Há coisas que se deseja lembrar por um tempo, mas dali a pouco se esquece. Outras que agora parece que foram de um jeito, mas na verdade aconteceram de maneira muito diferente – como farão questão de afirmar outras pessoas que presenciaram a mesma cena anos antes. E tem coisas que seria melhor esquecer, mas não saem da cabeça. Nossa memória é assim: às vezes falha, distorce; às vezes prega peças, grava recordações, mesmo indesejáveis, para sempre. E isso, acredite, nem sempre é alheio ao nosso controle.
Uma das mais instigantes funções da complexa estrutura cerebral, a memória é essencial para aprender, identificar, planejar. Mas, se sua função é bem compreendida, entender exatamente como as lembranças se formam, se consolidam e se perdem é quase como uma recordação nebulosa que ora clareia, ora parece indecifrável.
Sabe-se que as lembranças sempre ficam retidas por algum motivo. Seja porque são importantes para o dia a dia e para a própria sobrevivência, seja porque foram bem compreendidas e, assim, armazenadas, ou porque ficaram associadas a alguma questão emocional. Momentos de extrema alegria ou profunda tristeza, por exemplo, costumam ser tão marcantes que praticamente têm lugar garantido no cérebro por anos a fio.
— Memórias afetivas tendem a ficar marcadas. Ninguém precisa se esforçar para lembrar de um assalto que sofreu ou do próprio casamento porque há fortes componentes emocionais envolvidos. Em casos assim, gravamos melhor os detalhes e a recordação perdura por muito mais tempo. Mesmo que não se queira — explica a pós-doutora em neurociências Jociane Myskiw, pesquisadora do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Por que nos lembramos do que nos lembramos
Entre uma bebericada de chá e um pedaço de madeleine (um "biscoito curto e rechonchudo", na descrição do autor), o protagonista do primeiro volume da obra Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, relata que "no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci. [...] De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito".
O episódio da madeleine virou uma cena clássica, principal referência de aplicação literária da chamada memória involuntária, disparada por algum elemento – no caso, um simples lanche, que lembrou o personagem de toda a infância dele na cidade fictícia de Combray.
Às vezes é difícil evocar uma memória, por mais que se tente. Entre os afazeres do dia a dia, porém, não é que aquela recordação de repente ressurge? Isso porque algum estímulo (pode ser um chá, um biscoito, uma palavra, uma cor, uma pessoa) subitamente ativa conexões do cérebro que levam até aquela cena – um princípio que explicamos no início desta reportagem, lembra?
Revirar memórias antigas é como olhar pelo buraco da fechadura: é possível pinçar uma informação aqui, outra ali, e ter uma noção geral do que aconteceu, mas o cenário inteiro não ressurge assim, tão fácil. Isso até que algo, ou alguém, traga mais elementos para aquela lembrança e, com isso, a porta se abra, mesmo sem que se perceba.
Já no caso do famoso "branco" – explicação comum para um esquecimento repentino em meio a uma prova, por exemplo –, o que leva à falha, quando momentânea, são fatores alheios ao aprendizado, como a ansiedade, a pressão e o estresse do momento. Recuperar a lembrança necessária tende a ser um processo, também, quase involuntário: conforme se avança nas questões, ou quando a ansiedade vai passando, é que as lembranças acabam voltando à mente.
Não basta fazer palavras cruzadas
Passatempos que demandam o uso da memória costumam ser vistos quase como remédios contra o esquecimento, como se pudessem prevenir e combater os primeiros sinais de que o cérebro não anda lembrando aquilo que deveria. Mas resolver palavras cruzadas, ainda que com frequência ou mesmo nos níveis mais difíceis, não é suficiente para deixar as lembranças em dia – e muito menos para recuperar recordações antigas que insistem em fugir à mente.
— É preciso desmistificar a eficácia das palavras cruzadas. Na verdade, ao fazê-las, a pessoa está só repetindo o que já sabe. Ela já aprendeu a linguagem, já tem aquele vocabulário, já sabe como preencher o jogo. O aprendizado é muito pouco — garante a neurologista Liana Lisboa Fernandez, coordenadora do ambulatório de demências da Santa Casa.
Não é que o passatempo chegue a ser desaconselhado, longe disso, mas ele não pode ser visto como suficiente para evitar e retardar os lapsos de memória. Todo exercício mental é bem-vindo ao longo da vida, entretanto, o importante é manter o cérebro sempre ativo, aprendendo, entendendo, e não acreditar que uma atividade, sozinha, vai solucionar todos os problemas.
Ainda assim, aliando essa função mental com a diversão e uma espécie de recompensa por completá-los, palavras cruzadas, sudoku, jogos de tabuleiro e exercícios de lógica são tidos como capazes de ajudar a evitar o declínio cognitivo associado a males como o Alzheimer.
Os neurologistas explicam que o cérebro é como um músculo: é preciso exercitá-lo para mantê-lo em bom funcionamento. E se ele for pouco exigido, realizando sempre os mesmos movimentos, percorrendo os mesmos caminhos, sem ser melhor demandado, sem ser exposto a desafios, acaba "atrofiando".
Como lembrar?
Além da questão afetiva, outro fator que colabora para a formação e manutenção de uma memória é o significado que ela recebe: quando um assunto faz sentido, acaba sendo melhor absorvido pelo cérebro. Talvez seja difícil se recordar das lições de física que você teve na escola porque não as compreendeu bem na época – e, depois, não viu utilidade prática para elas na sua rotina. Talvez, por outro lado, um físico não se recorde das regras de crase pelo mesmo motivo.
— Se uma informação não faz sentido, você só mantém ela o tempo suficiente para fazer o proveito necessário e depois esquece. Isso é normal — completa Jociane Myskiw, do Instituto do Cérebro da PUCRS.
Mas se a intenção é guardar uma informação, e não deixá-la à mercê das peculiaridades cerebrais, o que fazer? Colocando a emoção de lado, é possível "forçar" a mente a recordar especificamente de algo, o que é importante para saber desde onde se estacionou o carro até aquele assunto importante para se passar em um concurso. Os especialistas dão três dicas valiosas:
1 - Crie referências
A ideia é criar referências para melhor fixar uma memória. Talvez as palavras "amaciante, leite e café" sejam esquecidas no caminho de casa até o supermercado. Mas, se você lembrar que há roupas sujas na despensa e que não há bebida para o café da manhã do dia seguinte, fica mais fácil deixar gravado o que deve fazer parte da lista de compras.
2 - Envolva mais estímulos
Um princípio semelhante envolve reforçar algo com outros estímulos, como falar em voz alta, escrever, etiquetar, tocar. Assim, envolvendo mais sentidos, o cérebro cria novas conexões – o que pode se provar fundamental na hora em que for preciso evocar uma lembrança.
3 - Concentre-se
Talvez a dica mais valiosa seja esta: concentrar-se bem, evitando distrações.
– Quer guardar uma coisa? Evite outras. Sono, fome, cansaço fazem com que você não consiga dar a atenção adequada ao que deseja. É assim também com distrações como um barulho alto – diz Liana Lisboa Fernandez, neurologista e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Não se esqueça: dicas para melhorar a memória
– Para lembrar-se de algo, o recomendado é reforçar a informação no cérebro, repetindo-a mentalmente.
– Há mais chances de algo ficar gravado quando mais estímulos e sentidos são usados. Vale falar em voz alta, anotar, contar para alguém, atribuir cores, tocar etc.
– Colocar palavras-chave em frases ou fazer versos ou melodias com elas também é uma boa estratégia.
– Outra dica é atribuir referências: em vez de "comprar sabão em pó", talvez facilite lembrar que "é preciso lavar as roupas".
– Um bom exercício é também abrir mão de sites de pesquisa e listas de tarefas, tentando lembrar-se de algo sem facilitadores.
– Contudo, é também bom anotar as coisas: escrever cria outro tipo de conexão no cérebro, e isso pode reforçar uma memória.
– Assim, ao fazer uma lista de compras, pode ser que você fixe os itens na mente e acabe nem precisando dela.
– Leia, leia, leia. Ler trabalha a imaginação, a memória, o vocabulário e é um dos melhores exercícios para o cérebro.