Em 4 de fevereiro de 1843, o Provincial Medical Journal, de Londres, trazia o relato de um médico que contava ter controlado as convulsões de um bebê de apenas 40 dias utilizando gotas de uma solução produzida a partir da maconha. Passados 171 anos da experiência, o uso medicinal da Cannabis sativa está sendo redescoberto pela comunidade científica, mas está longe de ser unanimidade.
Com cerca de 400 compostos químicos, a planta conta com 60 canabinóides - princípios ativos específicos -, dois dos quais destacam-se por suas propriedades medicinais. O tetrahidrocanabinol (THC) é reconhecido por seus efeitos analgésicos e relaxantes, mas é também a principal substância psicoativa (o que "dá barato" e pode causar dependência química). É, portanto, o maior entrave ao uso medicinal.
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Outro composto se torna mais conhecido no Brasil, o canabidiol (CBD), desde que Katiele e Norberto Fischer, pais de Anny, cinco anos, conseguiram o direito de importá-lo para controlar convulsões causadas pela síndrome CDKL5. Ao contrário do THC, o CBD não tem efeito entorpecente.
No país, o uso de maconha é proibido para qualquer finalidade, mas os relatos de casos como os de Anny sensibilizaram novas vozes que se manifestam por mudanças na regulação dessas substâncias - e, em reação, não faltam críticos pedindo cautela.
MURAL: você aprova o uso da maconha para fins medicinais?
Pressionada, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) admitiu pela primeira vez na quinta-feira passada em um simpósio sobre o tema em São Paulo que pode retirar o canabidiol da lista de substâncias proibidas no país, colocando-o no rol de compostos sob controle especial. A medida dever ir à votação no dia 29.
- Estamos buscando uma forma de viabilizar (o canabidiol) quando tiver fundamento - afirma o diretor-presidente da agência, Dirceu Barbano.
No início do mês, após a decisão judicial que beneficiou Anny, a Anvisa divulgou as orientações gerais sobre como solicitar a autorização especial de importação de remédios sem registro no país (como os que contêm da maconha). O pedido deve ter prescrição e laudo médicos.
Múltiplos usos e interpretações
Atualmente, a maconha medicinal pode ser encontrada em vários formatos, que incluem desde cápsulas, sprays e gotas até adesivos, biscoitos, refrigerantes e pirulitos. Além dos Estados Unidos, países como Canadá, Uruguai e Israel adotam sistemas de regulação específicos para o uso terapêutico e industrial da maconha.
57% dos brasileiros aprovam o uso medicinal da maconha, segundo pesquisa feita pela Expertise, empresa de pesquisa e inteligência de mercado, que consultou 1.259 pessoas por meio de uma plataforma online.
- Existem muitas formas de uso. Nos casos de esclerose múltipla, em que os espasmos são muito agressivos, os pacientes precisam de medicamentos que atuem rapidamente, e o uso por inalação, fumando ou vaporizando, são os mais utilizados - exemplifica Lucas Maia, biólogo, coordenador do grupo Maconhabras e pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas.
Membro do conselho consultivo da Abead, o psiquiatra gaúcho Sérgio de Paula Ramos contesta a ideia de que fumar a droga traga benefícios. Opinião semelhante tem a doutora em Psicologia Renata Brasil Araújo, coordenadora do Programa de Dependência Química e Terapia Cognitivo-Comportamental do Hospital Psiquiátrico São Pedro:
- Não sou contra o uso medicinal, mas contra a pessoa fumar maconha para fins medicinais, porque ela traz uma série de outros prejuízos.
Para o deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), médico e ex-secretário da Saúde do Estado, "o uso medicinal é uma desculpa para legalizar o uso geral" da maconha. Estudioso em drogadição, Terra classifica como "hipocrisia" o uso medicinal da maconha em 22 Estados americanos.
Alívio para Sofia
Margarete e a filha Sofia (C da foto acima) se uniram à marcha pela legalização da maconha no Rio. Ela pede a liberação do uso do composto CBD (Bruno Poppe/ Agência O Globo)
Durante o 4º Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal, realizado durante a semana, em São Paulo, a carioca Margarete Santos, mãe de Sofia, quatro anos, portadora da CDKL5, defendeu liberação para importação do canabidiol. Segundo ela, há cerca de um mês, as convulsões sofridas pela menina se tornaram menos frequentes, desde que ela passou a ingerir um óleo elaborado a partir de uma pasta de CDB importada.
- Meu sonho é conseguir controlar as crises convulsivas da minha filha e ajudar as famílias de outras crianças - comentou Margarete, que participou há uma semana de uma marcha pedindo a legalização da maconha, no Rio.
Também há mobilização na internet. No Facebook, a página da Cannabis Esperança - A Vida não Pode Esperar reúne mais de 1,2 mil parentes e amigos de portadores da síndrome de Dravet, que tem na pasta de CBD um dos antídotos mais bem-sucedidos. Além da possibilidade de importação legal do produto - atualmente, os familiares precisam burlar os meios oficiais -, o grupo defende a possibilidade de cultivar a planta em casa, sempre com finalidades medicinais.
"O público busca alternativas"
Amanda Reiman, gerente de políticas da Califórnia Drug Policy Alliance
Há oito anos, a psicóloga americana Amanda Reinam conduziu durante seu PhD em Bem Estar Social na Universidade de Berkeley um dos primeiros estudos sobre como as lojas de maconha medicinal operam como provedoras de serviços de saúde. Gerente de políticas da Drug Policy Alliance na Califórnia, a principal organização de pressão pela regularização da maconha nos Estados Unidos, Amanda usa há 12 anos a Cannabis para aliviar os sintomas de artrite.
Ela foi uma das palestrantes no 4º Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal em São Paulo e deu a seguinte entrevista por e-mail a Zero Hora:
* A experiência da Cannabis medicinal nos Estados Unidos pode provar que o uso dessas substâncias como medicamentos são eficazes e seguras?
Há uma falta de estudos controlados sobre a eficácia da Cannabis para condições específicas, e ainda menos estudos conectando específicas linhagens de Cannabis a condições específicas. Entretanto, nos Estados Unidos, as pessoas usam Cannabis medicinal por quase 18 anos. Nunca vimos uma overdose fatal e há fortes evidências para sustentar sua eficácia. Não acho que necessariamente tenhamos de esperar por estudos controlados e randomizados para mostrar que a Cannabis é eficaz e segura, mas o que precisamos é de uma maneira mais sistemática de coletar dados válidos.
* Quem são os pacientes de maconha medicinal nos Estados Unidos e quais são as principais formas de consumo?
A média de idade para os pacientes de Cannabis medicinal é de 40 anos. A maioria é homem, mas isso pode ser porque mulheres têm medo de perder a guarda dos filhos se forem flagradas com Cannabis. Embora boa parte dos Estados permita o uso de maconha medicinal, o governo federal não reconhece isso e, algumas vezes, as crianças são removidas de casa pela presença de maconha. Muitas pessoas que usam maconha medicinal nos EUA também usam outras formas alternativa de cuidados de saúde, como acupuntura e outras terapias holísticas. O método mais comum de consumo de Cannabis é a inalação (fumo ou vaporização).
* Que tipo de substâncias são usadas?
A uso mais comum nos Estados Unidos é para dor crônica. E, nos Estados Unidos, overdose acidental por drogas farmacêuticas lideram as causas de mortes acidentais. Então, muitos pacientes e um número crescente de médicos nos EUA estão considerando a Cannabis como uma alternativa mais segura do que os opiláceos para tratar dor crônica.
* Quais são as novas descobertas no tratamento com Cannabis?
Tem havido muita atenção ultimamente em duas áreas. Primeiro, o uso de Cannabis para tratar Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Muitos veteranos nos EUA são suicidas em potencial por isso, e a Cannabis tem sido muito útil para eles. Há pesquisas realizadas sobre isso em Israel. Outra condição que ganha atenção é o uso de CBD para tratar epilepsia infantil como a Síndrome de Dravet. O CBD existe em alta concentração na maconha e é uma substância não psicoativa porque tem níveis baixíssimos de THC, que é o ingrediente psicoativo.
* Qual o tamanho desse mercado nos EUA?
Porque não temos um programa federal de maconha medicinal nos EUA, é impossível saber o tamanho desse mercado. Agora, dois Estados (Colorado e Washington) permitiram o uso para todos os maiores de 21 anos, com isso, poderemos começar a ter uma ideia do mercado em potencial.
* Você acredita que a maconha medicinal irá se consolidar?
A Cannabis tem cerca de 5 mil anos, e sua história como planta medicinal supera, de longe, a sua história como uma droga perigosa. Preocupados com a ingestão de múltiplas drogas farmacêuticas, o público, o público está buscando para uma alternativa efetiva e menos tóxica. A Cannabis está aí, o público e os políticos estão abrindo os olhos para isso. E, ainda que estudos clínicos sejam importantes, nós não deveríamos ignorar que há uma longa história com esta planta e que nós podemos aprender muito do uso que já está sendo feito.
* Você é paciente?
Sim, sou paciente há 12 anos e a doença não há progredido desde então. Tenho artrite. A maconha me ajuda a aliviar a dor, a rigidez e a inflamação. Utilizo maconha vaporizada e faço massagens nas juntas com uma pomada não psicoativa feita da planta. Não preciso tomar nenhuma medicação adicional.
* Você acha que a maconha medicinal poderia ser uma "desculpa" para o uso recreativo?
Eu não acho que exista um uso "recreativo'. Eu acho que há maconha para razões medicinais e para razões terapêuticas. Usá-la para tratar epilepsia ou câncer é medicinal. O objetivo é afetar o estado da doença. Usá-la para relaxar, dormir, controlar a ansiedade, isso é terapêutico. O que nós chamamos de recreativo é apenas o uso para aliviar o estresse, melhorar o humor, reduzir a ansiedade e aumentar o prazer social.
"Não existe efeito medicinal da maconha"
Ana Cecília Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead)
Presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), a psicóloga Ana Cecília Marques acredita que questões econômicas vêm determinando a liberação do uso medicinal da maconha nos Estados Unidos, onde 22 unidades federativas já permitem a prática - a Flórida foi o último Estado a aderir, no começo de maio. Segundo ela, os estudos realizados até o momento não forneceram dados confiáveis a respeito dos efeitos de longo prazo resultantes desse tipo de tratamento, o que faz com que seja impossível garantir que ele seja integralmente seguro.
Confira trechos da entrevista de Ana Cecília a Zero Hora:
* O que a senhora acha a respeito do uso medicinal da maconha?
Ninguém manda fumar cigarro como remédio. Isso só nos Estados Unidos, onde questões econômicas estão por trás. Não existe efeito medicinal dá maconha. O que existe é um conjunto de estudos sobre determinados componentes da maconha, planta que tem mais de 400 substâncias. Aí, sim, pode-se dizer, a partir de cada estudo, feito com cada componente, que essas substâncias têm muitas, poucas ou nenhuma evidência científica.
* Quais são os efeitos medicinais já devidamente comprovados de algumas substâncias presentes na maconha?
Já temos evidencias cientificas de que o canabidiol ajuda em sintomas como dores e falta de apetite e também baixando a pressão arterial do olho (tratamento de glaucoma). Há evidências também em relação à esclerose múltipla - efeito analgésico, cuidando do sintoma - e à anorexia resultante de determinadas doenças, como a Aids. No caso do câncer, há evidências de que diminui os vômitos decorrentes da quimioterapia. Em todos os casos, temos evidências, mas poucos estudos, e os remédios que existem ainda são tão efetivos quanto os que utilizam as substâncias advindas da maconha. Em nenhuma área, há melhores medicamentos da maconha do que os tradicionais.
* Como a senhora avalia o desenvolvimento de medicamentos a partir dessas substâncias?
Quando se libera uma substância sobre a qual se tem pouco estudo, não temos como saber os seus efeitos a longo prazo, os efeitos adversos etc. Agora, a gente vai ter mais estudos. A política adotada em alguns Estados americanos fará com que os indivíduos usem esses produtos e possamos saber mais sobre os seus efeitos.
* Por que, mesmo não havendo evidências científicas que garantam o uso seguro dessas substâncias, os Estados Unidos, um dos países mais avançados no que se refere à segurança alimentar e medicinal, têm a comercialização de remédios liberada em vários Estados?
É uma questão de mercado. Temos uma economia das drogas que só perde para petróleo e armas - aliás, empatada com as armas -, e essa economia das drogas faz com que haja investidores. Junta-se a isso uma pressão social para que a sociedade queira liberar essa droga. Os Estados Unidos, o Uruguai e países europeus, onde o consumo é mais descriminalizado, têm indústrias que fazem os medicamentos derivados da maconha.
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Cannabis Medicinal
Site que defende o uso da substância a favor da saúde, com conteúdos multimídia sobre o tema, com depoimentos de pacientes que fazem uso da maconha para tratamento terapêutico e medicinal.
Maconha Medicinal
Site que reúne os interessados ou os que defendem o uso da maconha em tratamentos médicos. Há notícias atualizadas relacionadas ao tema, depoimentos e indicação de outros links.
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