Epidemias de doença virais podem deixar pessoas com sequelas que não são levadas a sério, nem pelos médicos nem pela sociedade.
A covid-19 é mais um exemplo. Depois de sobreviver à fase aguda, os pacientes são considerados curados, mesmo que ainda apresentem sintomas, não importa se frustros ou exuberantes.
Esse fenômeno não é novo na história das epidemias, como discute Laura Spinney, no último número da revista Nature. A gripe espanhola, que se disseminou pelo mundo em 1918, deixou um rastro de quadros neurológicos compatíveis com uma doença conhecida como encefalite letárgica, que ganhou o nome de "doença do sono", por causa da sonolência que a caracterizava.
Das pessoas que se curavam dessa sequela, cerca de 80% desenvolviam quadros neurológicos muito semelhantes aos da doença de Parkinson. Nunca ficou demonstrada a presença do vírus influenza no tecido cerebral, de forma a estabelecer uma relação clara de causa e efeito, mas o número de casos de encefalite letárgica e de doença de Parkinson aumentou de forma significativa ao redor do mundo, nos anos que se seguiram à pandemia.
A covid longa é uma síndrome caracterizada por cerca de 200 sintomas que envolvem pelo menos 10 órgãos e sistemas.
Nas pandemias de influenza dos anos 1957 e 1968, também houve aumento da incidência de complicações neurológicas, entre as quais a encefalite letárgica. Como na gripe espanhola, também não foi possível comprovar relação de causa e efeito entre o vírus e o processo inflamatório que acomete o tecido cerebral na encefalite.
Apesar dessa dificuldade, está bem documentado que o vírus influenza infecta o tecido cerebral e provoca inflamações em diversos órgãos. Vários estudos detectaram ondas de ataques cardíacos e derrames cerebrais depois das temporadas de gripe. Crianças com encefalite pós-gripal são raras, mas podem desenvolver quadros fatais ou evoluir com danos neurológicos.
Influenza não é a única doença infecciosa capaz de deixar sequelas. O vírus do sarampo pode causar uma doença neurológica rara conhecida como pan-encefalite esclerosante subaguda, que pode cursar com quadros neurológicos graves.
Décadas depois de ter tido poliomielite, muita gente volta a se queixar de dificuldades respiratórias e motoras de grau variável, que podem eventualmente levá-los de volta para a cadeira de rodas e à dependência de suplementação de oxigênio (as estimativas variam de 20% a 85%). Durante muitos anos, esses casos ficaram sem explicação.
Tais reativações de sintomas de uma doença viral ocorrida muitos anos antes, foram incapazes de despertar a atenção dos médicos ou dos pesquisadores para explicá-las e descobrir formas de prevenção.
Cerca de seis meses depois do aparecimento dos primeiros casos de covid-19, vieram os primeiros relatos de sintomas que persistiam por semanas ou meses. Hoje, sabemos que a "covid longa" é uma síndrome caracterizada por cerca de 200 sintomas que envolvem pelo menos 10 órgãos e sistemas, entre os quais coração, cérebro, pulmões, pele, intestinos e nervos periféricos.
Queixas de fadiga, dispneia aos pequenos esforços, queda de cabelo, perda de olfato e paladar, fraqueza muscular, sensação de formigamento nas extremidades e um conjunto de alterações cognitivas que recebem o nome de "fog" cerebral são as mais frequentes. Podem durar semanas ou meses, como em outras síndromes pós-virais.
Embora corram mais risco de desenvolver covid longa os que tiveram manifestações graves na fase aguda, têm sido descritos inúmeros casos entre pessoas com apresentações pouco sintomáticas da doença.
Na história das epidemias, com a atenção voltada para as demandas médicas da fase aguda, os sistemas de saúde sempre negligenciaram os quadros crônicos provocados por elas. Desta vez, no entanto, a internet fez a diferença: grupo de pacientes com covid longa formaram comunidades online para compartilhar seus problemas e cobrar soluções para eles.
Em maio de 2021, economistas da London School of Hygiene & Tropical Medicine estimaram que as sequelas da covid consumiam 30% dos gastos de saúde com a epidemia. Essa avaliação inicial não levou em conta os custos com os transtornos psiquiátricos nem os das crianças com sintomas de longa duração.
As estimativas atuais são de que a pandemia deixará um rastro de doenças crônicas pós-virais que exigirão mais recursos do que o próprio tratamento da fase aguda em hospitais, à medida que a disseminação for controlada.