Reclamar de tudo e de todos de vez em quando não é algo que fuja muito da normalidade. Mas quando esse mimimi todo vira um hábito, é melhor prestar atenção porque as consequências podem ir além de isolamento social e dificuldades de relacionamento. Reclamar tem sido objeto de estudo em diferentes áreas, especialmente na psicologia e na medicina, e ambas associam esse comportamento, quando exagerado, a doenças perigosas, como depressão.
O pesquisador americano Steven Parton, filósofo e cientista da computação, lançou mão de conhecimentos sobre inteligência artificial, neurociência e filosofia oriental para observar que outros efeitos a reclamação constante poderia produzir na mente e no corpo.
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Uma de suas conclusões é a de que os reclamões de plantão têm a saúde prejudicada pelo hábito de queixar-se, porque, com essa atitude, estariam expondo ainda mais o corpo ao hormônio cortisol, que, em desequilíbrio, pode ter impactos negativos sobre a saúde, causando lapsos de memória, dificuldade de aprendizagem e cansaço.
Lamentar-se constantemente pode representar uma forma de canalizar raiva e medo, uma maneira de justificar a falta de controle sobre o que sentimos e, não raro, nos paralisa diante de circunstâncias da vida.
– Quanto mais tempo você gasta reclamando inutilmente, menos você está realmente aprendendo com seus erros e menos toma medidas para tornar as coisas melhores – diz Steven Parton, em entrevista por e-mail a ZH.
Mas por que reclamamos tanto? Para o americano, esse comportamento pode ser uma maneira de espantar a culpa ou direcionar frustrações e até opressões sociais. Em grande parte, aposta o pesquisador, é um mecanismo de enfrentamento, uma forma de liberar raiva e até uma justificativa quando as coisas não saem como esperávamos. E este "como esperávamos" tem se confundido muito com o que a sociedade espera que se deseje. Devemos querer fama, riqueza, poder etc. e, de alguma forma, também somos induzidos a criar expectativas sobre o desenrolar dos fatos e a atitude das pessoas.
– Nos apegamos a ideias de como "deveria" ter acontecido em nossas vidas e como as pessoas "devem" nos tratar. Esquecemos que todos têm um condicionamento cultural diferente. Nossa falta de empatia faz com que a gente julgue aqueles que nos rodeiam por não serem como nós. Este é um narcisismo perigoso, mas difícil de escapar já que vivemos em uma cultura que promove o individualismo em vez do coletivismo – avalia Steven.
Distimia, o mau humor patológico
A psicóloga Neusa Chardosim, especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica e Neuropsicologia pela UFRGS e mestranda em Gerontologia Biomédica pela PUCRS, explica que ficar irritado, estar sempre reclamando e de mau humor pode ser um traço de personalidade excêntrica, mas chama a atenção para um problema maior, que pode passar despercebido: a distimia. Essa doença é uma forma crônica de depressão, com sintomas mais leves. Enquanto a pessoa com depressão grave fica paralisada, quem tem distimia continua tocando a vida, mas está sempre desmotivada e, por consequência, tende a reclamar mais.
– Na maioria das vezes, familiares e amigos confundem os sinais que estas pessoas apresentam com um simples mau humor, o que dificulta muito a aceitação e, principalmente, a iniciativa de buscar ajuda – diz Neusa.
A especialista reforça que o diagnóstico da distimia é basicamente clínico e que é importante considerar a manifestação dos sintomas por pelo menos dois anos consecutivos. Irritabilidade e mau humor são os sinais mais imediatos, mas há outros, como desânimo e tristeza, alterações do apetite e do sono, falta de energia, isolamento social e tendência ao uso de drogas e tranquilizantes. Diante desse quadro perigoso, o diagnóstico precoce é fundamental para acelerar o tratamento.
Neusa afirma que é possível que a distimia esteja ligada a um desequilíbrio químico de neurotransmissores em regiões do cérebro que comandam o humor, como o sistema límbico, o hipotálamo e o lobo frontal. Nesse ponto, o uso de antidepressivos ajuda a reestabelecer o equilíbrio químico – porém, sozinhos, esses medicamentos não fazem milagre. O tratamento mais adequado deve combinar antidepressivos e psicoterapia.
Isso porque, embora os remédios corrijam o distúrbio biológico, o paciente precisa aprender novas possibilidades de reagir e estabelecer relações interpessoais. Em contrapartida, a psicoterapia sem apoio dos medicamentos também é improdutiva, porque cobra uma mudança de comportamento que a pessoa é incapaz de atingir por causa de suas limitações orgânicas.
– Dificilmente, estas pessoas se dão conta do próprio problema. Acham que o mau humor, a falta de prazer e de interesse pelas coisas e a tristeza que não dá trégua fazem parte de sua personalidade e do seu jeito de ver o mundo. E quase nunca procuram ajuda, tendendo a se isolar – explica Neusa.
Se, culturalmente, lamentar-se ficou muito associado à terceira idade e à adolescência – e, nessa fase, a rabugice está muito ligada às alterações hormonais –, quando se fala em distimia, a idade para que os sintomas se manifestem pode variar bastante, apesar de, na adolescência, se apresentar com mais frequência. Como se trata de algo hereditário, até mesmo na infância os sinais podem ficar evidentes. Quando diagnosticada na velhice, geralmente observa-se manifestações anteriores, que, de alguma forma, foram negligenciadas.
– Quem tem distimia costuma procurar ajuda só quando ela já evoluiu para um quadro depressivo grave. O desconhecimento prevalece nos primeiros anos. Essas pessoas aprendem a funcionar irritadas. Acham que, por ser um traço de personalidade, o problema é imutável – alerta Neusa.
Na timeline real, nem tudo é um mar de rosas
Há um ingrediente moderno na mania de reclamar de tudo, que também já é apontado como gatilho para ansiedade e doenças como depressão: as redes sociais. Nos perfis dos usuários, quase a autoidolatria, o hedonismo e a superexposição de momentos felizes – e só deles, via de regra – coloca o espectador da vida alheia numa ilusória situação de inferioridade. Tudo porque, na timeline dos amigos, ele só vê momentos felizes em família, viagens, bons restaurantes e carrões e acaba por fazer uma leitura equivocada da própria vida e da que é levada pelos outros: eu não tenho nada, sou um fracassado e tenho todos os motivos para queixar-me. Os outros são felizes, bem-sucedidos e leves.
– Acaba ocorrendo a comparação, e as pessoas passam a ficar ansiosas, sempre buscando mais e mais, quando, na verdade, nem aquela pessoa que posta tem tudo.
Isso pode levar à depressão, mas no sentido do esvaziamento. Por exemplo, você começa a tirar fotos compulsivamente para postar e não vive os momentos – diz a psicóloga Gabriela Guimarães, especialista em terapia sistêmica.
O hábito de reclamar de tudo também pode estar associado a um modelo social e cultural que se estabelece nas relações fora do mundo virtual. Muita gente é criada em um ambiente em que apontar os problemas é mais frequente do que valorizar as coisas boas. Uma criança que convive com esse cenário pode se identificar com ele e reproduzi-lo. Queixar-se, aliás, não deixa de ser uma forma de chamar a atenção.
– Reclamar, às vezes, é um esforço para ser visto. O ser humano tem essa necessidade – ressalta Gabriela.
Há algumas fases da vida que estão mais associadas à rabugice. Na adolescência, os hormônios em ebulição explicam o mau humor constante da garotada. Na velhice, a tolerância a pequenos contratempos pode diminuir, mas isso não é regra. É importante manter-se vigilante para que esse comportamento não se torne um problema para todos à volta.