticas do Vale do Rio dos Sinos (Alureu Sinos). A instituição, segundo ela, oferece aquilo que os pacientes mais precisam para enfrentar a doença: muito carinho, apoio psicológico e esclarecimentos.
— Quando tive meu diagnóstico, precisei pedir ajuda psiquiátrica. Eu ficava só na cama, sozinha dentro de casa, então tomava remédio para dormir, porque se ficasse acordada, chorava o tempo todo. Perguntava se era um castigo, pois não tinha entendimento da doença — diz Izabel.
A ideia de fundar a associação surgiu durante conversa com a filha, quando começou a perceber que havia várias outras pessoas com a doença apenas no bairro onde morava. Assim, começou a organizar reuniões entre médicos e pacientes e a se mobilizar com entidades de saúde. Hoje, a associação está sediada no Centro de Cidadania e Ação Social Unisinos, no centro de São Leopoldo, e conta com assistente social, psicóloga e educadora social. São 350 pacientes de São Leopoldo e 470 da região, diz Izabel. Interessados podem entrar em contato pelo e-mail alureusocialsl@gmail.com; pelos telefones (51) 99840-1931 e (51) 99665-1271; ou pelo Instagram @alureusinos8.
Em 2015, a Alureu contribuiu para que a Lei 14.784, que institui a Política Estadual de Conscientização e Orientação sobre o Lúpus, fosse sancionada. Entre suas atribuições, a legislação estabelece que o Estado poderá proporcionar aos pacientes todos os medicamentos necessários, incluindo bloqueadores, filtros e protetores solares.
O reumatologista Willers enfatiza a importância do tratamento multidisciplinar, com ginecologista, dermatologista, cardiologista, nefrologista e profissionais da saúde mental. E diz ainda que os familiares têm um papel fundamental na rotina dos pacientes:
— Essa doença tem potencial para trazer muitos prejuízos e nós, como médicos, temos muito para ajudar os pacientes. Precisamos que eles se engajem no tratamento, porque podem ter uma qualidade de vida melhor.