A Família Barros já soma mais de 40 irmãos. Xaiane Barros, 59 anos, advogada. Norberto Barros, 90, eletricista. Dorothy Barros, 31, tenista. Zuleica Barros, 41, alfaiate. Dora Barros, 40, dançarina de balé. Ingrid Barros, 64, professora de inglês.
Os Barros são esculpidos em barro, vestem-se quase sem variação e têm semelhança gemelar nos traços: sobre uma base retangular, assenta-se o bonequinho de calças ou vestido, sorriso quase reto, mãozinhas de três pontas em cada braço. De acordo com o criador do numeroso núcleo, Romeu Grégis Machado, 46 anos, a estirpe ainda vai longe: serão mais de cem homens e mulheres, descendentes do homem riquíssimo que se apaixonou pela garçonete do restaurante.
Romeu é um dos participantes da Oficina Terapêutica de Cerâmica, projeto do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Clínica das Psicoses, na Clínica de Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia, Serviço Social e Comunicação Humana da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Nas tardes de quinta-feira, por uma hora, pacientes com diagnóstico psiquiátrico grave compartilham uma grande mesa, em que o professor de cerâmica Rodrigo Núñez distribui pedaços de argila para que criem livremente, dentro das suas peculiaridades e possibilidades.
— O ensino é um processo de troca – afirma Núñez, com 27 anos de docência no Instituto de Artes da universidade e 10 na oficina. — O maior aprendizado é meu: entender que existem outros ritmos. O que interessa é a troca.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), psicose é um transtorno mental caracterizado por uma desconexão com a realidade. Cerâmica é uma das modalidades oferecidas aos pacientes. Há ainda oficinas de escrita, teatro, rádio e música. Psicólogos e estudantes são facilitadores durante as atividades.
Os alunos têm entre 30 e 60 anos. A maior parte é de baixa renda, mora com mãe ou pai e não consegue manter uma atividade laboral devido ao comprometimento cognitivo. Entre as condições mais frequentes no grupo, estão esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno esquizoafetivo, déficit intelectual e autismo, além de quadros neurológicos como epilepsia. O diagnóstico psiquiátrico, entretanto, não está no foco. A perspectiva dos coordenadores é a da psicanálise, ainda que o grupo conte com a participação de um psiquiatra.
Eles não têm muito interesse pelo objeto. O importante, para eles, é estar ali e você estar junto deles. É lindo: o convívio que é importante. O objeto, a matéria, a argila é um veículo desse estar junto.
RODRIGO NÚÑEZ
Professor de cerâmica
O objetivo das oficinas é incentivar a troca e o laço social entre os pacientes, afirma Déborah da Silva Minuz, psicóloga e diretora substituta da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS. Os diversos significados de se fazer parte de um grupo, ressalta o colega psicólogo Luiz Octávio Martins Staudt, são o aspecto mais importante:
— São sujeitos considerados loucos. No dia a dia, a palavra deles e o que eles fazem têm muito pouco valor.
Objetos mágicos
Na tarde do dia 3 de outubro, quando a reportagem esteve acompanhando a atividade de cerâmica, o grupo parecia especialmente interessado em comida. Nas mãos das 16 pessoas ao redor da mesa, a argila ia dando forma a pães de queijo, pizza de calabresa, panquecas, chocolate Charge. Sentados lado a lado, alguns participantes conversavam enquanto trabalhavam.
Henrique Sabino gosta de contos de fadas e filmes da Disney. É autor da série Objetos Mágicos: carrinho de mão mágico, ferradura mágica, band-aid mágico, poste mágico, raquete de mosquito mágica, serra elétrica mágica, latinha mágica. Trabalhou rápido para elaborar mais um item para o conjunto.
— Já fiz minha coisa de hoje — falou ele pouco depois do início da aula. — É uma máquina de ler pensamentos! É mágica — explicou, indicando o botão que permite ligá-la e desligá-la.
Brayan Ramos, 30 anos, frequenta a clínica desde a infância. Ele tentou responder por que gosta dessa atividade:
— Vou ser bem sincero. É uma terapia que cria coisas. A gente organiza as coisas, a gente faz tudo, principalmente para trocar ideias, conversar, tirar risadas. É um local para se construir.
Os pacientes melhoram, os sintomas diminuem. Eles saem desses momentos mais felizes, mais fortalecidos, têm mais funcionalidade. Trabalhamos muito com medicação em psiquiatria, mas ela consegue auxiliar até um determinado ponto, tem suas limitações. O que se faz ali é distinto das intervenções biológicas, é algo que se soma ao arsenal terapêutico.
JOSÉ MENNA OLIVEIRA
Psiquiatra
Romeu trabalhava em silêncio, concentrado, destacando pequenas porções de argila do bloco maior para compor seus bonequinhos de pau. Com um esteco — como são chamadas as ferramentas de cerâmica —, inscreveu ao lado da personagem: Silvana Barros, 84 anos, doceira. Quando questionado sobre o que mais gosta na oficina, fechou os olhos por alguns segundos para pensar.
— Gosto de fazer trabalho de argila. É isso — respondeu.
Construção de uma família
Os diálogos que povoam a oficina são valiosos para os profissionais de saúde que atendem os pacientes do Núcleo das Psicoses. Fragmentos de conversas vão sendo coletados, transmitindo informações importantes para a equipe assistencial. Relacionando-se com o porteiro, com o aluno bolsista, com o colega, e sobretudo interagindo em um grupo, eles vão falando de si e de suas vidas. É um material que pode ser mais rico do que aquele que seria reunido em um atendimento individual convencional em consultório, por exemplo.
— Vamos montando um quebra-cabeça do que está acontecendo com eles. São elementos que podemos usar para pensar intervenções capazes de diminuir o padecimento desses sujeitos. Esse convívio coletivo, essa retomada do lado social, é fundamental para pensar um tratamento possível — explica Staudt.
Romeu, criador da Família Barros, tem diagnóstico de esquizofrenia, como a mãe. Considerada uma doença mental grave, a esquizofrenia se caracteriza por perda de contato com a realidade, alucinações (ouvir vozes ou ter visões), delírios, pensamentos e comportamentos alterados e diminuição da capacidade de expressar emoções. Há dois anos, Romeu conquistou o primeiro emprego, na área de serviços gerais de uma imobiliária. O paciente passou a ser compreendido mais amplamente a partir da presença nas oficinas.
— O casal Barros tem um montão de filhos. Era um sonho do Romeu ter filhos. Para a maioria das pessoas, é algo conquistável, mas, para os psicóticos, muito pouco, para a maioria não — interpreta o psicólogo.
Apesar da impossibilidade de materializar o sonho, Romeu se realizou com a construção dos personagens fictícios: com argila, ele construiu uma família.
— Possivelmente, a Família Barros salvou a vida dele. Algo de família ele está conseguindo construir em um ambiente que valoriza isso — analisa Staudt.
“Por que a discriminação?”
Psiquiatra vinculado à Clínica de Atendimento Psicológico, José Menna Oliveira lembra que a presença de oficinas terapêuticas no universo da saúde mental remonta a meados do século passado, com a finalidade de pensar em estratégias que não sejam focadas em tratamento hospitalar. Os benefícios são inúmeros, segundo o especialista.
— Os pacientes melhoram, os sintomas diminuem. Eles saem desses momentos mais felizes, mais fortalecidos, têm mais funcionalidade. Trabalhamos muito com medicação em psiquiatria, mas ela consegue auxiliar até um determinado ponto, tem suas limitações. O que se faz ali é distinto das intervenções biológicas, é algo que se soma ao arsenal terapêutico — afirma Oliveira.
Rodrigo Núñez, artista visual e professor de cerâmica, explica que, para o público da clínica, não se trata de um ensino centrado na técnica, em razão de obstáculos como os cognitivos, ainda que fale sobre o que está sendo feito, explique, demonstre.
— O que me encanta (na oficina) é que cada um vai conseguir perceber o seu jeito, a sua maneira. Tem que ter a sensibilidade para ver até que ponto eles vão entender. No dia a dia a gente não presta atenção nisso, no convívio social da gente mesmo. Por que eles são tão discriminados? A sociedade não está predisposta a entender o ritmo deles. Não se enquadram, não se ajustam. Abrimos mão de conviver com esse diferente. E quando o diferente é muito diferente, a gente ignora a existência — reflete Núñez.
Ele é mais um sentado ao redor da grande mesa de trabalho da oficina. Os objetos moldados são colocados para secar em uma sala do prédio que funciona como uma espécie de pequeno acervo. Depois, Núñez os leva para a queima no forno do Instituto de Artes. Como há limitação de espaço para o armazenamento das obras e desinteresse dos pacientes em levá-las para casa, o professor reaproveita parte do barro utilizado em cada encontro, hidratando-o. A argila volta a ganhar a forma de uma massa compacta nas aulas subsequentes.
— Eles não têm muito interesse pelo objeto. O importante, para eles, é estar ali e você estar junto deles. É lindo: o convívio que é importante. O objeto, a matéria, a argila é um veículo desse estar junto — diz o docente.
Núñez celebra as pequenas conquistas do transcorrer das semanas e dos meses. Amanda costuma moldar conjuntos de diversas bolinhas. De repente, colocou cabelos nelas.
— Mas elas não têm cara? — questionou o professor.
E, a certo ponto, as bolinhas começaram a ter olhos e boca.
— Perceber um novo gesto, uma nova forma, um novo grafismo: esses ganhos, essas pequenas alterações de ritmo, que são irrisórias, você começa a dar importância a isso, a perceber isso. O que para nós é uma conquista irrisória é uma grande conquista para eles — afirma Núñez.