Ao longo de sua carreira, o cirurgião oncológico Márcio Boff atendeu a pacientes que tiveram complicações durante e depois de procedimentos devido à omissão de informações nas consultas pré-operatórias. Um exemplo é o caso de uma mulher que passou por uma cirurgia hepática de grande porte, na qual sangrou além do normal e precisou de múltiplas transfusões de sangue, que ajudaram a evitar sua morte. O motivo do sangramento excessivo foi o consumo de óleo de linhaça, que tem um fator anticoagulante natural, não revelado previamente ao médico.
Também pela falta de dados, o especialista em Medicina Interna Dimitris Rados já enfrentou dificuldades para definir diagnósticos. Há cerca de 10 anos, uma paciente apresentava níveis elevados de cálcio no sangue e, em função do problema, não conseguia contar seu histórico de saúde. Os exames não apontavam o motivo da elevação e seu acompanhante não sabia relatar fatos que a justificassem. Após alguns meses, ao menos duas internações e uma série de procedimentos, outro familiar comentou que a mulher havia feito um procedimento estético anos antes – e era o que estava causando o problema.
Os casos citados demonstram a necessidade de fornecer todas as informações possíveis durante as consultas ou, em determinadas situações, ter familiares que conheçam seu histórico de saúde e possam relatá-lo – sem mentiras ou omissões. Só assim médicos poderão definir um diagnóstico e o melhor tratamento para ajudá-lo.
– Se o paciente não quiser contar algo, é um direito dele. O problema é que toda informação omitida do médico pode atrapalhar o processo de diagnóstico e tratamento. Então, precisa ter confiança mútua. Além disso, em situações de desconfiança, o paciente pode questionar o médico sobre o motivo da pergunta e ter certeza de que suas informações serão confidenciais – ressalta Dimitris, que é professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e atua no Serviço de Medicina Interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
Não deixe de contar
Entre as informações necessárias para uma investigação médica adequada, estão: hábitos alimentares, rotina de sono, funcionamento intestinal, consumo de álcool e drogas, medicamentos usados, histórico de doenças pessoal e familiar, assim como cirurgias e tratamentos prévios. Também é importante saber o tempo de desenvolvimento dos sintomas clínicos e do aparecimento de alguma modificação no corpo.
De acordo com Boff, chefe do Serviço de Cirurgia Oncológica do Hospital Mãe de Deus, ao citar medicações e produtos que usa, o paciente deve listar inclusive aqueles que não foram prescritos por médicos, como fitoterápicos, vitaminas, hormônios, ervas e chás. Na sua especialidade, destaca que é extremamente relevante a pessoa saber descrever os tratamentos já iniciados, porque alguns remédios não podem ser utilizados caso seja necessária uma intervenção cirúrgica. Boff alerta:
– Alguns quimioterápicos exigem que se espere no mínimo três semanas para operar, porque prejudicam a cicatrização e podem fazer esse paciente sangrar até morrer ou precisar de múltiplas cirurgias decorrentes de complicações.
A médica psiquiatra Cristiane Stracke, coordenadora da Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Porto Alegre, complementa que é preciso informar até mesmo os remédios que não são relacionados ao problema para o qual o paciente busca atendimento e, além de seus nomes, as doses consumidas. Isso porque algumas medicações podem propiciar o aparecimento de sintomas psiquiátricos, como crises maníacas e depressão:
– Às vezes, as pessoas tomam doses diferentes do receitado. Tem de ser sincero sobre isso, porque a omissão pode fazer com que o médico tenha uma interpretação errada do efeito que aquela medicação está causando.
Para evitar que se esqueça todos os remédios utilizados de forma contínua ou eventual, os especialistas recomendam que os pacientes façam uma lista, incluindo os nomes e doses dos medicamentos, para levar nas consultas. Mostrar receitas, caixas ou fotos das embalagens também é uma alternativa que ajuda.
Inspiração
Esta reportagem foi inspirada em crônica do psicanalista Mário Corso. No texto “Como ir ao médico”, de 29/3, o colunista de GZH dá dicas bem-humoradas aos pacientes, como estas:
- Parta do princípio de que emburrecemos frente ao médico. Até existe a Síndrome do Jaleco Branco, cujo principal sintoma é um aumento pontual da pressão arterial. Isso mostra que é um momento de estresse, portanto atrapalha a cognição.
- Leve a lista dos medicamentos que você toma. Todos. Até aquelas vitaminas que você toma por preguiça de ter uma alimentação decente. Aliás, pode ser por causa delas que esteja doente.
- Liste os sintomas. As coisas anormais que estão acontecendo. Anote também desde quando. “Faz muito tempo”, “faz pouco tempo” não ajuda. Meu médico, quando termino a queixa, sempre pergunta: e o que mais? Só aí surge o detalhe aparentemente desimportante, decisivo para fechar o diagnóstico. Mas nem todos têm a sorte de um clínico que insiste em escutar.
- Quanto ao álcool e cigarro, deixe o médico discernir sobre o que é “pouco”, “socialmente”. Tenho um amigo que diz que bebe ocasionalmente. Convivendo, vi que ocasionalmente ele não bebe”.
O consumo de drogas ilícitas e de álcool
Para os especialistas, mentiras sobre o consumo de drogas ilícitas e o abuso do álcool são motivadas, na maioria das vezes, por vergonha e medo do julgamento. O problema é que, além de atrapalhar o processo de diagnóstico, esconder dos médicos o uso de entorpecentes pode gerar riscos à saúde.
– Tudo o que o paciente omite do médico pode ser um malefício para si mesmo. Um exemplo: se a pessoa chega com dor no peito em uma emergência e mente que não usou cocaína, daremos um remédio betabloqueador, que se usa em quase todos os tipos de infarto, mas não pode ser utilizado em quem usou a droga, porque pode piorar a isquemia – comenta Dimitris Rados.
Já a maconha tem impacto na cicatrização, nos níveis de ansiedade e na quantidade de analgésicos para o controle da dor do paciente, enfatiza o cirurgião Márcio Boff, acrescentando que a cocaína também interfere no metabolismo das medicações anestésicas, que são consumidas de forma acelerada.
Conforme Luiz Danzmann, médico cardiologista do Hospital São Francisco da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), muitas pessoas costumam minimizar as respostas, quando questionadas sobre o quanto fumam ou bebem. O mesmo ocorre em relação aos hábitos alimentares, como a quantidade de sal e de calorias consumidas.
– O que chama a atenção nas minhas consultas é a quantificação aquém do real. Por exemplo, pergunto se o paciente fuma ou bebe e ele responde “às vezes” ou que toma “uma cervejinha”. Então, não negam, mas omitem a quantidade do consumo: quantos cigarros, quantas cervejas e quantas vezes por semana – relata Danzmann, complementando que a situação descrita por Dimitris Rados também acontece com pessoas que tomaram remédio para disfunção erétil.
Sintomas e exames
Outro ponto fundamental é anotar todos os sintomas e a data em que começaram a se manifestar, a fim de garantir que nenhum detalhe será esquecido em função do nervosismo. A psiquiatra Cristiane Stracke sinaliza que é necessário incluir na lista tudo que for diferente do normal, mesmo que o paciente acredite que não é relevante. Segundo o médico Dimitris Rados, o indivíduo também deve contar como aqueles sintomas estão impactando em sua vida pessoal e profissional, para ajudar o especialista a encontrar uma forma de minimizá-los.
– Para além da lista, é muito importante que o paciente saiba tirar da consulta aquilo que ele quer: uma explicação para os sintomas, um diagnóstico, um tratamento para se sentir melhor, uma revisão das informações – diz o especialista em Medicina Interna.
Em relação aos exames anteriores que devem ser levados às consultas, os médicos concordam que varia de acordo com cada especialidade. Exames antigos de imagem, como tomografias e ecografias, podem ser necessários para fins de comparação em consultas oncológicas, por exemplo, mas os laboratoriais realizados há mais de um ano geralmente precisam ser atualizados. A definição de qual deles é relevante ou não, entretanto, deve ser feita pelos médicos.
– Se a pessoa tem muitos exames, ela pode apresentar ao médico primeiro os mais recentes e dizer que tem mais antigos em casa, para que ele possa decidir se são importantes ou não – recomenda Dimitris.
Dúvidas e nervosismo
O cirurgião oncológico Márcio Boff relata que pacientes que chegam para investigar um possível câncer geralmente estão muito nervosos, a ponto de captar apenas cerca de 20% das informações citadas durante a conversa. Por isso, considera de extrema importância a presença de familiares em consultas pré-operatórias ou de diagnóstico:
– Nesses casos, as informações são complexas e pode haver um desfecho com várias complicações, que podem impactar a vida do paciente. Então, é fundamental ter mais pessoas ouvindo e captando aquilo ou até mesmo pedindo para repetir e esclarecer dúvidas.
Mas, além do medo do diagnóstico, o nervosismo pode estar atrelado ao desconhecimento dos termos citados pelos especialistas. Boff comenta que muitas pessoas recebem somente informações técnicas de seus médicos, sem que haja uma tradução para quem é leigo. Ele destaca que a linguagem médica deve ser traduzida até que seja entendida por pacientes e familiares.
A presença de algum membro da família no consultório é inclusive requisitada de forma ativa pelo cardiologista Luiz Danzmann quando o paciente é idoso ou tem muitas comorbidades. Ele aponta que também pode ser útil anotar as dúvidas em relação ao problema de saúde investigado ou diagnosticado, principalmente se as consultas forem curtas e com retornos demorados.
Neste sentido, Dimitris Rados salienta que é interessante pesquisar sobre a doença para saber quais são os principais fatores de preocupação e, assim, esclarecê-los com o médico durante a consulta:
– É útil estudar sobre a doença depois do diagnóstico, mas antes pode atrapalhar. Portanto, a pessoa deve usar a internet para ter mais segurança sobre o que perguntar e não mais medo. Não é obrigatório, mas acho muito bom que a pessoa leve uma lista de dúvidas.