Só quem é chato para comer sabe o tamanho do desafio representado por um simples convite para jantar na casa de alguém. Em lugar do antecipado deleite pela oportunidade de provar uma saborosa refeição, vem a angústia: o que será servido? Vai ter pelo menos uma coisa de que eu goste? E se não tiver nada? Alerto o anfitrião sobre a minha chatice ou arrisco, me sirvo e fico remexendo a comida no prato, fazendo de conta que estou comendo e – socorro! – gostando?
A repulsa pelo sabor, pela cor, pelo cheiro, pela consistência ou pela aparência dos alimentos tem nome: seletividade alimentar. Em maior ou menor grau, o seletivo restringe seu cardápio, tornando-o repetitivo e carente de ingredientes e nutrientes essenciais, muitas vezes abrindo mão de alimentos que nunca nem experimentou. No topo do ranking dos mais rejeitados costumam figurar vegetais e frutas, seguidos de laticínios, peixes e frutos do mar. Por outro lado, é comum que os chatos apreciem opções ricas em açúcar (chocolates, biscoitos, sobremesas) e carboidratos (massas, pães), em geral altamente calóricas. Que chato nunca se contentou com um sanduíche depois de refugar o prato principal?
– Passa de chatice para algo que pode impactar de forma bastante negativa quando a pessoa deixa de comer determinados grupos de alimentos que acabam causando alguma deficiência nutricional. Se ela não consome nenhuma fruta ou nenhuma verdura, já temos um problema. Em uma escala de meses ou anos, provavelmente isso deve acarretar algum problema maior à saúde – alerta Clarissa Fujiwara, nutricionista do Departamento de Nutrição da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
Leia também:
15 truques culinários para deixar a comida mais saudável
Conheça os aditivos químicos usados nos alimentos
Dicas para comer bem sem abrir mão do prazer
A seletividade alimentar geralmente tem início na infância. O paladar do bebê começa a se formar ainda no ventre da mãe – quanto mais variada e adequada a dieta da gestante, que repassa nutrientes ao feto, melhor.
O final do período de amamentação exclusiva, aos seis meses de vida, quando começa a introdução gradual de outros alimentos, é muito importante. A partir daí, a criança deve receber, progressivamente, uma oferta variada de sabores e consistências, partindo de papas bem pastosas. Uma rotina alimentar monótona pode impactar negativamente o desenvolvimento, contribuindo para que a criança não componha um repertório tão amplo.
Núcleo familiar é principal influência
Experiências traumáticas também são responsáveis pela seletividade que será levada até a fase adulta – uma criança que é obrigada a comer bife de fígado, mesmo sem gostar desse tipo de carne, ou forçada a ficar sentada diante do prato durante horas, até rapar tudo, poderá ter péssimas lembranças associadas a refeições. Outros episódios ligados a emoções negativas – e não apenas na infância –, como um terrível mal-estar provocado por um alimento de má qualidade ou um almoço arruinado por uma discussão, podem ter consequências duradouras. A cada novo encontro com aquela comida, as péssimas recordações vêm à tona.
– Sem dúvida, a maior influência na nossa construção alimentar é a do núcleo familiar – ressalta Clarissa.
Não se mudam hábitos de uma hora para outra, e para incrementar e colorir o prato de um seletivo é fundamental ter disposição, empenho e paciência. Considera-se que é preciso ter contato com um alimento pelo menos 10 vezes, em apresentações distintas (cru, cozido, assado, liquidificado, em receitas de bolo ou suflê etc.), para que se possa formar uma opinião sobre ele – afinal, gosto ou não gosto? Bruna Pontin, nutricionista e professora da Unisinos, garante que o estranhamento inicial pode ser vencido.
– Gosto de referir a certos pacientes a história do sushi: há alguns anos, ninguém comia sushi. Com o passar do tempo, foi entrando na nossa cultura alimentar. Muitos provaram pela primeira vez e não gostaram, acharam muito estranho, e hoje são pessoas que adoram sushi. É comum isso acontecer – afirma Bruna.
A nutricionista Ana Harb, doutora em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da Unisinos, é contra radicalismos e costuma estabelecer uma negociação com o paciente – o avanço, especialmente com os mais resistentes, se dá devagar.
– Pergunto: "O que você topa fazer? Como você pode me ajudar para melhorar isso? De tudo que existe na natureza, o que você toparia? Qual dessas opções te faria sofrer menos?". Ele escolhe o menos pior. Às vezes, não é o melhor, é longe daquilo que eu gostaria, mas já é alguma coisa. Às vezes, é frustração total e absoluta. Me contento com pouco, vou comendo o mingau bem pelas beiradas – conta Ana.
Confira, a seguir, nove estratégias que podem ajudar os seletivos a adotarem uma dieta mais rica e saudável.
Nove dicas para acabar com a sua chatice
1 - Reeduque-se
Muitos chatos para comer se revelam no consultório do nutricionista. É comum que procurem auxílio profissional por conta de outra questão – sobrepeso, por exemplo – e, na primeira conversa, acabem expondo o quão limitado é o seu repertório alimentar. Deixe o "não vou nem experimentar porque não vou gostar" um pouco de lado e esteja disposto a encarar novas experiências.
– Sempre é tempo para fazer isso. Às vezes, tenho pacientes de 80 anos que querem comer melhor – ensina a nutricionista Ana Harb.
Converse com o nutricionista e tracem juntos um plano para começar.
2 - Avance aos poucos
Você não deve deixar a consulta com uma lista imensa de novidades no cardápio. É fundamental avançar devagar, introduzindo poucos sabores novos a cada semana ou quinzena e fazendo ajustes conforme a aceitação. Se você é resistente a vegetais, começe por aqueles de sabor mais suave. Deixe os de gosto mais forte para mais adiante.
3 - Aprenda a cozinhar
Se você tem pouca técnica e um repertório limitado de pratos que sabe preparar, é provável que sua alimentação em casa seja monótona.
– A pessoa acaba trabalhando de forma pouco criativa sua comida e acha que tem que comer sempre da mesma forma. Aprimorando um pouco melhor suas habilidades culinárias e a transformação do alimento, ele fica mais saboroso – comenta a nutricionista Bruna Pontin.
Escolher, comprar, lavar, cortar, refogar, servir – quem se dedica mais tende a ficar mais estimulado a comer. Clarissa Fujiwara destaca, ainda, o novo status que a culinária ganhou hoje em dia.
– O ato de cozinhar tem sido bastante ressignificado e tem deixado, para algumas pessoas, de ser um fardo. É um momento para cuidar da saúde, um momento de prazer – define Clarissa.
4 - Vá à feira e ao supermercado
Envolver-se com o processo de escolha e preparo dos alimentos pode ser uma ótima maneira de vencer barreiras. Arranje espaço na sua rotina para ir às compras com calma, na feira ou no supermercado, especialmente se sua seletividade se referir a frutas e hortaliças. Observe os produtos, sinta os aromas, prove um pedacinho da fruta da estação oferecida pelo feirante.
5 - Seja criativo
Variar as formas de apresentação é a melhor maneira de experimentar o mesmo alimento mais vezes. A maçã pode ser consumida in natura, na forma de purê ou incorporada em uma receita. Não gosta de cenoura crua? Tente suflê de cenoura, bolo de cenoura, muffin de cenoura, suco de laranja com cenoura. Insista e se permita se surpreender.
6 - Disfarce o cheiro e a aparência
A seletividade alimentar não está ligada apenas ao sabor. Muitos seletivos nunca sequer provaram a fruta, a verdura ou o legume que motivam o nojo e a cara feia. A aparência, o cheiro e a textura são outras características capazes de provocar repugnância. Aqui também vale a dica de testar diferentes formas de preparo.
– Muitos pacientes têm rejeição a tomate in natura. O molho de tomate pode ser um meio de apresentar esse alimento – diz a nutricionista Clarissa Fujiwara.
7 - Associe um sabor novo a um sabor já conhecido
Se você tem dificuldade de ingerir determinado alimento, procure misturá-lo a algo que você gosta de comer. Por exemplo, o omelete a que você já está habituado pode ganhar o acréscimo de ingredientes com os quais você tem resistência, como o tomate. Não gosta de brócolis? Que tal misturá-lo ao arroz?
– A chance de aceitação vai ser maior do que simplesmente apresentar o alimento novo sozinho. A ideia não é ocultá-lo. Inicialmente, é uma alternativa muito válida – recomenda Clarissa Fujiwara.
Com o tempo, você passa a apreciar o novo ingrediente, comendo-o sem o "empurrãozinho" de outros.
8 - Torne a refeição um momento prazeroso
Almoçar, jantar, tomar café, fazer um lanche ou um piquenique – comer está intimamente associado ao convívio e à confraternização. Procure tornar o momento das refeições especial. Capriche na apresentação dos pratos, decore a mesa, convide amigos para provar aquela receita que você aprendeu a fazer e na qual já está craque.
9 - Descubra as origens da aversão
É bem provável que o adulto tenha trazido sua seletividade alimentar da infância. Em alguns casos, uma experiência traumática ou emoções negativas estão relacionadas à recusa de certas comidas. Más experiências da fase adulta também podem contribuir para isso, como a ingestão de um alimento estragado ou mal lavado que provocou uma forte intoxicação. Nos casos mais severos de resistências na dieta, um psicólogo pode ajudar.
Fontes: Ana Harb, nutricionista, doutora em Ciências Médicas pela UFRGS e professora da Unisinos, Bruna Pontin, nutricionista e professora da Unisinos, e Clarissa Fujiwara, nutricionista do Departamento de Nutrição da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso)
Menos alimentos, mais doenças
Manter uma boa alimentação deve ser um objetivo permanente, ao longo de toda a vida. O conteúdo do prato interfere diretamente na saúde do corpo, e os seletivos podem estar sujeitos a deficiências nutricionais e a uma maior vulnerabilidade a doenças. Especialistas consultados para esta reportagem relataram casos extremos de pacientes atendidos em seus consultórios, como o de um jovem que consumia apenas papinhas e o da adolescente que almoçava um pacote de bolachas. Há pessoas tão restritivas que chegam a transitar em um universo alimentar de apenas 10 itens. Quem limita demais ou até elimina o consumo de alimentos de certos grupos pode sofrer com baixos níveis de fibras, vitaminas e minerais, por exemplo.
– Às vezes, a pessoa está gorda e tem deficiências, pode estar até anêmica, porque se alimenta muito mal – comenta a nutricionista Ana Harb.
Ao levantar dados detalhados sobre a rotina do paciente, o profissional consegue identificar onde estão as carências. Pode ser solicitado um exame de sangue para uma avaliação mais criteriosa. Se, com o tempo, mudanças de comportamento não forem suficientes para melhorar a alimentação e os índices dos diversos micronutrientes, é possível tentar uma suplementação com compostos comprados em farmácias.
– Pensamos na suplementação quando nenhuma estratégia alimentar conseguiu ser efetiva – explica a nutricionista Bruna Pontin.
Não só os chatos para comer correm o risco de ter uma nutrição deficiente. Quem pratica o vegetarianismo ou o veganismo deve ser bem orientado para substituir de forma adequada os itens que deixaram de ser ingeridos. Adeptos de dietas da moda também devem tomar cuidado.
– Tem gente que restringe glúten porque acha que engorda, o que não é verdade. Até o momento, a ciência confirma que deve retirar o glúten da dieta apenas quem tem diagnóstico de doença celíaca – esclarece Bruna.
Uma alimentação correta e diversificada é capaz de proteger o organismo contra problemas cardiovasculares, diabetes e diversos tipos de câncer, entre outras enfermidades. Padrão alimentar considerado de excelência nos dias de hoje, a dieta mediterrânea – rica em grãos, gordura insaturada, frutas e verduras – vem sendo associada a qualidade de vida e longevidade.
Deve-se pensar não apenas no que se come, mas no quanto se come, para evitar o ganho de peso.
– As pessoas querem viver mais e viver melhor. É uma linha do tempo: desde a infância, bons hábitos têm que ser conservados para que, lá na vida adulta, você tenha o impacto positivo disso. É uma constância, uma frequência. Não existem superalimentos que vão dar conta do recado. O importante é o todo – resume Bruna.
Prejuízos também na vida social
Compromissos sociais que envolvem refeições podem representar uma saia-justa para quem sofre com a seletividade alimentar. Se o convite for para almoçar ou jantar na casa de amigos, o ideal é saber antecipadamente qual é o cardápio para evitar embaraços à mesa. Caso o anfitrião não informe o que será servido, o convidado deve procurar saber. Em geral, quem recebe quer agradar as visitas, e providenciar uma segunda opção não será um grande transtorno.
– O ideal seria chegar à casa da pessoa e comer. Se o convidado não consegue fazer isso, é melhor ser honesto e falar antes – orienta a nutricionista Ana Harb.
Se não for possível se informar antecipadamente sobre a comida, a nutricionista Bruna Pontin recomenda que o convidado faça um esforço e escolha, entre as opções oferecidas, aquelas que mais lhe apetecerem. Para justificar a eventual pouca quantidade ingerida, uma mentirinha inofensiva não fará mal a ninguém – diga que não está em seus melhores dias e que resolveu comer pouco, ou algo do gênero.
Em restaurantes, o seletivo também pode se sentir desconfortável, exposto, julgado pelos demais – sua fama de chato pode já ser conhecida e inclusive lhe render troças e apelidos. Aí, a solução depende de cada um – a negociação sobre a escolha do lugar a ser frequentado por um grupo pode contemplar as peculiaridades do amigo mais difícil de ser satisfeito. Às vezes, a pessoa se sente melhor testando sozinha, pela primeira vez, um novo restaurante que lhe interessa. De qualquer maneira, esse tipo de limitação imposta pela agenda social pode ser um incentivo para o início de uma reeducação alimentar.
– O xis da questão é desenvolver o paladar, não é mudar na marra. A pessoa tem que estar aberta a novos sabores – afirma Bruna.