Um telefonema interurbano para falar de transplante quase invariavelmente é prenúncio de sofrimento, de angústia, de corrida perdida contra o tempo, de nada por fazer.
A escassa cultura médica sobre o procedimento e a noção equivocada de que transplante é terapia do desespero implicam, muitas vezes, encaminhamentos tardios. Disso decorrem injustificáveis mortes durante a realização dos exames para avaliar a indicação do transplante em pacientes portadores de doenças que evoluíram ao longo de anos. Outras vezes, a consulta pretende apenas afastar qualquer possibilidade de culpa por omissão no futuro. E isso se previne com a certeza de que tudo o que era possível foi tentado.
Quando o paciente é mais velho, é comum que a informação de que o transplante é inviável naquela idade seja seguida de um indisfarçado suspiro de alívio. "Porque é certo que faríamos tudo o que fosse necessário, mas se não é possível, temos de nos conformar, não é, doutor?" Pois é. Depois de muitos anos trabalhando com pessoas no limite do desespero, podemos ter a sensação de que, afinal, conhecemos a floresta, mas sempre haverá chance de uma surpresa, e a vida que surpreende é a que conta.
O telefonema começou com um tom de voz a denunciar que aquela era a primeira frase depois de um choro prolongado. As palavras eram entrecortadas, arranhavam na garganta. Desliguei o DVD, aquela não era conversa para se resolver num simples pause.
No fim, não pude fazer nada para ajudá-los, o câncer da Eduarda nunca tinha sido de fato controlado e as lesões pulmonares decorrentes das drogas da quimioterapia eram apenas um atalho no caminho inexorável para a morte. Ouvi-la descrever a dor de uma mãe assistindo a morte diária da filha liquidou com minha semana. Passados alguns meses, agora véspera de Ano-Novo, ela resumiu bem o nosso convívio virtual, solidário, soluçado, doloroso.
"Final de ano, aproveito para mandar uma mensagem, já devia tê-lo feito antes.
Sou Sandra, mãe da Eduarda, paciente do doutor Leonardo. Talvez se lembre do meu ultimo contato, em 30 de abril, um telefonema em caráter de desespero e apenas para atender pedido de um colega médico que não se conformava com a triste evolução da Eduarda. Certamente, quando disquei, sabia que nada havia por fazer que fosse relacionado a transplante pulmonar. Mas mesmo assim liguei e, para minha surpresa, fui de imediato atendida pelo senhor, que parecia estar esperando minha chamada e, com amor, carinho e paciência, me explicou o que era óbvio, mas teve a sensibilidade de entender o desespero da mãe com uma criança agonizante, com uma morte anunciada e até desejada, diante de tanto sofrimento. Mas quero dizer que aquele não foi o nosso contato mais importante. A sua figura significou, para Eduarda e nossa família, esperança, sem a qual não teria sido possível continuar vivendo. Tínhamos de cumprir várias etapas para chegarmos a Porto Alegre. A última seria a segunda prótese de quadril, agendada para a semana seguinte a da sua morte. Quero agradecer a gentileza de ter respondido todos os meus e-mails e me orientado. Se não chegamos a Porto Alegre, foi porque esse não era o nosso destino. Muito obrigada pela sua grandeza, mesmo não nos conhecendo, fez parte da nossa vida em 2014.
Desejo-lhe um feliz 2015. E que Deus cuide da sua família com o carinho que roguei tanto que cuidasse da minha. Abraços, Sandra".